O Quarto Rosa escrita por Lótus


Capítulo 14
Capítulo 14


Notas iniciais do capítulo

Tudo em família



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Os dias passaram e com eles minha dor de perder uma amiga pela distância pareceu ceder espaço a outros eventos. Chegaram minhas férias e com elas a possibilidade de conhecer melhor minha vizinhança, estreitar laços com parentes. Em meio a esse mundo particular, veio minha irmãzinha Brígida, era um bebê lindo, nasceu magra, com uma farta cabeleira negra, eu não a via muito, pois como recém-nascida requeria cuidados intensos, por isso eu era mantida quase o tempo todo afastada dela.

Com a chegada de Brígida minha vida melhorou muito no sentido de não ser mais o alvo da atenção dos meus familiares, só assim obtive mais liberdade podendo ate brincar com meninos e meninas de rua.

Em uma de minhas brincadeiras de rua com a turminha do bairro, Marlene, Jane e seus (acho que cinco) irmãos, só sei que eram muitos. Marlene era bem mais velha que eu e Jane bem mais nova. Brincávamos muito de pique no ar, queima, salada de frutas, adivinhas, corridas e até de futebol, sendo essa ultima atividade interrompida por minha avó, pois me dissera que futebol era coisa de menino e não de menina, que meninas deveriam brincar de bonecas. Fiquei muito chateada com essas observações e comecei a achar que nós meninas estávamos em desvantagens, foi nessa época que comecei a conhecer realmente a diferença de gênero existente de acordo com os padrões atribuídos pela sociedade.

Meninas não podiam sentar-se com as pernas abertas era falta de modos, o meninos podiam, pois eram “homens”, nós meninas não podíamos rir alto, andar sozinhas, etc. Comecei a achar que deveria ter nascido menino. Mas apesar desses acontecimentos eu estava me adaptando à rotina ou ela a mim, já não doía tanto meu coração com saudade de Karina. Conheci Marlene, Jane e seus irmãos, eles não eram especiais como Karina para mim, mas eram meus colegas, eram quem brincavam comigo nas minhas horas vagas, havia dias que brincávamos até o anoitecer, eu chegava em casa exausta, mal tomava banho e já dormia.

As vezes minha avó não permitia que eu saísse para ir a casa da Marlene e da Jane chamá-las para brincar, pois temia que eu estivesse muito “rueira”, dizia que agora eu só queria viver na rua igual a menino. Nessas ocasiões eu procurava ser uma boa menina, não desobedecendo, ajudando no que for preciso, ate conseguir a licença para brincar. As vezes acontecia de eu obter a licença e Marlene e Jane não, indo por água a baixo nossos planos.

Marlene e Jane moravam muito próximas, seus pais Sr. Leônidas e sua mãe dona Tereza, logo fizeram amizade com minha avó, eram boas pessoas. Seu Leônidas aparentava ser um senhor muito calmo e de poucas palavras, mas dona Tereza era exatamente o oposto, exceto que não era faladeira, tinha um olhar marcante, forte, decidido, sendo que às vezes provocava certo temor. Morávamos todos em um bairro muito simples, éramos pessoas muito humildes, “quase” pobres mesmo, não havia muita novidades em nossas vidas, porém quando algo acontecia era motivo para vários dias de comentários.

Minhas férias não estavam nem na metade e eu já estava quase cansada da rotina, dessa forma, quando meus avós compraram a primeira televisão eu quase nem pude acreditar, eles tinham uma TV com imagem preta e branca, so que não funcionava, sei que depois adquiriram uma TV de imagem colorida, nossa foi uma festa geral, eu fiquei muito feliz, nunca tinha assistido TV em lugar algum. Mas o que não foi tão legal era que a TV tinha horário para ser ligada e desligada, isso resumia em duas no máximo três horas por dia, ordens do meu Avô.

