Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 7
Julgamento




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A sessão estava próxima. Maria aguardava sentada em uma sala de espera, ambientada por uma luminária ao canto esquerdo e mesinhas decorativas ao redor de outras pessoas em silêncio. Eram várias almas recém-chegadas, com seus respectivos guias, sentadas em estofados. Beatrice estava ao seu lado e talvez mais ansiosa que a outra. O relógio na parede oscilava com um tique-taque estridente e a cada segundo ela se via mais perto de enfrentar uma decisão fatídica. Maria não sabia se o seu passado seria capaz de justificar seu destino. Estava confusa, mas quieta.

— O que quer que aconteça hoje, Maria, acredite, é possível voltar atrás. Não é tão crucial quando você pensa que passará toda uma eternidade nesse mundo. Existem vários casos de almas que se elevaram após o julgamento e também de outras que decaíram quando tudo parecia dizer o contrário. O que importa é como agirá daqui para frente. Isto que irá ocorrer só define por onde começar uma nova trajetória e o quão difícil se tornará o seu recomeço.

— Tudo bem. Quando for minha vez, serei honesta e sincera.

— Contará bastante.

— E como funcionará o julgamento? — perguntou curiosa, pensando sobre o que encontraria a seguir.

— É um processo complexo. Eu, como sua guia, sou responsável por te trazer para este Tribunal. Existem centenas como este, espalhados pela cidade. Primeiro irão lhe apresentar sua situação, depois você irá depor, explicar os motivos de sua morte, relatar o que eles deixaram passar despercebido e que ache que merece importância. É de suma estimação que se mostre arrependida. Diga a eles o quanto lamenta, se puder, implore por perdão. Isso conta no resultado final significantemente. Se a culpa for compartilhada com alguém em vida você pode perder parte de sua pena. Haverá uma comissão de jurados, se conseguir convencer o júri, possuirá crédito para a decisão final, o que lhe ajudará na sentença que determinará seu destino... Só tome cuidado com uma pessoa em especial. Não o fite muito, ele pode estar de mau humor às vezes.

— Quem?

— Minos, o juiz. Evite seu sarcasmo, se mostre arrependida e temerosa, pois só assim você poderá se ajudar.

— Mais alguma coisa de que preciso saber?

— Ah, como poderia esquecer! — Beatrice bateu na testa virando os olhos. — Irei defender sua causa. Serei sua advogada. O que sei, pode virar o jogo, mas lavo minhas mãos quanto ao seu caso, pois seu destino não depende só de mim, mas principalmente de você.

O relógio continuava a bater incessante, mesmo que fosse pequeno seu toque ecoava por toda a sala num ritmo agonizante. Tic Tac. A porta se abriu.

— Maria Esperanza, por favor — uma mulher de trajes formais apareceu à porta e chamou a próxima da longa lista de espera.

Maria levantou-se, acompanhada de Beatrice e as duas entraram pelo enorme portão negro que separava aquela sala do recinto que era o Tribunal.

O lugar assustou Maria. Ela imaginava adentrar em mais uma daquelas salas burocráticas em que estivessem ordenadas algumas banquetas e a mesa tabular do juiz. Muito pelo contrário, o lugar fugia completamente do usual, tal era seu aparato. O tribunal era uma espécie de cúpula gigantesca, revestida de vitrais azulados e as paredes nas laterais de pedra escura. No alto, um enorme placar se situava sobre as cabeças de um seleto grupo de pessoas que preenchiam pequenos folhetos em mesas próximas às paredes. Ao notar o placar, Maria fitou-o intrigada, tentando fugir dos olhares do júri. As pessoas que estavam ali presentes vestiam-se formalmente e devolviam o olhar para a moça. No meio do espaço circular, rodeado pelas mesas, se situavam duas cadeiras e sobre elas um enorme lustre de cristal dependurado no teto. Fosse isso tudo perturbador, ela ainda não havia notado o púlpito frente às pequenas cadeiras. Atrás dele estava um homem que Maria supôs ser o mencionado por sua guia. Dava medo só por sua aparência.

