Hollow escrita por Guardian


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

A qualquer um que ler, espero que goste ~



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O quarto estava frio.

O sol entrava, banhava e era refletido até onde conseguia alcançar, transmitindo toda sua energia; nenhuma brisa se aventurava através das claras e leves cortinas corridas; risos infantis e vozes animadas ecoavam do pátio inferior, claros como se apenas separados por uma parede. E o frio permanecia.

Frio intenso, que vinha antes de dentro do que de fora, implacavelmente envolvia seu espírito e refletia em seu corpo através das faces lívidas e mãos geladas, dos lábios secos e leve tremor dos membros, pelos olhos que ardiam na vontade não saciada de chorar.

A cama no centro do quarto parecia deter uma atmosfera própria, e era de lá que Gray não conseguia desviar o olhar. Mesmo que doesse indizivelmente confirmar aquela realidade como... Real.

A pele quase translúcida de tão pálida podia ser vista de longe, bela em um sentido único e último. A palidez da morte.

As bolsas escuras abaixo dos olhos cerrados, talvez a mais evidente coloração daquela imagem. Olhos que não mais se abririam.

Os braços emagrecidos e inertes projetados para fora dos lençóis, repousados em um ângulo quase de paz. Braços sem mais nenhuma força.

Os negros e curtos cabelos começando finalmente a despontar rebeldes para todos os lados. Outrora tão vastos e belos.

Para cada parte vista daquele que repousava em caráter definitivo na cama, Gray associava a tudo que cada uma delas nunca mais teria a chance de fazer, em tudo que cada uma já havia sido um dia. E doía. Afinal, dos dois, por que não podia ser ele ali?

A eterna indagação de quem fica, daquele que é obrigado ao cruel papel de mero espectador do destino.

Aquele na cama era seu irmão.

Aquele que ali jazia era seu gêmeo.

Aquele cadáver era parte de si mesmo.

“E então?” o rapaz perguntou ansioso. Tentava ler a expressão de seu gêmeo, mas este conseguia mantê-la tão indecifrável que apenas aumentava ainda mais a curiosidade do outro. “Dan! Fala de uma vez!”

Daniel abriu um largo sorriso, e erguendo a folha impressa com a resposta que nortearia todo seu futuro acadêmico e profissional, de modo que o irmão pudesse ver palavra por palavra, gritou em puro êxtase “Consegui! Eu entrei, Gray!”

Gray gritou também, e logo os dois estavam abraçados e aparentemente sem saber o que era mais importante no momento. Se pular, chorar ou simplesmente rir até perder o fôlego.

A imagem exata um do outro, era o que eles eram. Cabelos lisos e escuros, jogados sempre para o mesmo lado. Olhos acinzentados que tinham o costume de mudar de tom dependendo da hora do dia. A pinta única que marcava o canto da boca e que ficava ainda mais evidente quando sorriam daquela maneira tão aberta e espontânea.

“Você vai ser um excelente advogado, irmãozinho” Gray conseguiu enfim dizer, ainda com o braço firme nos ombros do outro, os olhos úmidos transbordando todo o orgulho que sentia ao ver a conquista que seu irmão tanto sonhou finalmente ao alcance de suas mãos.

“É melhor que seja mesmo, senão quem é que vai te livrar da confusão se um dos seus prédios cair?” Daniel disse rindo alto e bagunçando os cabelos desalinhados do gêmeo, sendo imediatamente acompanhado por ele. Logo ambos estavam caídos no chão, tão leves e felizes que nada além da gravidade parecia conseguir mantê-los ali.

“Você ainda vai ver nosso nome em um dos meus prédios” Gray disse após um tempo, com um suspiro de quem tem certeza do futuro e sabe que ele será bom.

“Vou cobrar por isso, não se esqueça” Daniel respondeu, fechando os olhos e imaginando como seria ter mais aquele laço ligando-o ao irmão que tanto amava, a única família que sempre teve.

Gray ergueu devagar o corpo rígido do chão e afastou-se da parede em que se apoiava, indo com passos incertos até o foco de sua atenção e dor. Os olhos cinzas estavam mais escuros do que de costume, sem brilho algum que denunciasse qualquer chance de que a alma que deveriam refletir continuava inteira. Parou diante do corpo de Daniel, e quase podia ouvir o vento gélido soando dentro de si. De longe ou de perto, a dor não diminuía.

