Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 8
Memento Mori




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[Maria]

Eu olhava para cada um com temor. Os olhos dessas pessoas me fitando era intimidante. Mesmo me sentindo altamente desagradável sendo perscrutada e analisada por esses estranhos, tentei não demonstrar minha fraqueza abertamente. Sempre fui boa para ocultar meus sentimentos. Eu não me mostraria inferior a ninguém, não mesmo. Eu iria às profundezas do Inferno por isso.

Ergui-me na cadeira e olhei fixamente para o púlpito. Só ouvi o que diziam quando me atentei a voz repetindo alta e ecoante no Tribunal.

— Tem alguma observação, Maria? Algo que queira dizer a seu favor? — Minos me perguntou novamente.

Eu não soube o que dizer. Fechei os olhos tentando fugir dos olhares de julgamento e me mantive distante do que acontecia ao meu redor. Não tinha muito tempo para pensar, mas me permiti desligar. Em minha cabeça, várias perguntas e respostas passaram seguidas de súbitas desistências. Eu poderia justificar meus erros com erros, mentir, inventar qualquer coisa ao meu favor, mas tudo isso parecia mais fácil comparado ao que veio a mim, como um soco, me entregando algo que sempre tive horror. No espaço vazio e negro que fitava de olhos fechados eu vi uma caixa, uma caixa simples de aço, mas acorrentada de todos os lados. O cadeado grosso impedia qualquer acesso a ela. A peguei enquanto flutuava inerte em minha direção. Sondei seus detalhes apoiada em meus braços e assim que encarei o grande cadeado percebi que em minha mão direita eu segurava uma chave. Eu ponderei abri-la ali mesmo, saber que segredos ela escondia, mas o aspecto sombrio da chave e do cadeado me deixou receosa. Se ela estava trancada era por um motivo, e pelo menos ali, este parecia ser um grande motivo. Havia algo que não queria que eu a abrisse. Talvez fosse eu mesma. Imaginei elas se encaixando perfeitamente e o “click” se fazendo audível. Senti um tremor no chão e algo negro segurando minhas mãos em protesto. Fui mais forte.

Abri os olhos. Minha visão estava turva, sentia-me pesada, com a cabeça dolorida. Distingui naquelas formas nebulosas meus dois braços. Eles eram pequeninos, delicados e estavam amarrados com algum tipo de correia em algo que me mantinha imóvel. Ao meu lado, assustada, ouvia conscientemente uma risada distinta. Uma pessoa. Era uma voz conhecida, mas não sabia dizer de quem. Minha mente apagava novamente e quando voltava via alguém se usufruir de meu imaturo corpo. Seu corpo colado ao meu era repugnante. Mesmo fraca, gemia tentando me soltar de suas mãos fortes.

Vi que o mesmo ato se repetia em diversas situações em visões diferentes. Inconsciente ou não, eu podia sentir a dor de cada estocada em meu corpo nu. Por último, a visão mudou de atmosfera. Estava andando em um quarto conhecido segurando algo negro em minhas mãos, gelado e metálico. Avancei sobre o chão, onde garrafas jogadas lançavam a mim o cheiro forte de álcool. Fitei seu corpo desacordado na cama sozinho. Levantei o objeto mirando em sua cabeça. Não vacilei.

Aquelas visões em minha cabeça me mostraram o que em toda a minha vida escondi de mim mesma. No momento, eu hesitei em aceitar a dura verdade, pensando que minha mente me enganava, mas vi que aquilo fora real. Não tinha para quem recorrer. Meu passado se mostrou imutável. Deveria aceitá-lo.

— Maria? — Beatrice ao meu lado perguntou nervosa — Está se sentindo bem?

— Sim — assenti com a cabeça confiante.

— É a sua hora — cochichou disfarçadamente.

― Não tenho nada a falar. A culpa de minha morte é inteiramente minha. O suicídio foi em razão de meus atos em vida, ninguém nem nada me motivou a isso. O que fiz em vida, já está feito, e se tiver que arcar com isso, aceitarei – rebati no mesmo tom.

Minos, vendo a conversa, deu por ignorar minha suposta defesa. Não iria dizer nada por mim. Se fosse decidido algo, que decidissem por si mesmos. Sei que ele achou estranho nenhuma lamentação, pedidos de perdão ou algum semblante de arrependimento em minha face, mas seguiu com o evento apressado, já que havia outras almas em espera e seu trabalho eterno e desgastante não poderia parar.

— Se a réu não tem nada a dizer... — deu seu ultimato impaciente.

