Mantendo O Equilíbrio - Um Novo Amanhã escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 14
Capítulo 13


Notas iniciais do capítulo

Murilismos e murilices ♥



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Me pergunto se meu avô gosta de flores.

Se bem que se eu as mandar para ele, primeiro que pode demorar, segundo que ele não vai entender e, terceiro, vai pegar mal. Minha avó pode interpretar errado, começar uma intriga ali mesmo. De qualquer maneira, a primeira coisa que vou fazer quando acordar pela manhã de terça-feira é ligar para meu avô. Tinha que agradecê-lo muitíssimo pela orientação que ele dera a meu irmão sobre a minha viagem.

Murilo ligou mesmo para nossos pais para perguntar sobre isso. Só que quem atendeu – graças ao bom Deus – foi o vovô, que notou a perturbação do neto, quis saber e ajudar no que fosse. Murilo insistiu em falar com papai ou com mamãe, que por uma boa sorte, tinham saído bem cedo para um compromisso na cidade ao lado e lá estava com sinal péssimo para celulares depois de um raio que caiu na madrugada. O jeito foi se abrir com vovô mesmo, esses dois se entendem como eu me entendo bem com a vovó.

E o que vovô disse? Que era hora de meu irmãozinho me deixar viver! Que já me mostrei responsável, ponderada, sensata – palavras dos dois, não minhas – para lidar com uma viagem desse tipo. E ainda, que Murilo deve parar de paranoia, de ser esse super hiper mega protetor que é comigo. Tenho que dar um mega combo para vovô depois dessa, um beijo no rosto, um abraço apertado e uma dica de onde estão os biscoitos que a vovó escondeu de novo – ele sempre resmunga sobre isso.

Aquela conversa que tivemos antes do ano novo realmente fez a ficha de vovô cair. Espero que a de Murilo caia também, porque não é só eu quem precisa, ele também, que fica preocupado muita das vezes – 98% – por nada. Eu que num aceito que tenho de partir para a briga.

Me pergunto também se é o vovô que sabe do probleminha do neto, esse trauma que Murilo guarda através dos anos, que o leva a me proteger demais.

– Eu preciso dizer que não concordo com essa viagem, Lena, eu não quero que você vá, mas se você quiser ir... bom, eu não vou ser um empecilho. Não como fui enérgico no outro dia. Você já é bem grande, pode tomar a decisão. Sabe qual é a minha.

Estávamos tomando sorvete na cozinha, sentados à mesa de frente para o outro. Costumava ser uma coisa nossa, de conversar comendo alguma guloseima, geralmente sorvete. Disse-lhe que havia tomado com Vinícius antes de chegar em casa. Aí Murilo disse que tinha comprado de sabor mesclado (que é algo como baunilha com melado de morango), um sabor que tinha sumido de mercado faz um bom tempo, além de ter comprado também uma nova cobertura de caramelo – ele tinha detonado a última desde o ano passado – uma compra bem pensada para a ocasião, eu não dispensei.

Qualé, eu tenho alma, tá?

Cravo minha colher na bola de sorvete caramelada de minha tacinha para olhar, enfim, para meu irmão, que mexia a sua colher raspando as bordas do que se serviu. Parecia meio sem-jeito. Não daquele que fica sem-graça, é aquele lado dele que não sabe lidar bem com a situação e tem medo de fazer qualquer outra coisa pra piorar, e que faz na realidade alguma besteira. É um sincero temeroso. Teme que sua opinião gere outra briga.

– Obrigada. Você não sabe o que isso significa para mim. Não precisa sempre concordar comigo; se me apoiar nas minhas decisões, se me ajudar a ponderar, é o bastante. É o que sempre te pedi.

– Desculpa esse seu irmão chato?

– E mala. Desculpei naquela hora, né?

– Não, naquela hora você me desculpou por termos brigado. Sabe que odeio, odeio ficar daquele jeito. Que o que mais quero é me redimir de verdade com você.

Voltei a remexer no meu sorvete, sentindo que ele não ia parar por ali. Ele não para mesmo, sua indignação fala mais alto. Aponta sua colher pra mim para depois largá-la sobre a mesa. Ele andava muito quieto mesmo esses tempos, uma hora iria espocar. Acho que chegou ao topo então.

– Murilo... também não vá tão longe.

