Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 6
Arremate




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Quando chegou próximo ao limite da água, Norman viu que Clara tentava nadar, mas algo a estava puxando com força para o fundo do lago. Ninguém parecia notar seus gritos, assim como sua face desesperada a debater-se afundando no lago turvo. Ele havia se postado para mergulhar, mas antes de saltar, alguém o segurou com força pelo braço.

— Não faça isso — disse às suas costas.

Ele se virou assustado e encarou o homem de capuz escuro e sobretudo negro que o mantinha rigidamente pelos braços, eu. De repente percebeu que o parque movimentado em que estava se fora e agora se encontrava completamente vazio, somente ocupado por uma névoa que pacífica sobrevoava ao redor.

— Me solte!

— Primeiro: ela ficará bem, a menos que se jogue na água e tente fazer algo. Segundo: se continuar a puxar seu braço com essa força, será capaz de arrancá-lo sozinho.

— O que quer com minha filha?

— Com ela, nada. Meu assunto é com você. Já quanto a ele... — apontei para o meio do lago — Não sei bem, já que costuma mudar de humor rapidamente, então, nunca se sabe.

— O que devo fazer? — perguntou assustado, enquanto continuava a tentar se soltar.

— Deve morrer — disse seco.

Ele me olhou sério, como se não estivesse acreditando. E, apesar da expressão absurda, ele me deixou claro que alguma coisa estava se encaixando.

— O que? Que tipo de loucura é essa? Eu não quero morrer, seu desgraçado. Só quero a minha filha, me solte! — ele se agitava impaciente, mas não saía do lugar.

—Você morrerá de uma forma ou outra. Se aceitar vir comigo, não será por completo, já que só precisamos de uma coisa sua e logo voltará à vida.

— Vamos, me diga que palhaçada é essa. O que quer de mim? É dinheiro? Não seja esse o problema — apontou para o bolso.

— Não, o que quero é sua alma.

Ele riu, pois bem, não sabia quem eu era e tampouco imaginava do que era capaz. Daquele jeito as coisas ficariam complicadas e não tínhamos tempo. Resolvi brincar um pouquinho já que vi que seria difícil de lhe mostrar.

— Veja...

De dentro do lago, Clara jazia na água, inconsciente. Seu pequeno corpo boiava inerte e era levado por um enorme vulto escuro que se projetava das profundezas. O ser que a carregava estava imerso na água e, quanto mais se aproximava de nós dois, mais nítida se tornava sua forma monstruosa. Parecia ter enormes garras e ao menos três metros de altura, rodeado de escamas e barbatanas colossais. Seu corpo na água, porém, foi enganoso. Assim que saiu, surpreendeu Norman por se tratar de um simples jovem. “Corpo de jovem”. Possuía os tão famigerados olhos vermelhos e nos braços do mesmo estava Clara. Na água, sua sombra revelava seu tamanho real, totalmente desproporcional ao que se encontrava caminhando para a encosta.

— O que fez com minha filha? — Norman correu para o encontro do jovem assim que fora liberto por minhas mãos.

— Ainda não fiz...

No mesmo instante, Clara evaporou dos braços do outro como pó. Seus cabelos percorreram o ar por alguns segundos e logo sumiram totalmente, assim como o jovem prontamente numa fumaça negra. No olhar do pai, estava o desespero. Vira sua filha desaparecer diante dos olhos. Gritou pela súbita tristeza e ódio que sentira. Berrando de dor, ajoelhou-se no chão.

— Está vendo isso, Norman? Caso não esteja preparado, será muito pior.

Sendo verdade ou não, isso foi preciso. Ele precisava sentir medo. Se ele viesse de modo fácil, as chances de risco dobrariam e, talvez, ele fosse apenas um encosto. Por isso ele precisava passar no teste de pressão. Assim que disse isso, me ausentei do lugar sem ser notado, pelo mesmo método do outro, enquanto Norman continuava parado, intacto, curvado ao chão.