Encarou por um único momento o rosto que mesmo em seu último momento tentava manter-se como seu reflexo, antes de com os dedos trêmulos tocar a face gelada, deslizando-os gentilmente pela textura estranha a si, parando vez ou outra sobre o ponto preto próximo à boca, que quando crianças tanto se orgulhavam de compartilhar.

Observando aquela face, absorvendo cada vez mais fundo a certeza do que há muito era inevitável, sentia como seria difícil levar o que planejara adiante. Teria a força necessária para tanto? A coragem? Pela primeira vez na vida estava verdadeiramente sozinho, e a ideia de mudar isso naquela mesma hora era tentadora demais... Se conseguiria seguir com o que prometera a si mesmo, não sabia.

– Não vai demorar, Dan. Você vai ver.

Sua voz saiu tão baixa que ele mesmo poderia julgá-la como um sopro, o único sopro de vida que sobrara em si. E algo que ele julgava que não fosse mais capaz, aconteceu: Lágrimas voltaram a se formar em seus olhos, dando o brilho mais triste que aquela cor já havia conhecido; elas deslizavam por seu rosto devagar, como se não quisessem cair realmente, como se soltá-las pudesse ser mais doloroso do que não conseguir mais forma-las. E ele conseguia sentir seu calor. Era uma sensação estranha, uma brecha na muralha de inverno que havia sido construída em todo seu ser, brecha esta que logo era superada e em seguida aberta outra vez, em um ciclo vicioso.

Pousou os lábios na testa de Daniel pela última vez, compartilhando aquelas pequenas fontes de calor com a face daquele que não mais poderia derrama-las; e ao envolver a mão inerte com as suas, quase tão frias quanto, ao encostar fronte com fronte, os olhos fechados, lembrando todas as vezes que faziam exatamente isso para garantir força e conforto um ao outro, sentiu que conseguiria sim. Seria a última coisa que faria por seu irmão.

– Não vai demorar – repetiu num fio de voz – E então esse vazio vai desaparecer.

Tentou um sorriso que não queria ser formado e enxugou os olhos – Acho que você ficaria bravo comigo se soubesse, Dan...

“Dan...” os olhos cinzas encaravam o gêmeo e quase não piscavam, o medo e a preocupação estampados em cada linha do seu rosto.

“Tudo bem, G, já vai passar” disse o outro com dificuldade, tentando encontrar a energia necessária para fazer parecer, ao menos um pouco, o que dizia como algo convincente. Tentou forçar um sorriso para tirar a agonia óbvia que sentia no irmão, mas isso já estava aquém do que era capaz de fazer. Sua respiração saía difícil, parecia não haver ar suficiente para preencher os cansados pulmões, e o pouco que conseguia entrar não queria permanecer ali por muito tempo.

Gray fazia um enorme esforço para não apertar os olhos frente àquele som que se transformara no seu pior pesadelo, como se desse modo a realidade pudesse ser alterada. Desejava tanto que fosse possível, que às vezes se esquecia que não passava disso: um desejo. Não aguentava ouvir seu irmão tossindo daquela forma, como se fosse sufocar a qualquer momento. Não aguentava ver ele tentando confortá-lo, quando deveria ser o contrário.

E acima de tudo, não aguentava perceber como era fraco, quão impotente era naquela situação toda.

Fazia já quase dois anos que Daniel havia sido diagnosticado com câncer; o maldito amontoado de células mutantes que aos poucos começou a se alastrar pelos pulmões do gêmeo sem qualquer aviso prévio.

E quase três meses haviam se passado desde que o caso foi dado como irreversível pelos médicos.

Os dois passaram infância e adolescência de orfanato em orfanato, entraram em boas universidades pelo próprio esforço, conquistaram tudo o que tinham hoje sem nenhum amparo que não um ao outro. Juntos. Sempre.

Então não deve ser difícil imaginar como tal notícia foi recebida e quanto tempo ela levou para ser assimilada e aceita. Até o ponto que era possível aceitar algo assim, pelo menos.