– Eu vou, Lena, sabe por quê? Por que eu tô tentando, caramba! Por que você propôs então de a gente reavaliar nossa relação de irmãos, nossa confiança, nossos princípios? Você também não tem um algo pelo quê se esforçar? Só eu que tô fazendo as coisas, é o que vejo.

Ele tem razão. Nem posso negar ou enrolá-lo, isso tá tão na cara que pede uma confirmação só pra ficar a pratos limpos. Preciso dar alguma resposta, ele a espera. Foi tão paciente esses tempos, lhe devo isso. Mas o que posso externar, assim? Uma confissão, um reconhecimento? Dar-lhe credibilidade?

– Não vai dizer nada?

Encolho-me com os ombros.

– Eu... não nego.

– Que bom. Digo, que bom que você sabe que tá errada.

– Então pronto, já disse.

– E vai ficar assim? Não vai dizer mais nada?

– O que quer que eu diga? Que a falta é minha? É minha. Que eu quero melhorar? Eu quero. Que eu sei o que fazer? Eu não sei. Isso não é fácil pra mim.

A última parte me sai num murmuro que ficou na hesitação de sair. Murilo, entretanto, não hesita. Levanta-se num átimo. Devia ter tanta energia guardada para discutir que era melhor pra ele ficar zanzando de um lado para o outro pela cozinha, perto da pia. Nos seus gestos, no modo de falar, de manifestar tudo isso, lá estava aquela sua velha dor.

– Nem pra mim, Lena, nem pra mim. Tenho um medo tão grande de te perder, um sentimento tão forte que agora sinto que não posso dar um passo em falso. Sinceramente, não sei o que fazer, não sei o que você quer de mim. É tão difícil assim me perdoar?

O sorvete derrete em minha taça, tão calmamente quanto se tivesse todo o tempo do mundo. O vermelho do melado de morango se unia ao melado da cobertura de caramelo. Não mais tocava na taça, não mais o olhava também. Estava lá com ele ao mesmo tempo em que não. Era uma circunstância de alheia que eu mal sei descrever. Como não retruquei alguma defesa, algum argumento, ele continua:

– Porque, poxa, parece que só tô fazendo os sacrifícios aqui. Parece não, sou só eu mesmo. Num dia você tá tão aberta, noutro tão fechada, um dia tá próxima, outro tá afastada... Caramba, quero poder chegar em casa e saber lidar com minha irmã, que tá aí em um algum lugar desse silêncio.

Por que isso tem que ser tão complicado? Por que tem que me apertar o coração assim? Que tanto fiz de mal? Queria tanto voltar ao normal... só que quando era “normal”, não era bem “normal”. Tudo que eu queria eram mudanças. Estão elas bem na minha cara, pedindo pra entrar... Por que eu não deixo?

Merda de zona de conforto.

– Eu não nadei tanto, Lena, para morrer na praia. Não lutei tanto para cair num só golpe. Não quero ter que implorar por um carinho, praticamente pagar pedágio para me manter de boa com você. Não quero desistir de mim só pra te agradar, pra buscar esse teu tão difícil perdão. Não quero que soe ou que pareça que estou te comprando... Putz, lavei dois banheiros pra sentir que nada estava perdido. Sabe o que isso significa?

Uma pessoa qualquer ouvindo isso não entenderia a profundidade de seu argumento. Com a gente tem todo um valor, uma importância. Uma coisa tão trivial, eu sei, os esquemas fazem parte de quem somos faz tanto tempo que é assim que negociamos as coisas. Foi realmente um preço alto a se pagar, também me preocupei no dia. Ele soou tão desesperado quanto agora.

Liberta-me desses devaneios ao ressaltar a questão mais uma vez:

– Sabe?

– Sei.

– E o que você fez? O que tem feito? Como que propõe que conversemos mais e não vira a cara pra mim depois? Como que diz que quer trabalhar a nossa confiança se você só se cala com que quer que seja? Por puro medo eu abaixei a cabeça todas essas vezes. E pra quê? Pra nada! Lena, você não tá fazendo nada. Isso quando não me dá patada. Estou reagindo agora, reage também, poxa!

Suspiro pesadamente ao vê-lo tão... aborrecido. Era inevitável o ferir de novo. Isso mexe comigo, mexe por dentro. Dá aquele negócio no estômago, o sorvete que desceu parece doce demais, e eu ácida, amarga demais para ele. Reajo de dentro pra fora, há uma correria nas minhas veias, na água que percorre meu corpo e se centra nos olhos.