Por um breve momento, achei que estava chorando, bom, não posso assegurar-lhes disso, mas não creio que uma gota tenha saído de seus olhos naquele momento. O que ele viu foi chocante, sim, mas parte dele não queria acreditar e a outra ignorava tudo. Dentre todos, sua reação foi a mais adequada.

Fora descobrir depois, com os gritos em uníssono de Rebeca acompanhada de Clara, que tudo aquilo que viu não passou de uma manipulada ilusão. Clara estava sã e salva, tanto que corria em sua direção no mesmo parque de antes, com toda sua juventude, jogando seus cachos ao ar, perto da mãe que estava ao seu lado. O lugar onde estava reapareceu repleto de pessoas e livre daquelas estranhas névoas. Ficou claro que o havíamos enganado e ele havia acreditado facilmente, não sabendo, porém, que o que foi dito fosse verdade.

— Ei, que cara é essa? Parece que viu um fantasma — Rebeca ironizou — Essa pestinha aqui tinha ido ao playground logo ali na frente. Não foi difícil encontrá-la.

— Eu... Eu não estou me sentindo bem. Vamos embora — disse levantando-se do chão em que estava ajoelhado.

— Mas já? Nem são duas horas ainda. Os fogos serão mais tarde e estava nos meus planos seguir daqui para o La Fontaine.

— Esqueça. Ou vamos todos, ou vou sozinho. Não estou com cabeça para fogos ou restaurantes requintados — virou-se pra ela seguindo a trilha de terra.

— O que você tem, meu bem?

Ela o encarou curiosa, enquanto Clara ainda comia seu pudim ao lado em silêncio. Norman parou por um pouco, estava sobrecarregado, qualquer ação a seguir não seria bem pensada. Pegou o celular e discou para o primeiro de sua lista de contatos.

— Sanchez, venha logo, nós vamos embora — desligou em seguida.

— Não vamos a lugar algum enquanto não nos disser o que está acontecendo.

— Não é nada, será que não entende, inferno?! — gritou prestes a jogar o telefone em sua direção, caso não fosse interrompido antes por sua consciência tardia.

— Não fale assim com ela! — Clara se pôs diante da mãe, deixando seu pudim cair no chão.

Norman fitou a filha impassível. Talvez estivesse agindo de forma errada. Acabara de vê-la morta e não conseguia sentir um pingo de remorso por suas atitudes. Certamente essa reação o trouxe para a realidade que estava sendo vivenciada e esquecida.

— Deixe o papai Clarinha, já que ele quer ficar sozinho, vamos ficar nós duas aqui. Quanto a ele, que faça o que quiser — o olhou de esguio e se virou de mãos dadas à filha.

Ela sabia que o que ele mais odiava era que o fitassem diretamente com raiva. Ela poderia tolerar tudo dele, o amava, e mesmo que se sentisse melhor quando era sozinha, ainda assim não havia feito nada com a relação pela filha e pela esperança de que um dia ele mudasse.

Ele as viu saírem de volta ao passeio, de mãos dadas, seguindo para um lugar bem longe dali. Sentado num banco do parque, ele ficou a fitar o céu claro e azul a espera do motorista, observando aves voarem por entre as brancas nuvens com maestria. Tudo que ele queria no momento era algum tipo de explicação sobre o que estava acontecendo. Quem eram aqueles homens que o cercavam? Ele não sabia. Pensou na hipótese de loucura, mas sua lucidez nessa hora estava tão de lado quanto seu amor pelas coisas. Ele só ocupava sua cabeça com hipóteses e motivos que variavam de conspiração à praga.

Quando já estava desistindo de suas teorias, ele ouviu a conhecida buzina tocar por perto. Sanchez havia chegado e ele mal via a hora de estar em casa para se enfurnar em sua cama, já que estava se sentindo mal. Por um momento chegou até a pensar em ir à Igreja, ou consultar algum médium para lhe auxiliar, tirar suas dúvidas. Mas isso vindo dele? Um ser tão cético que duvidava até da existência de tais problemas? "Provavelmente", pensou, "estou mesmo louco".

