Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 5
A Guia




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Parada, olhando para todas aquelas pessoas, Maria fez o aconselhado. Não distante de onde estava, faixas luminescentes em forma de setas mostravam qual direção seguir. Pensou ser a única que as enxergava sendo somente ela que as seguia.

Olhando para as faces desconhecidas, viu que não era a única a se perguntar por que estava ali naquele lugar tão diferente. Ninguém imaginaria ser daquele jeito... Não nessa hora da “vida”.

Os vidros das paredes refletiam turvamente sua imagem seguindo as faixas pelo desconhecido. Seguiu-as até certo patamar, e quanto mais ela se aproximava, mais estas brilhavam. Porém, em um determinado momento da trajetória as faixas perderam o brilho e, situada sobre a última, uma mulher de cabelos muito negros e contrastantes olhos claros permanecia em pé, rente a massa de pessoas que avançavam em sua direção.

— Seja bem vinda — disse sorrindo quando se encontraram e ambas trocaram olhares.

— Obrigada — agradeceu com um pouco de insegurança.

— Creio que saiba como e por que veio parar aqui... Estou certa? — Maria continuou a fitá-la, em silêncio, porém com o habitual desdém nas expressões —Prazer. Meu nome é Beatrice e serei sua guia.

Beatrice era jovem e exalava sua beleza angelical com o sorriso que constantemente lhe cobria o rosto. Trajava um blazer e uma saia comportada acompanhados de óculos de grau, dando a ela um ar executivo.

— Guia? Preciso de guia para ir ao inferno? — disse dando de ombros e rindo de sua situação, atônita.

— Direta e concisa — disse a mulher sorrindo — Vejo que qualidades assim sejam bem vindas neste lugar. A maioria das pessoas tende a não entender muito bem o processo inicial.

― Que lugar é esse?

― Estamos na Central das Almas, centrada no que chamamos de Linha. Este lugar se situa no meio de duas dimensões totalmente opostas, uma vejo que já conhece, o Inferno, a outra, Paraíso. É aqui que tudo se decide, onde todos são separados. Mas temo lhe informar que não será tão fácil assim estabelecer seu destino. Há regras de funcionamento por aqui. Toda uma burocracia em nosso sistema, e será concedido a você um julgamento formal antes de qualquer sentença pré-estabelecida.

— Até por aqui? — riu irônica.

— Sim, aqui não é como muitos dizem ser. Se veio até mim, é por que foi designada ao julgamento. As faixas ajudam a distinguir as pessoas de seus destinos. Se você mesma diz, posso não ser a encarregada de te levar ao melhor deles. Entretanto, o que pregam em Terra é ambientado num lugar totalmente diferente do que poderá encontrar. Inferno não é só sinônimo de sofrimento, mas também de redenção. As pessoas sempre distinguiram Inferno de Purgatório na história, mas não é uma distinção inteiramente verdadeira, os dois são praticamente iguais, só se diferenciam na dificuldade. Às vezes, essa dificuldade toma proporções impossíveis, mas o que não deixa de ser com o tempo não é mesmo? A eternidade pode ajudar as pessoas nessas situações. Por ocorrência dos ensinamentos medievais que perduraram séculos no imaginário do homem, muitos ainda tem a mesma concepção extremista do que vão encontrar, mas o lugar de labaredas e demônios açoitadores não é mais o mesmo. Um dia fora daquele jeito, claro, mas assim como na história terrena, também passamos por diversas fases e conhecemos a modernidade.

— Uau, por essa eu não esperava. Um Inferno politicamente correto?

— Não diria isso sobre o Inferno de modo geral — ressaltou salientando bem as palavras enquanto olhava para Maria com o mesmo olhar de desaprovação que recebia da outra.

— Eu não esperava que fosse tão bem atendida por aqui. Todos sabem falar espanhol assim tão bem? — perguntou notando a fluência da mulher em sua língua.

— Por incrível que pareça, não estamos falando espanhol, embora, em sua cabeça, assim seja.

Maria estranhou aquele comentário.

— E o que acontece com quem vai... Você sabe, lá pra cima? — perguntou curiosa.

— Confesso que a última vez em que estive lá foi há um longo e remoto tempo atrás, muito distante do que nos encontramos agora e não sei te dizer com precisão em como o Paraíso se encontra, mas assim como lá em baixo, lá em cima evoluiu em maneiras positivas. A população de almas cresce dos dois lados em ritmo assustador, a cada dia temos mais e mais recém-chegados. Não haveria como ignorar os frutos do tempo e da humanidade.

— Do jeito que fala, parece que não devo temer ir ao Inferno. O que encontrarei caso vá para lá?