Ah, meus olhos cheios d’água. Eu não quero chorar. Pisco nervosamente, me recosto na cadeira, mordo o lábio que quer tremelicar por não ter algo de bom a dizer, sem ter nada a dizer. Ele acaba de me dissecar, quer mais o quê de mim? Já confessei também.

– Milena, por favor, diz alguma coisa.

Me seguro bastante para não soar embargada como sei que estou. Isso seria indício de fraqueza, acredito. Além de certamente algum tipo de golpe baixo, ele poderia pensar que estou manipulando-o.

– Já disse que não sei o que dizer... o que quer que eu faça, por fim?

– O que você quer que EU faça, por fim? Como que seu perdão se tornou assim tão inalcançável? Como vamos melhorar se o sacrifício não é dos dois? Preciso que faça sua parte. Preciso que me diga qual é a minha parte, porque quero acertar.

Para diante de mim, ao meu lado. Resignado, desgostoso, esperançoso.

– Não é algo que eu diga e você puff, faz, entende? Isso tem que partir de você, não de mim. Tenho que ver que aos seus olhos algo mudou aí dentro, que seu discernimento está... como posso exprimir? Que tem princípios, sei lá. Tem que entender por si mesmo o que você fez, que tem consequências, que pessoas se machucaram... eu, você, Eric, Vinícius até. Aposto que até hoje ainda culpa o Eric... nem consegue responder bem quando falo dele. Tô vendo tua cara, tá? São muitas questões.

Toma o rumo de volta a sua cadeira, senta-se com um baque baixo, um suspiro cansado alto. Cruza os braços e os apoia na mesa, a expressão facial vacilante. Aquele franzido na testa de sinal de preocupação fica um bom tempo, marcando-o tristemente. O olhar estava sobre o raso sorvete de sua taça, tal qual eu mantive anteriormente. Sei que olha e sei que não é bem isso que observa. Só acontece de parecer seu foco. O foco na realidade estava maquinando em sua cabeça.

– Nunca imaginei que isso custasse tanto.

– Nem eu.

– O que vamos fazer então? De verdade?

– Vai acordar cedo amanhã?

Acho que foi uma pergunta tão repentina que Murilo vira para mim de olhos entrecerrados, desconfiados. Me ajeito na cadeira, passo a mão nos olhos, me livro das evidências que quiseram descer. Iria começar de fato nosso acordo de melhorias, estou preparada.

– Não. O que isso tem a ver?

– Então vamos recorrer a mais sorvete. Você quer que conversemos, então vamos conversar. A falta é minha, estou disposta agora. Não te tiro a razão dessa explosão, estava no seu direito. Me desculpa?

– Só se me der um abraço.

Fez menção de se levantar, a expressão numa clara melhorada. Acenei para voltar à posição que mantinha, não era hora para abraços. Abraço é para quando não há bem palavras para se dizer, e agora nós temos de dizê-las por necessidade.

– Sem esquemas, Murilo.

– Ok, desculpo. Vou só pegar o sorvete no congelador, que esse daí já virou sopa. Ou leite. Tu entendeu. Estamos tentando agora, não é? De verdade verdadeira?

Ele levanta rápido, pega o pote de sorvete e a colher de tirar bolas. Para bem ao meu lado para colocar mais uma no “leite” que eu mexia na minha taça com a colher.

– Tão verdade verdadeira que vou lhe contar minha peripécia da véspera do aniversário de Vinícius. Tim tim por tim tim, coisa que não digo a qualquer um.

– Juro que vou me controlar. Eu preciso de oportunidades como essa para aprender a ter controle, não?

– Aproveita, Murilo, que só hoje você está certo. Acho que pensar muito antes de fazer ou falar tem desenvolvido em ti uma sabedoria assustadora.

– Queria entender porque às vezes amo quando você me sacaneia assim.

– É porque te amo, bobão, isso quer dizer que me importo contigo.

Ele infla o peito de um modo tão descansado pelo que eu disse que sinto meu coração descansar junto.