– Viu? Passou – Daniel falou com um sorriso mínimo ao finalmente conseguir normalizar sua respiração, mesmo soando fraco e cansado como tanto tentava esconder.

Gray segurou mais forte a mão do outro, as palavras trancadas em sua garganta, o que fez com que os cinzentos olhos fixassem-se nos seus próprios, em uma muda comunicação que apenas os dois compreendiam.

E Daniel não gostou do que leu ali.

– Gray, acho que é hora de termos uma conversa – falou subitamente sério.

– Mais tarde – disse evasivo, conseguindo fazer com que o outro voltasse a encostar, com um gemido, nos brancos travesseiros da cama hospitalar – Depois que você descansar um pouco – tentou sorrir.

– Não, agora – o tom firme do irmão surpreendeu o gêmeo mais novo.

– O que foi, Dan? – desistiu e perguntou de uma vez, mesmo que tanto ele quanto o mais velho soubessem muito bem do que se tratava.

– Você não vai fazer isso.

– Isso o quê? – mas saber não era admitir.

– Isso que eu sei que você está pensando em fazer.

– Tomar banho? – não resistiu a tentar esconder-se atrás de uma máscara qualquer, por mais inútil que fosse, afinal, não era algo da qual se orgulhava, e tampouco algo que gostaria de discutir. Principalmente não com aquela pessoa tão debilitada. Esperava apenas que tal pensamento tomasse forma com o passar do tempo, ou que simplesmente desaparecesse; essa última achava bem mais improvável, porém. Nunca desapareceria, mesmo que jamais chegasse a concretizar o ato de fato; estaria sempre lá, como uma opção, uma saída, um alívio.

– Gray.

– Eu não estou pensando em fazer nada, Daniel – jogou os curtos cabelos para trás, sem nenhuma necessidade real além do nervosismo e movimento. Os havia cortado assim que os do irmão começaram a cair pelo tratamento intenso, para pelo menos naquele aspecto, continuarem como sempre foram: a imagem exata um do outro.

– Não minta para mim. Não agora, G.

Aquelas palavras, especialmente com o tom que foram ditas, causaram um doloroso aperto no peito de Gray.

– Eu não quero que você vá – disse enfim, se rendendo, voz e olhos baixos.

– E eu não quero que você me siga.

O gêmeo mais novo pressionou os lábios numa linha fina de tensão, sem coragem de nenhuma resposta.

– Não vai demorar – repetiu uma última vez para si mesmo, revendo toda aquela tarde no hospital, toda aquela triste conversa que não o abandonava, e concluindo que não tinha jeito. Com certeza Daniel ficaria furioso com ele pelo que faria, caso realmente houvesse um outro plano onde ele pudesse ficar furioso.

Bom, se houvesse, então tudo valeria a pena.

~*~

– Vamos logo, seus idiotas, as garotas não vão ficar esperando para sempre! – o homem dizia alto e impaciente, tentando a todo custo apressar o grupo a abandonar logo o local de trabalho que já deveriam ter deixado há tempos.

– Espera um pouco – um rapaz mais jovem, o novo estagiário do escritório, falou lançando um discreto olhar por cima do ombro – Não vamos perguntar se o Sr. Kinsy quer ir conosco?

– Não adianta, novato – um segundo homem disse, rindo.

– Ele não bebe?

– Ele não sai – o que antes apressava os outros agora parava também – Gray é a máquina desse lugar, nunca vi ninguém trabalhar tanto.

– Ele ficou assim quando Daniel ficou doente, não foi? – um terceiro indagou.

– Quem? – o novato franziu o cenho, tentando reconhecer o nome. Nada lhe veio à lembrança.

– O irmão dele morreu de câncer há uns... Agora já faz, o quê, seis meses?

– Por aí – o primeiro deu de ombros.

– Antes ele era bem mais descontraído, quase relaxado demais. Nem dá pra comparar com agora – o outro finalizou.

Cansados de ficar naquele ambiente que já os cercava oito horas por dia, o grupo finalmente teve o consenso de se apressar para sair. Antes das portas do espaçoso elevador se fecharem, porém, o jovem rapaz lançou um último olhar para a figura curvada sobre a maior das várias mesas de trabalho do lugar, alheio aparentemente a tudo ao seu redor, inclusive ao tempo.