— Não tenho — interrompi friamente.

— Um momento, juiz. Temo que o réu precise de um tempo para pensar, ou que não esteja psicologicamente apta pra isso. Qualquer decisão premeditada pode ser injusta — Beatrice disse no mesmo momento.

— Eu estou ótima — ri.

— O que você pensa que está fazendo, Maria? — Beatrice cochichou próximo a meu ouvido.

Eu não sei”, respondi mentalmente.

— É você quem sabe — disse Minos indiferente — Devido a sua pontuação negativa, irá para o Inferno. Temos que definir sua área — virou-se para a bancada — Sabine, ative o campo de logística e coloque os dados de erros na contagem. Os cálculos provavelmente baterão com a probabilidade estimada, se não houver alterações desta vez — ele me olhou curioso.

Uma mulher, ruiva, se ajeitou na cadeira e começou a digitar apressadamente em um computador portátil. Assim que o barulho de teclas cessou, ela começou a fitar algo indiscreta. Olhou para cima e parou. Logo, o movimento com a cabeça se repetiu uniformemente entre todos da sala.

Fiz o mesmo e vi que acima de onde estava, o placar, antes negro, se acendera. O número zero estava nítido e marcado com as pequenas luzes do visor. A partir do momento em que começou a piscar, vários números começaram a correr pelo placar, subindo e diminuindo aleatoriamente em quantias que envolviam números gigantescos. Aos poucos a velocidade dos números no placar diminuiu, até que apenas um valor de três dígitos fosse exposto na tela. Todos olharam para o número e eu não sabia o que significava.

999

— Área 999. Jurisdição de Marbas. Trabalhará como operária em uma metalúrgica. Será destinada ao setor dos Inermes e responsável por parte da refeição dos demônios da Legião.

Não entendi o que ele disse de imediato. Na verdade, mal acreditei. Em minha cabeça, achei que fosse carregar pedras pesadas recebendo chicotadas eternamente como uma escrava egípcia, mas trabalhar como operária até que não era tão mal, dependendo do que viesse a fazer. Já não saberia dizer o mesmo sobre ser responsável pela alimentação de demônios. E se o alimento fosse eu? A ideia era pavorosa. Não fazia ideia do que demônios comiam. Cogitei ser sangue, mas logo em seguida repensei sobre a hipótese. Eu não possuía mais o mesmo sangue. Foi nessa hora que realmente notei que meu corpo não era mais o mesmo. Seria eternamente daquela forma. Tive uma estranha sensação de que todos no mundo ainda iriam presenciar isso tudo. Mas quanto aos demônios, iria descobrir na hora. Só de pensar em demônios avançando em meu pescoço ou qualquer região do corpo, sentia calafrios.

Beatrice levantou silenciosa, evitando meu olhar. Levou-me a uma porta lateral e me encontrei em uma sala aberta, rodeada por janelas de vitrais curvos. Cheguei próxima a elas para ver o que se dispunha do lado de fora. A visão era incrível. Uma verdadeira metrópole instaurada naquelas terras, centralizada pela torre da estação. Beatrice chegou a mim também encarando a vista da cidade que a estação favorecia.

― Mesmo na Linha, temos que comportar todas as almas. A alternativa mais viável foi a construção de moradias verticais. As almas que pelo menos chegam até aqui, através do trabalho, vivem realizando suas diversas funções incessantemente de maior parte burocrática. Existem centenas de tribunais e escritórios próprios para dar conta da demanda celestial aqui. Estamos a apenas a um passo do Inferno e do Paraíso. Para muitos, elevar aqui é mais difícil do que qualquer área infernal.

— Se a vida aqui na Linha é a mesma que a que tinham em Terra, por que ainda almejam ir ao Paraíso? Lá deve ser um tédio. Se pudesse me suicidar novamente, provavelmente faria isso lá.

— Há muitas coisas que não entende ainda. Nada é como você imagina. A vida aqui não é a mesma na Terra. Almas não sentem fome, não dormem e, pelo menos aqui, não se divertem. Você vive seu trabalho e isso a define. Todos podem chegar ao Paraíso e lá não é um tédio. Não posso definir minha hora, mas um dia voltarei. Tenho uma cota a cumprir, e você começará bem abaixo de mim. Área 999, lembre-se.

— Como esteve no Paraíso e por que está aqui hoje?

— Vamos, tem uma plataforma te esperando — ignorou Beatrice as perguntas de Maria.

Beatrice se virou altiva e seguiu de volta para a estação, pelo meio locomotivo usual da cidade, as cabines de linhas horizontais.


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