~;~

A primeira coisa que faço não é ligar para meu avô quando acordo. É notar que mudanças podem ser árduas, difíceis e resistentes, precisam realmente de um passo a passo. E, acima de tudo, de oportunidades complicadas para poder forçar as pessoas a mudarem. Nem preciso remover o lençol do rosto para saber que quem está escolhido na ponta da minha cama é meu irmão – até porque ele ronca baixinho. Isso pode parecer meio idiota a algumas pessoas – de ele ter de vir dormir na minha cama – e outras pensarem mesmo que é fofo esse cuidado que tem, porque eu posso muito bem pensar essas coisas, todavia, sei que isso faz parte desse medo dele de me deixar.

Uma vez ele me deixou e, por uns 17 anos, ele tem infelizmente pagado por isso. É um medo irracional racional se pensar bem. Como o meu problema dos trovões, que já que não consigo achar bem a origem, tampouco sei como consertar, quero ajudá-lo a se curar. Porque eu preciso que se cure tanto quanto ele necessita de uma paz nesse coraçãozinho preocupado.

Fomos dormir 2h da manhã – e quem deu uma boa detonada no sorvete foi ele, digo logo. Meu sono de alívio foi tão bom que minha cama se assemelhava a uma nuvem, que eu, deitada, nem parecia que dormia, eu flutuava no inconsciente. Boa parte do peso que carregava no corpo se esvaiu numa conversa sincera com meu irmão. Sério, conversamos sobre tanta coisa que nem dá pra contar no dedo os tópicos. Nem de tudo ele gostava, claro, nem concordava, claro, mas ele se controlou. Murilo se controlou! Que poder tem a palavra quando é exprimida, hein.

Isso é paz para meu coraçãozinho também. Me senti acolhida, compreendida. Ouvida. É tão novo para mim que a sensação parece ser coisa de sonho. E, claro também, isso foi muito para uma conversa só e que existem coisas nesse mundo que não devem ser mencionadas, nem para ele nem para ninguém. Mesmo assim, é... bom, sabe?

Não o perdoei, não, não por completo... No entanto, isso é um outro nível que estamos chegando. Não pude evitar rir quando resmungou que havia pensado que nunca mais ouviria uma overdose de Britney... e quando falou que ela grudou em sua cabeça por dias. Ele chegou a cantarolar um pedaço pra mim! Murilo. Cantando. Britney.

Aquela parte de “Overprotected” em que ela diz “I tell 'em what I like, what I want, what I don't... But every time I do... I stand corrected”. ONDE ESTAVA MINHA CÂMERA? Merda, ele não me deixaria gravar.

Comentou também sobre minha atitude de fugir dele... que preferi pegar um ônibus a estar no mesmo carro que ele na hora de ir para casa de Vinícius. Foi extremo, confessei, porém, era o que eu precisava, respirar sem tê-lo tão na minha nuca. E sim, eu disse terríveis coisas a ele, coisas que não deveria ter dito, saíram no calor da raiva. Que além de machucá-lo, o deixava numa má posição.

De qualquer forma, Murilo tem que parar com isso. Digo, de me ver como uma preocupação ambulante, de que tenha que se assegurar de ficar perto o tempo todo. Ou mesmo dormir perto achando que algo pode mudar no meio tempo de nossos sonos. Depois de todo um papo, quando me aprontei para deitar, ele passou na porta de meu quarto. Um tempo retornou, incerto. Sabia ele que não era saudável, mas lá estava ele, num pedido quieto:

– Se importa?

Se referia a dormir em minha cama.

Por mais que tivesse espaço de sobra, tinha que barrá-lo.

– Na verdade sim. Tô bem, isso deve ser suficiente pra você. Tá na hora de aprender a se manter distante, mas um distante que confia que estará perto.

– Hum. Ok... boa noite.

Ficou uns minutinhos encostado no vão de minha porta até ir para seu quarto. Não sei o que houve no meio da noite para que ele se deslocasse de volta. Não vou brigar por isso, se é o que ele acha. Chega de brigas, cansei delas, vou fazer minha parte agora. Eu vou, tá!

A segunda coisa que faço é pegar o celular para ver a mensagem-resposta que Vinícius mandou, ouvi uma notificação do aparelho logo que abri o olho. Antes de dormir tinha lhe mandado uma falando que “Murilo explodiu, de uma forma boa, estamos bem. Esperançosos”. Mal pude na verdade ver a sms dele, pois de instantâneo vi as horas do dia e... ia dar 10h da manhã! Tenho que levantar rápido para dar continuidade ao meu trabalho, a merda do ensaio, que... ó, ideias, argumentos lindos dão o luxo de aparecer!