Gray, como já deve ter dado para imaginar, sequer percebeu que agora era o único em todo o andar e, muito menos, que havia sido o breve foco de atenção dos colegas durante o último minuto.

Sua aparência estava tão semelhante à de Daniel em seus últimos tempos de vida, que muitas pessoas chegavam a temer que ele próprio caísse morto a qualquer momento, enquanto outras ainda se assustavam acreditando estarem diante do fantasma do gêmeo mais velho. Os cabelos negros continuavam tão curtos quanto estavam há meses, já que ele não permitiu mais que as mechas voltassem a crescer, sem ver motivo algum para o contrário. A luminária da mesa denunciava a palidez nada saudável que sua pele havia adquirido, assim como as escuras bolsas que adornavam os cansados olhos, fundos, cujo único brilho vinha do único motivo que o mantinha naquele lugar.

Terminou de ler o documento que passou toda a última hora analisando, e com um inconfundível suspiro de alívio, assinou. Este era o último... Finalmente.

Fixou os enormes olhos cinzas no amontoado de letras que assinalavam o fim de todo aquele trabalho, e enfim sentiu o que pairava apenas como uma ameaça nos últimos minutos, se concretizar.

Com a mão trêmula tirou uma cápsula colorida de um recipiente quase pela metade e a engoliu a seco, como sempre fazia. Apoiou a cabeça nos braços sobre a mesa e esperou que o horrível latejamento e dor que se espalhavam desde as têmporas, englobando e bagunçando seus sentidos, cedesse. Pelo menos o suficiente para conseguir ficar em pé sem que a tontura o forçasse a voltar àquela mesma posição ou o levasse direto ao chão.

Estavam ficando mais frequentes agora... E mais fortes. “Logo vai acabar”. Pensar nisso quase o fazia sorrir.

E realmente, estava bem próximo do fim...

O documento que havia acabado de assinar era o último da interminável papelada que fora obrigado a preencher nos últimos meses, como algo necessário para finalmente ver concretizado algo que sempre sonhou e que, especialmente após tudo o que aconteceu, havia se tornado sua mais obstinada meta.

Com essa assinatura, agora só teria que esperar duas semanas, talvez três, o que era algo muito bom.

Estava ficando sem tempo.

E tinha plena consciência disso.

~*~

Havia apenas uma coisa digna da total atenção de Gray naquela ocasião.

Aplausos soavam por toda a área, vindos de trabalhadores, investidores, futuros funcionários, ou simplesmente curiosos.

O acionista principal da empresa fazia seu discurso exaltado e cheio de frases prontas que nunca deixavam de ser apreciadas, não importando quantas vezes fossem usadas do mesmo exato jeito.

Fotos eram tiradas e comentários elogiosos eram feitos.

Havia um enorme número de pessoas reunidas.

Porém, nenhum som era ouvido pelo gêmeo, assim como nenhuma pessoa era percebida. Tudo o que ele via era o prédio.

Imponente, replicação exata dos detalhados desenhos que mantinha seguros em sua pasta, encontrava-se em todo seu esplendor no momento máximo da inauguração. Vinte andares em direção ao céu, quase que inteiramente espelhado, com os raios solares parecendo querer dar ainda mais importância ao evento ao refletirem por toda aquela superfície por cada ângulo que conseguia alcançar. Exatamente no centro da fronte, feito em material ligeiramente mais escuro que o resto, havia a visão frontal de uma enorme águia, sem grandes detalhes na cabeça ou peitoral, como uma sombra; as laterais do edifício abrigavam as asas abertas. Era uma enorme sombra que passava a impressão de a qualquer momento ganhar cores e vida e continuar o voo interrompido, quem sabe rumo a uma presa. Tudo uma questão de jogo de luzes.

A águia era o símbolo da empresa bancária Hoots, investidora e compradora do prédio que seria, a partir daquele dia, a mais nova e moderna agência, e por que não, a futura sede de uma das mais importantes redes bancárias do país. Era a agência Kinsy.