— Não demore com a viagem, Sanchez. Quero chegar em casa o mais rápido possível — disse ao adentrar no carro.

O homem que estava à frente, não disse nada e ligou o carro. Norman, sentado, pôs-se a esperar calmo, pois sua casa não era tão longe assim.

— Foi bom rever a filha? Foi por pouco não? — o motorista perguntou.

Assim que ouviu a voz do sujeito, Norman fitou-o com mais atenção. Sanchez não costumava falar e a pergunta que deixou ao ar quase o petrificou.

— Quem é você? — soltou alto, de imediato.

O homem riu. Não se virou, mas continuou a guiar o carro.

— Bom, digamos que seja o amigo de um amigo.

Norman tentou abrir a porta, mas ela estava trancada e não adiantava forçar, pois ela parecia não abrir. Tentou achar o celular no bolso já que a janela blindada ao seu lado dificilmente se estilhaçaria.

— Está procurando por isso? — o homem lhe mostrou seu celular.

Norman engoliu em seco. Sem dúvidas, ele estava preso, entregue as pretensões daquele ser.

— O que você quer de mim?

— Nada, acalme-se — o homem disse tranquilamente. — Quero apenas conversar. Não há o que temer.

Seu reflexo no espelho retrovisor interno revelou que ele sorria, mesmo não mostrando seu rosto por completo, seus lábios crispados eram evidentes.

— Então quer dizer que hoje teve um pequeno encontro com ele, certo? Dante, nosso adorável Dante...

— Não conheço nenhum homem com esse nome! Acho que se confundiu de pessoa, agora me deixe sair daqui...

— Não, não... — balançou a cabeça. — As características batem. Arrogante, mesquinho, cético, quer mais? Norman Dumas, este é você...

O homem seguia pelas ruas de Nova Iorque às pressas e a cada esquina que contornava, Norman se deparava com lugares antes nunca vistos. Sabia que aquela era uma cidade grande, mas estavam adentrando por lugares estranhos, cinzentos e lúgubres de asfalto negro e muros antigos. Os prédios que corriam pela janela perdiam toda a saturação com o trajeto. Não pareciam ter vida.

— Onde estamos indo?

— Para um passeio, de certa forma, educativo. Já participou de alguma excursão antes, Norman?

― O que você quer com tudo isso?! ― gritou desconcertado.

― Se acalme, acho melhor se distrair, vamos papear. Por acaso, nesta sua vida de homem importante e culto que tem, já leu um livro chamado “A Divina Comédia”?

― Não, odeio comédias, e não entendi a relação com tudo isso. Vocês, bandidos, estão ficando a cada dia mais loucos! Em breve, não te dou muito tempo, vou te ver numa prisão...

― Não diria isso se fosse você, a prisão pode ser um destino de todos.

― O que quer dizer com isso?

— Bom, seria interessante já ter alguma noção do que lhe aguarda.

De fato, não era o descrito em minha obra que o aguardava e sim o escritor desta... Eu, Dante, quem vos narra. Como já deixei implícito, ele fora escolhido por mim, e claro, se fizesse tudo conforme o planejado estaria apto para um dever em particular. Se acertei ou não na escolha, bom... Saberão com o tempo.

A paisagem do lado de fora do carro não agradou os olhos do passageiro. Aquela era uma Nova Iorque diferente, desconhecida. Prédios cinza e negros compunham a massa de concreto urbana, mesmo que esporadicamente árvores retorcidas e sem folha alguma preenchessem sua visão. Acima deles se situava um céu nublado. “Estranho”, pensou, “o tempo lá fora não parecia dar sinal de se fechar”. Estranho fora também ele achar que estava na mesma cidade de antes, onde os raios de sol ainda eram vigorantes naquele dia.

— Pronto, estamos próximos...

Ainda confuso, Norman se silenciou uma vez que o que ele fazia ainda poderia se enquadrar como sequestro, mesmo este sendo de outra natureza.