Só poderia assistir jornal e uma novela que passava muito tarde, e nesse horário eu já estava quase dormindo, apesar do horário de funcionamento restrito, como toda regra tem uma exceção, meu avô querido viajou a negócios, ele era agricultor e dos bons, sempre era solicitado em fazendas para auxiliar em algum problema de plantação ou colheita. Desse modo, nesse intervalo minha avó, segunda mãezinha, permitiu-me assistir todos os filmes da sessão da tarde, e como já findava o ano, os filmes exibidos eram de natal, papai Noel, famílias bem estruturadas, presentes maravilhosos e uma ceia encantadora.

Toda a magia do natal era exibida nesses filmes com maravilhosas trilhas sonoras, eu como fiel soldado da imaginação, absorvi tudo, com tanta sede que a noite sonhava estar no Pólo Sul, em busca de Noel.

Ahhhh!!! Como eu sonhava, meu mundo ganhou um colorido intenso, todos, exatamente todos os meus sonhos voltaram com vigor total, acreditava sim no bondoso velhinho, acreditava sim que poderia ser uma das crianças escolhidas para receber um presente de natal, ele desceria no telhado de nossa casinha.

Ahhhh!!! As renas mal poderia esperar para vê-las. Eram lindas demais. Mas espera aí. O que pediria de presente de natal? Escolheria os presentes, sim porque se o papai Noel não pudesse dar um, daria o outro, eu teria a missão de convencê-lo que eu sou uma boa menina, e mereceria receber um presente.

Minhas noites eram felizes, porque criei e alimentei todos esses sonhos, eram tão reais como o ar que respiro. Os dias seguiram seu curso natural, e eu já planejava como informar papai Noel dos meus desejos, e vem a excelente ideia.

Escrever.

Escrever uma carta, relatando tudo isso. Assim em uma noite de lua cheia, escrevi a carta, ela foi construída carregada de boas intenções, pedi um ursinho marrom e se possível uma bicicleta, poderia ser a mais simples, mas desde que fosse uma bicicleta. Foi quando ao escrever a carta, não confiei em ninguém para entrega-la ao meu querido Noel.

No dia seguinte, no crepúsculo, sem que ninguém notasse fui até um morro localizado próximo à casa de minha avó, escalei-o ate seu topo e esperei, nisso fui visitada por uma forte ventania, fiquei feliz, e soltei minha cartinha, pedindo insistentemente que a levasse ate papai Noel. O vento a levou ficou olhando ate ela sumir. Voltei para casa e a partir daquele dia todas as noites eu olhava para o céu antes de dormir e perguntava será hoje que papai Noel vem?

A semana que precedia o natal fiquei muito tensa, pois rezava a lenda que criança que não recebesse presente era porque não era boa, em meu íntimo sofria calada com receio de ser rejeitada pelo bondoso velhinho do natal. O natal veio, o natal foi e nada, nada de papai Noel, nada de presentes, nada de rena, nem uma resposta sequer me deram.

Por que isso?

Eu sei que não era a melhor criança do mundo.

Mas por que nem ao menos respondeu minha carta?

Explicando o porque de eu não merecer?

A primeira semana após o natal foi a pior da minha vida, convivia com um sentimento de rejeição constante, e não era de qualquer pessoa, eu fui rejeitada por uma grande e bondosa pessoa: Papai Noel.

Eu mesma o vi dando presentes a tantas crianças. Custava dar-me só um? Eu chorei muito, ninguém nem sequer me desejou pelo menos um feliz natal.

Minha família não tinha o hábito de comemorar o natal. Não eram cristãos? Eram sim, pois qualquer em qualquer dia santo rezavam, no dia das crianças não me falavam que era dia da crianças, descobri isso na escola bem depois, me falavam que era dia de Nossa Senhora Aparecida, e da-lhes oração, e mais oração, já não aguentava mais aquilo, porque eu tinha que ficar repetindo sempre aquela ladainha? Com todo respeito só o fazia por minha avó.

O natal com toda a sua magia deixou um enorme buraco em meu peito, ouvir a palavra natal estremecia todo o meu ser. Mas é assim? Então se o papai Noel não quer saber de mim, vou procurar não querer saber mais dele também. Eu pensei que ele fosse realmente bom. Mas me enganei, porque não me deu um presente sem esperar nada em troca? Talvez eu tivesse descobrido o lado menos bom desse encantador velhinho do natal.


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