Era uma homenagem que ninguém ali se negaria a dar ao idealizador e arquiteto responsável por aquela construção, e a qual o próprio não hesitaria em aceitar. Afinal, era exatamente o que sempre quis.

Gray achou que deveria estar sentindo uma dose bem maior de orgulho e felicidade do que sentia de fato, por todo aquele reconhecimento em sua tão inexperiente carreira, pelo simples sabor da conquista, mas o que conseguia sentir mais forte que tudo, era aquele grande alívio e aquela curiosa paz que conseguiam fazer inflar seu peito como se respirasse o ar mais puro de sua vida. Tinha realmente feito. Tinha conseguido... Céus, duvidara tantas vezes de que seria capaz!

– Viu só, Dan? Tem o nosso nome, exatamente como eu tinha dito – não pronunciou as palavras realmente, o som delas mal deixou seus lábios, mas dizê-las para si mesmo, não importava o modo, apenas tornava tudo ainda mais real.

...

É... Agora estava conseguindo sentir melhor o orgulho abrindo caminho pelo resto. Afinal, aquele era o maior e mais importante dos seus trabalhos, em vários sentidos.

Assim como seria o último de todos.

~*~

A vista da cidade adormecida através da janela do décimo terceiro andar, era de fato algo a se admirar. E tendo apenas o apartamento escuro e vazio às suas costas, Gray observava sem grande interesse os pequenos pontos brilhantes que jamais paravam de se movimentar no distante solo, tendo o pequeno pote das coloridas pílulas rodando entre os longos e frios dedos. Distraidamente livrou-se da tampa circular, cessando o movimento e mantendo firme na mão o recipiente agora aberto, sem prestar real atenção no razoável número de medicamentos que ainda lá havia.

Daquela parte da cidade não era possível enxergar as estrelas, e naquela noite a lua também parecia querer se esconder da vista de todos, mas o homem não fazia questão de nenhuma delas. Não precisava de luz alguma.

Tudo o que necessitava estava ao alcance de suas mãos.

Com um suspiro quase inaudível lançou um último olhar para o amontoado de formas que era a cidade, e ao pensar que agora havia uma contribuição sua para aquele cenário, pela motivação que o movera, um pálido sorriso formou-se em seu reflexo. Mas ele afastou-se do vidro sem sequer dar-se conta de tal rápida ocorrência.

Pegou o copo cheio d’água que havia deixado em cima da mesa há poucos minutos e tomou uma pílula. Logo em seguida pegou outra. E outra. E mais outra. Continuou as engolindo enquanto assim conseguia, auxiliado pelo líquido, mesmo quando sua garganta parecia querer fechar-se para impedir o prosseguimento, ou quando as coisas ao seu redor começaram a ficar embaralhadas e desfocadas. Engoliu uma a uma até não encontrar mais nada ali para ingerir, e deixou o pote vazio atingir o chão com um som oco, pouco antes de seu próprio corpo ter o mesmo destino.

Seria rápido? Esperava que sim. Não se importava com a dor, de qualquer forma. Mas ela não veio. A letargia se espalhava rápido e implacável por todo seu corpo, como se realmente estivesse apenas muito, muito cansado. E estava... Como estava...

Mal sentia a crescente dificuldade em respirar, nem a falta de mobilidade dos membros, ou mesmo quando seus olhos começaram a se fechar; estava mergulhando em uma profunda e magnética escuridão, da qual não tinha a mínima esperança e vontade de tentar escapar. Rápido e indolor, quem diria.

Na manhã seguinte, quando viessem fazer a limpeza semanal do apartamento, encontrariam o corpo sem vida do homem e o choque seria imenso. Nos jornais, a notícia da morte do jovem e promissor arquiteto seria o prato cheio de inúmeras discussões, e o prédio inaugurado apenas dois dias antes ganharia ainda mais importância frente às circunstâncias. Mas poucos seriam capazes de notar que no final das contas, o semblante pálido e emagrecido revelava de maneira discreta o alívio pelo qual Gray Kinsy tanto ansiou.

“Eu não acredito que você fez isso. Achei que tinha dito para não me seguir” a voz irritada o saudou no enorme, e aparentemente sem fim, espaço etéreo onde se encontrava agora. Então aquilo era o pós-vida? Quer dizer que estava certo então ao não acreditar no ‘tormento eterno para os suicidas’, pensou com ironia.