— O Inferno se localiza no subterrâneo, no qual há um conjunto de milhares de áreas, todas próximas, circundadas em uma fenda sem fim. Cada uma é liderada por um demônio em específico, e as almas designadas a eles vivem sob seus territórios. Os círculos originários da queda de Lúcifer foram expandidos para suportar a quantidade de almas instituídas ao Inferno. Por isso, todas as áreas cercam o subterrâneo em espiral. Apesar de todas serem integradas sistematicamente, cada uma possui suas individualidades, sendo por vezes muito diferentes umas das outras. Algumas positivas, outras nem tanto. Depende. Entretanto, para qualquer área que seja mandada inicialmente, você só poderá exercer sua função específica neste lugar, o que pode variar muito.

— O que teria que fazer? — perguntou confusa, olhando para a mulher a sua frente que a fitava séria com a curiosidade de saber seus motivos de morte.

— É o que temos que decidir, se for condenada, juntamente com sua área.

— Então, se for, não irão me levar para um barco tripulado por um homem chamado Caronte? Nem me jogarão em um poço de enxofre ou me colocarão em larva fervente? Isso é reconfortador.

Beatrice riu.

— Hmm, barco não, mas talvez nosso metrô. Já conhece nosso condutor de histórias terrenas? Caronte está no ramo há muito tempo, diga-se de passagem.

— Então ele realmente existe?

— Creio que muita coisa que você normalmente não acreditaria existe. Personagens históricos podem ser encontrados a qualquer momento em áreas abrangentes, dependendo de qual ela seja. Já ouviu aquela célebre frase “existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”?

— Claro... Você conhece Hamlet? — perguntou confusa após a pausa.

— Quem não conhece? Está em nossa biblioteca de acervo histórico terreno, assim como toda obra já feita na Terra. Eu o conheci pessoalmente... Shakespeare, há muito tempo atrás também fui sua guia.

— A essa altura não duvido de mais nada.

Beatrice segurou-a pela mão e a conduziu para um corredor próximo as escadarias de onde estava. Pararam frente a uma porta metálica, em que Beatrice apresentou um cartão de leitura magnética e assim que a porta se abriu, as duas entraram, parecendo a Maria ser um elevador espaçoso. Assim que a porta se fechou, Maria sentiu um pequeno solavanco para frente, e notou que ao invés de subir, estavam se locomovendo horizontalmente. Alguns minutos depois, que o movimento havia cessado, a porta se abriu e notou que se encontrava num cômodo cristalino, provavelmente em outro lugar. Tudo naquele ambiente possuía o mesmo tom leitoso propriamente de sonhos. A sua frente via um escritório básico, com uma mesa, alguns blocos de papel e um computador, dentre outros enfeites por detrás de sua estrutura vitral.

Maria sentou-se conforme o pedido da outra e ficou em silencio aguardando um pronunciamento.

— Isso foi... Estranho — disse Maria assim que se situou ao ambiente.

— Aqui é onde trabalho como pode ver. Sou mais uma entre milhares, claro. Dar conta de almas é um trabalho árduo, podendo não parecer, mas é árduo e praticamente eterno. O índice de recém-chegados cresce em ritmo alarmante.

— Você disse haver um julgamento, me explique o que isto significa.

— Pode ver isto, Maria? — apontou para a grande janela da parede a suas costas.

Enormes prédios de concreto cinzentos e vítreos se erguiam do chão naquela vista e, no meio da cidade, um prédio negro de proporções assustadoras ascendia ao céu. Era estranho para ela ver que o ambiente era familiar. A cor não era tão natural e o céu era praticamente cinza, exceto algumas partes brancas iluminadas sabe-se lá pelo quê.

— Uau, uma cidade? ― perguntou em tom irônico.

— Repleta de almas... E todas elas têm seu lugar por aqui. O meu dever é apenas guiá-la ao seu, seja ele qual for. Para isso precisarei saber onde estará situada... E o julgamento servirá para isso.

— Então eu realmente irei ao inferno? Não acho que mereça o “melhor lado”.

— Não posso garantir sua estadia definitiva em algum lugar. Tudo dependerá de suas ações. Como disse, o Inferno serve como redenção, então não será algo eterno e imutável. Eu, por exemplo, estou em ascensão há muitos séculos, diga-se de passagem, mas não consigo mais me elevar, empaquei neste patamar, na Linha, desde que atingi este posto acho que encontrei meu status adequado como guia.

— Como alguém se eleva? O que é isso?

— Trabalho árduo e incansável. Somos trabalhadores acima de tudo e, para cada área em especial, há uma cota de pontos conseguidos por trabalho e recompensa. Quando atingimos essa cota de pontos determinada pela área, nos elevamos de área e de função. Assim, seguimos suscetivelmente até o topo. Todas as áreas se localizam em um ranking inimaginavelmente grande. Em cima, o Paraíso, em baixo, a pior área infernal. Dizem que o trabalho lá não é muito agradável. Sei de algumas almas, bem famosas por sinal, que foram enviadas à áreas longínquas e de difícil acesso. Elas terão um enorme esforço de elevação, isso é, se assim quiserem. O que ordena sua colocação é a gravidade de seus atos, proporcionais ao seu lugar de destino. Então se acalme, não considero a hipótese de que uma garota como você mereça tais lugares...