O homem estacionou e saiu silencioso, logo as portas se destravaram, deixando Norman sair de seu carro. Ao pisar na calçada, um vento cortante o envolveu ríspido, impressionante pela força. Olhando para o lugar, tentou desvendar em qual parte da cidade que estava, mas não conseguiu ver qualquer semelhança com Nova Iorque e aquele ambiente. Não havia ninguém nas ruas, bem o contrário do que estava acostumado com o dia-a-dia fervilhante da metrópole. Mesmo assim, centrou-se na situação e voltou a encarar o homem, que se aproximava dele.

Norman ficou surpreso. Era o mesmo jovem que saíra do lago com sua filha naquela ilusão. Supôs que tivesse no máximo uns 20 anos, sendo alto demais. Parecia ter crescido depressa, pois era um rapaz esguio, mas de ombros largos. Possuía cabelos castanhos claros e baixos, e mesmo sorrindo não aparentava ser amigável. Estava de terno e usava óculos escuros. Seu charme era sem dúvidas, inconveniente. Isso insultou Norman profundamente, pois pensou estar nas mãos de um “moleque qualquer”, quase com a metade de sua idade. Isso foi o que achou, pois ele era mais velho que muitos humanos ainda em vida. Após fechar a porta, não teve tempo de falar nada, apenas aturou o contínuo sorriso do jovem que se virou e apontou para que o seguisse em direção a um prédio colossal.

O prédio era estratosférico. De base extremamente larga, sumia das vistas de seus observadores no térreo. Constituído de vitrais negros que refletiam uma luz fraca, seu design moderno quebrava as rupturas geométricas de sua forma. Não era retilíneo como os demais, era intercalado por infinitos andares e estes se distribuíam verticalmente até que suas estruturas sumissem de visão. Para Norman, era como ver um fio adentrando o céu. A Torre de Babel perdeu seu destaque com sua nova versão, “a ousadia da arquitetura”. Esta era a descrição perfeita para o monumento que desprezava as leis da física e ainda assim mantinha-se em pé, intacto.

Passaram pelo enorme portão rotatório e já estavam dentro de um estabelecimento muito elegante. Os pisos de mármore se estendiam infinitamente a sua frente, assim como uma série de pináculos e elevadores panorâmicos num espetáculo de vitrais e barras metálicas que se fundiam nas laterais.

Centenas de pessoas se movimentavam no local, e raios de luz provenientes do nada se infiltravam pela cúpula no teto, iluminando todo o ambiente. Ele se assustou por estar ali. Era muito diferente e ao mesmo tempo fascinante para um refém de primeira viagem. Observar e entender que tudo era lúdico demais para que ali existisse foi o estopim para que ele realmente tivesse certeza de que não estava mais em sua cidade. Com grandes palavras douradas no tapete de entrada, ele soube que era um lugar anormal: “Seja bem vindo à Central das Almas”.

O homem que o conduzia seguiu para um dos elevadores nos pináculos centrais do enorme salão de entrada, desviando da multidão a sua volta. Após entrarem, a porta de vidro se fechou sozinha e o homem se precipitou.

— Tribunal da Justiça, por favor.

Assim que disse, o elevador subiu, sumindo de vista daquele saguão e criando várias listras disformes que se formaram pela velocidade com que subiam o prédio. Ao atingirem certa altura, a cabine foi desacelerando até parar, mas a porta não se abriu. Assim que Norman pôde parar para respirar, sentiu um solavanco que o levou para a esquerda e logo estava sendo levado horizontalmente para o tal lugar de destino. Depois de parar pela segunda vez, a porta se abriu com um sonoro toque de fundo.

— Tribunal da Justiça, Departamento 16 — repetiu uma voz feminina de algum alto-falante acoplado ao teto.

Ele se encontrou frente a um enorme corredor bem iluminado de paredes vermelhas com listras douradas. Não podia ver seu fim, pois este se escondia atrás de alguém que os esperava. O homem, Norman já conhecia. Bom, pelo menos ele soube quem eu era naquele instante.

— Bom trabalho, Félix... No tempo estimado — disse quando os vi.


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