Sob o púlpito havia uma grande placa metalizada com um nome: “Minos”, e embaixo do nome, “juiz celestial”, sua função. Estampou uma espécie de sorriso em sua face robusta ao ver Maria se sentando com Beatrice à sua frente. Era definitivamente grande, não só pela massa muscular como também era assustadoramente alto, proporcional a importância de seu posto. Possuía cabelos e uma espessa barba, negros, acompanhados de traços fortes.

Algumas pessoas começaram a cochichar baixo, provavelmente apostando em qual área do Inferno a garota pertenceria. As grossas sobrancelhas de Minos se ergueram, revelando sua feição nada sensível a réu.

— Silêncio! — bradou.

Os murmúrios cessaram abruptamente.

— Que se dê por iniciada a sessão de julgamento de... — leu alguma nota abaixo de seus olhos. — Maria Esperanza.

Uma mulher, no canto direito do Tribunal, sentada na primeira mesa próxima ao púlpito se levantou em seguida. Em sua mão havia um livro, e depois de um tempo, Maria pôde perceber que todos estavam acompanhados de um exemplar. O livro nem tão grosso, nem tão fino, contava uma história, a dela. Registrada pelas calejadas mãos de Destino, que grava fatos importantes da vida dos homens, o livro abordava muitas histórias desconhecidas por Maria, histórias de memórias apagadas, uma obra bibliográfica de lembranças negativas e positivas. Pode ser confuso abordar sobre isso agora, mas aprofundaremos mais sobre ele em outra hora.

— De acordo com as primeiras páginas de sua vida, — ela ergueu o livro. — nasceu em 23 de Dezembro, há exatos 19 anos. Fora abandonada ainda bebê, em uma viela nas proximidades da Igreja de Santiago de Compostela, que tanto frequentou quando criança. Sua mãe biológica, Catarina Dolores, estava passando por momentos difíceis na vida, drogava-se periodicamente, e por fim o vício fez deixá-la ao relento naquela noite. Pouco tempo depois ela veio até nós, vítima de overdose. Você poderia ter morrido se não fosse achada pela solene Irmã Conceição, que a criou junto de toda a Paróquia. O nome “Maria Esperanza” veio do episódio. Viveu parte da infância no orfanato católico da Igreja, e aos sete anos fora adotada. Sua infância na nova família foi difícil. Não se adaptou a vida de seus pais adotivos, Carmen e Ruan del Rei.

Um homem da mesma bancada se levantou e proferiu.

— Seus pais adotivos, donos de uma empresa farmacológica, queriam você como espólio para o que haviam construído juntos. O casal havia perdido o único filho de mesma idade, meses antes, vítima de intoxicação alimentar. Algumas páginas em branco no livro não revelam os motivos do ódio recorrente que sentia após episódios não descritos. Os parágrafos subsequentes estão sob jurisdição de uma comarca maior, sob revisão, ou não foram registrados.

A mulher continuou.

— Sua adolescência rebelde e conturbada foi motivo do afastamento da vida religiosa. Aos 15 anos, já possuía uma grande diferença de quando era criança. Sua balança já estava altamente desfavorável. As atrocidades morais e o desprezo pela vida reduziram drasticamente suas probabilidades de salvação em curto prazo. As diversas tentativas de suicídio, em vão, só aumentaram seu dano. Ao morrer por suicídio, um pecado mortal, sua conta fora fechada com a pontuação de 87465 pontos negativos.

A mulher se sentou e os outros ao seu lado começaram a anotar várias coisas em papéis. Provavelmente estavam fazendo contas ou somando algo devido às calculadoras na mesa.

Maria ficou chocada com o que a jovem moça de cabelos negros dissera a seu respeito. Aquela era sua vida. Nunca ouvira falar de sua mãe, jamais encontrara sequer um vestígio de quem seria a mulher que a havia concebido. Agora, pelo menos, ela tinha um nome e um pouco de sua história. Sabia então que ela estava morta, mas por que fora deixada sozinha ainda bebê? Sentiu-se tentada a perguntar, mas calou-se.

Pensou nas páginas em branco de sua vida e o que elas escondiam de tão importante que não queria revelar para eles. Não bastasse sua vida, mas também suas escrituras jaziam rompidas, alteradas. O branco revelava que mesmo consciente, ela mesma não se lembrava. Minos notou a reação na jovem, que parecia distraída com algo. O homem continuou a fitá-la com sua expressão séria. Após o término da fala da mulher, pediu alguma observação da réu.


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