— Você não me conhece.

— Ok, falaremos do importante. Daqui a exatas duas horas, terá que estar presente na corte de sentença.

— E isso é ruim?

— Depende.

— Só me diga uma coisa. Pra que serve essa corrente? — levantou os pulsos onde estava a mesma, balançando-a em tom de deboche.

Beatrice riu.

— Um lembrete de que não está mais viva. Elas te prendiam ao seu corpo, mas assim que morreu, suas correntes se romperam dele. Obviamente não voltarão a se unir a ele nunca mais, a não ser que você volte à vida. Essa crença é absurda, ninguém nunca voltou da morte. Alguns espertinhos tentam fazer de tudo para separá-las, mas nunca resulta em boas coisas. Há casos de declínio em quem tenta infligir regras. Entretanto, elas não ficarão aí para sempre. Quando atingir a Linha, elas sumirão, como se nunca tivessem existido — ela mostrou os pulsos livres — assim, poderá prosseguir em elevação para o Paraíso.

— Sei... O Paraíso... — Maria disse com ironia — O tão esperado encontro com Deus. Diz isso como se eu fosse fiel o bastante. Nem sei se quero isso, se um dia chegar até aqui, empacarei como você. Me recuso a subir mais. Ficarei eternamente no limbo das almas indecisas.

— Querida, isso não ajuda muito, fale algo assim perante o tribunal e sua portaria será decidida em segundos. Eles tendem a julgar suas convicções.

Beatrice, apesar de profissional, nunca gostou de ver uma alma designada a ela se comportar do jeito errado, apesar de já ter presenciado várias idas a áreas baixas. Ela lutava com unhas e dentes para que todos, sem exceção, conhecessem o Paraíso em que outrora esteve.

Era pouco tempo para conseguir fazer seu trabalho, então Beatrice começou a agir. Sentou-se em sua cadeira e abriu um compartimento de sua escrivaninha, imediatamente uma série de papéis foram apresentados à mesa.

— Sua ficha... Maria Es...

— Não ouse falar meu nome completo — Maria disse seca, mudando de humor drasticamente.

— Por que não? É um nome tão bonito. Consta como nome de batismo aqui.

— Sempre renunciei esse nome. Particularidades à parte, chame-me de May, foi o nome que adotei em vida, quando tinha amigos.

— May? Tem certeza? — Beatrice abaixou os óculos em tom provocativo.

— Sim, algo contra?

— Não, nada — disse calmamente — Registrarei o nome que quer como apelido, “May”... — ironizou ao dizer o nome — Chame-me de Bey, se quiser.

— Ninguém nunca achou graça no meu nome... Bey — devolveu a ironia.

As duas riram descontraídas por algum tempo. Beatrice sabia como tirar a tensão inicial de suas almas, ela era boa no que fazia.

Após o fim da descontração, Beatrice tirou o sorriso do rosto e voltou-se para Maria.

— Vamos lá. Qual foi o motivo? Por que suicídio? — suas íris azuis cristalinas e profundas sobrepuseram seu tom apaziguador. Maria não se pronunciou, continuou a fitá-la impassível — Eu realmente não preciso saber, ok? Não serei eu que enfrentarei um júri daqui a pouco.

— Você não precisa saber disso. Quem acha que é? Vem toda simpática pra começo de conversa e depois banca a sabe-tudo... Não me conhece, não sabe de nada! Só fica aí fazendo essa pose de “mãe protetora” fingindo que quer me ajudar — Maria gritou prestes a se levantar da cadeira, mas foi interrompida antes que a fizesse.

— E por acaso planeja ir a onde? Olhe só para onde está, acabou de chegar. É tarde demais para arrependimentos e você não deve fazer ideia do que está acontecendo. Não será a primeira a criar problemas que veio parar em minhas mãos, portanto, acalme-se.

Maria havia entendido, embora fosse persistente. Contou apenas o que quis, sem detalhes, deixando-a tirar suas próprias conclusões sobre os fatos. Depois de algumas tentativas, acabou por revelar-lhe certas situações de sua vida. Beatrice ouviu tudo atenciosamente, sendo que tinha consciência de que esta seria uma causa difícil. Suicídio era algo terrível para o júri. Após os relatos da garota, Beatrice se levantou e a acompanhou para fora do escritório. Assim que saíram do elevador horizontal, parou-a num dos corredores daquela enorme estação e foi acima de tudo sincera ao lhe comunicar sobre o julgamento.

— Tudo que me acabou de contar, eles já sabem. Todo seu histórico está bem arquivado, mas precisam ouvir sua versão, seus motivos. Se não quer contar a mim o que a levou ao pendor pela morte, terá que contar a eles. As palavras de um réu por aqui são mais importantes do que toda e qualquer prova contrária, elas possuem emoção, veracidade, eles sabem quando as pessoas estão mentindo. Durante o julgamento, somente você será capaz de se salvar. Portanto, venha comigo, já está quase na hora.


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