Quase num pulo afasto as cobertas, jogo por cima do meu irmão que só se remexe na cama, me atiro ao banheiro. Talvez agora que minha cabeça não está tão cheia o pensamento consegue fluir melhor... ó lucro, vem ni mim, vem. Continue, mantenha esse ritmo.

Acho que consegui decifrar a charada! Há, vou só dá na cara do professor Bartolomeu, que teve a audácia de duvidar de mim.

– Hey, Murilo, acorda.

Reage a minha cutucada com um murmurar de coisas inteligíveis, se revira na cama, puxa meu lençol. Rio de seu comportamento. Como pessoa decente, não vou ser violenta. Ou não tão violenta.

– Bora, Murilo, que hoje quem vai cozinhar é você.

– Eu? Por que eu?

Resmunga com apenas um olho aberto.

– Porque eu acabo de encontrar a chave de ouro do meu trabalho e se eu esquecer, a culpa será tua. Mal vô fazer um achocolatado para o café da manhã. Bora logo que tô atrasada, a lista de afazeres de dia é grande.

– Tá. Só mais cinco minutinhos.

O único olho aberto se fecha.

– Te dou 10 se cozinhar na quinta também.

Ok, isso foi um teste. Pra saber quão acordado está, se vai tomar alguma atitude, pois está na cara que é uma proposta injusta. Sim, tô de sacanagem.

– Mais nem que a vaca tussa uma música inteira!

Ah, senti falta dessa expressão.

Ele passou no teste. Abriu os dois olhos de vez.

Só assim que liguei, escondida, para o vovô. Desse agradecimento eu não devia esquecer, de jeito maneira!

~;~

– Bora, Murilo.

– Já ouviu falar que cavalo dado não se olha os dentes? Carona dada não se reclama. Tamo quase lá.

– Foi você quem ofereceu.

Cruzo os braços ao entrarmos no estacionamento do centro meteorológico. Faço um bico, bato perna na vaga de meus pés, olho novamente o relógio. Tenho menos de 30 minutos para estar na porta do escritório de meu estágio, combinei de entrar lá com Gui e, pasme, André – afinal, mesmo sendo cada um por cada um lá dentro, somos da mesma instituição e turma, temos de esquecer nossas diferenças e intrigas para manter a ordem lá dentro.

– É você quem está atrasada.

– Você vai botar um pé lá e voltar no outro.

– Calma, maninha, só vou entrar na minha sala, pegar a papelada e te deixo lá.

– E traz água pra mim. Sou só eu ou dia tá muito quente?

Murilo aperta o botão de destrava de seu cinto ao desligar o motor do carro. Entrecerra os olhos para me observar, uma sobrancelha se levanta ao mesmo tempo que uma puxadinha se faz em seu rosto. Ele estava sorrindo.

– Tá nervosa, Lena?

– Não.

Tô sim.

– Hum. Olha, se quiser água, vai ter que entrar comigo. Não dá pra correr com um copo d’água sem chegar aqui sem ela. Você escolhe.

– Tá, eu vou.

Quando abro a porta, ponho um pé pra fora, ele me faz sentar de novo. Me olha tão de cima a baixo que me sinto estranha:

– Espera... só... hum... ok, você está decente.

Bufo. Saio do carro em seu encalço, digo boa tarde aos seguranças e atendentes da recepção antes de me meter adoidado pelos corredores para chegar no departamento dele.

– Murilo, não vou para a praia, não dá pra ficar de biquíni. Vou me apresentar pela primeira vez ao estágio, tenho que estar decente. Esperava o quê?

– Só quis me certificar que você estava decente mesmo, ainda que de saia. Não gosto da forma como os caras daqui te olham. Sabe como eles são. Parecem que nunca viram mulher na vida.

– Contando que não me venham com abobrinhas e você consiga ser bem rápido, tô nem aí se tão olhando.

Ele para no meio do caminho. Eu, que vinha logo atrás, quase esbarro nele por essa parada repentina. Empurro-o de volta, que ande. O tempo tá passando, ele não percebe?

– Mas EU ligo.