Gray olhou para Daniel e sentiu a vida – metaforicamente falando, obviamente – inflar dentro de si pela primeira vez em muito tempo. Um enorme sorriso formou-se em seu rosto e ele não conseguiu mais desfaze-lo. Sem correrias, abraços apertados ou rios de lágrimas. Apenas uma felicidade tão absoluta, que dispensava tudo o mais.

“Eu tentei, mas acho que o destino não queria que eu esperasse mais” respondeu, os olhos finalmente brilhando como deveriam o ser sempre.

“Pelo jeito não queria mesmo” Daniel cedeu sem conseguir mais disfarçar a própria alegria que sentia “Você aguentou bem, irmãozinho” disse cheio de afeto, dando os primeiros passos para se aproximar do outro e estendendo-lhe a mão.

“Você sabia?” Gray indagou um pouco surpreso, mas ainda assim sem conseguir nem uma mínima perturbação em toda aquela paz, que tinha certeza, toda pessoa deveria conhecer um dia.

“Claro. O que acha que fiquei fazendo esse tempo todo? Tocando harpa?” riu o mais velho, sendo acompanhado pelo irmão, e o som leve que a combinação das duas vozes tão semelhantes formavam ecoou pela mistura de azul, branco e dourado que formava toda a ‘paisagem’.

“Então quer dizer que você viu a verdade? Mas... Se você sabia disso, então pôde ver também...”

Daniel não o deixou terminar, passou um dos braços por sobre seus ombros e seguiu conduzindo-o pelo infinito “Ah sim! Aquela águia ficou magnífica! E a estrutura então! Foi seu melhor trabalho, com certeza”

Se é que era possível, os cantos dos lábios de Gray ergueram-se ainda mais com aquilo.

Sem mais cabelos cortados, sem mais tristeza e dor nas feições ou corpos debilitados. Faces coradas e saudáveis, compridas e desalinhadas mechas escuras, brilhantes olhos claros, risos e provocações como sempre havia sido. Haviam voltado. Reflexo um do outro, mas acima de tudo, complementos recíprocos que jamais deveriam ter se separado.

De volta ao agora vazio apartamento que um dia pertenceu a certa dupla de irmãos, indo ao quarto em direção à maior cômoda de madeira que havia, abrindo-se a última gaveta e retirando de cima todos os papéis sem importância, havia um único par de folhas impressas que realmente importavam.

Quando essas folhas fossem achadas, se assim o fossem algum dia sem se perder em algum acaso, as pessoas descobririam o que motivara o súbito comportamento do último inquilino do lugar; a pressa, o excesso de trabalho, a aparência, a atitude final.

Ironicamente ou não, a mão da morte que levara o primeiro irmão, antes mesmo de conseguir tê-lo seguro em seus domínios já estendia a mesmíssima para o segundo, pronta a tocá-lo a nele deixar sua marca de entrega.

Pouco menos de um mês antes do falecimento de Daniel Kinsy, pelo terrível câncer pulmonar, foi descoberto que Gray Kinsy possuía em desenvolvimento já em fase preocupante, um tumor cerebral. O mais novo jamais disse palavra alguma acerca do assunto ao irmão ou a qualquer outra pessoa; sabia suas chances, e aceitava que eram poucas. Então após a morte do mais velho, por que se importaria em lutar contra o inevitável, em prolongar um martírio sem propósito algum? Contanto que aguentasse até seu projeto ser concluído, não necessitava de nenhum tempo extra. Os tratamentos foram recusados, e aceitou os remédios apenas para conseguir trabalhar e para ter um portal de saída tranquilo quando chegasse a hora; afinal, não necessitava de qualquer minuto a mais do que o necessário.

E se olhasse para trás agora, Gray concluiria que não errara. Não daria nada por aquele minuto a mais.

Porque finalmente estava completo novamente.


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Notas finais do capítulo

Como só estou escrevendo de vez em quando agora, pode não ter ficado um dos meus melhores trabalhos, mas foi feito de coração para você, Mihi. Eu amo demais tê-la como amiga e meros 600 Km jamais conseguirão diminuir isso ♥


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