– Então ANDE, ANDE, Murilo, quanto menos tempo ficarmos aqui, menos eles terão de me ver. Vai logo, coisa.

– Tá, tá, tô indo. Ô coisa.

Ok, Murilo atinge o nível bala. Tão bala que vira vulto, tão bala que nem vê Aline que do outro lado do saguão que ele atravessa. Fico para trás, eu só queria beber água. Ele me contou que ela havia voltado no dia anterior, no turno da tarde. Entretanto, não a viu, só soube. Soube também que ela teve que fazer uma viagem de emergência como assessora da diretora num problema que apareceu. Isso resume seu desaparecimento, porém não explica seu comportamento em relação a eles, de que evitou meu irmão depois de, segundo meu irmão, ela ter o beijado.

De fininho, não querendo chamar atenção, tomei minha água. No ponto certo, daquelas que se enche o copo, desce pela goela e é tão boa que se repete a dose. Teria uma terceira dose se não parasse pra pensar que isso iria me dar uma baita vontade de fazer xixi no meio da minha apresentação à companhia de trabalho. Não tava a fim de mostrar mais nervosismo, não mesmo.

– Milena?

Ops, acho que não passei despercebida.

– Aline? Oi.

Jogo o copo na lixeira próxima, dou um abraço de cumprimento nela, que retribui. Está sorridente. E hesitante. Trazia uma boa papelada nos braços, que se fechavam neles com força. Estaria desconfortável?

– Pensei tê-la visto, vim conferir... então, está de visita?

– Na verdade, peguei carona com meu irmão... e ele ainda não me deixou no meu destino. Ele foi pegar uns documentos que têm que entregar perto do lugar que vai me deixar. Devia ter pegado um ônibus mesmo, o tempo tá passando e nada dele voltar.

– Ah. Tenho certeza que logo estará de volta. Então... vocês estão bem?

– Er...

Ela se toca do que falou, apesar de não ser bem inconveniente. Leva uma mão à boca numa repreensão a si mesma.

– Oh, desculpe, não é da minha conta, eu não devo perg...

Ela gosta dele, ela gosta dele. Ai que lindo.

– Estamos bem... Lidando com o que temos pra lidar.

Aline ri, nervosamente.

Awn, pode isso ser menos fofo? Ficou toda sem-graça.

– Ele é um cara muito bom pra você. Admiro isso nele, sabe.

Então por que tá evitando o bichinho? Quis tanto perguntar isso.

– Pior é que eu sei. E sei que... você gosta dele.

Cadê o Murilo que não volta?

– Ah. Sim, er... eu gosto dele. Teria como não gostar?

– Você que tem de dizer.

– É só que... ele é um ótimo amigo. Tenho medo de perdê-lo. Não fui bem sucedida nos meus últimos relacionamentos, ele também... talvez não seja uma boa ideia se ficarmos junt... Droga, eu não devia estar te falando essas coisas. Esquece, esquece. Melhor eu voltar para... hã... tchau.

E me deixa no saguão, eu bestinha da vida por ter ouvido essa sua confissão. Saiu abraçando os papeis aos braços desnorteada, que nem ela sabia pra que lado ia. Nem posso rir porque sei bem como é isso se saia justa. Mas, Deus, ela tá mexida. Muito mexida, devo dizer.

Logo que some por um corredor, meu irmão aparece por outro.

Acho que fiquei tão pasma pela confusão dela que nem notei quando ele passou direto, voltando para o carro com uma série de pastas debaixo do braço. Ele voltou, todo desconfiado, me cutucou.

– Que foi? Te disseram alguma coisa estranha? Lena?

Me disseram algo... algo que não sei se devo comentar.

Quer dizer, isso deve estar no código feminino, não?

– Vamos.

– Lena. Foi um dos caras? Me diz logo.

– Não, não foi nada. Só que... vi a Aline.

Ok, eu não precisava dizer tudo que brevemente conversamos, né?

Até porque continuo atrasada, Gui e André – pff – devem estar a minha espera. Se mencionasse o mais importante da conversa, a confissão e parte das razões da Aline, meu irmão não me deixaria sair do carro tão cedo.

Termino por empurrá-lo de volta ao estacionamento. Isso fica pra beeem depois.


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Notas finais do capítulo

Com um capítulo inteiro com ele é claro que Murilo tá se achando agora...



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