Olhos De Dante escrita por João Marcos Oliveira


Capítulo 4
Dupla Face




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Era de manhã quando Rebeca o acordou com carícias. Norman ainda estava com sono, mas deixou o toque de leve no peito prosseguir. O quarto iluminado pelo dia que se seguia era grande o bastante para ocupar duas da cama king size onde dormiam toda noite. Depois do ocorrido, a cama era o lugar mais temido de Norman. Seus pesadelos constantes o deixavam paranoico e assustado, mas não contava seus problemas para ninguém. Sempre havia se fechado para o mundo e via o trabalho de psicólogos como fraude. Cortinados perolados dançavam com a brisa matinal, contrastando com a escuridão envolvente em sua vida.

— Bom dia, meu amor — Rebeca disse sorridente para o companheiro. — Está pronto para o dia de hoje? Vai poder descansar um pouco, esquecer por um dia desse trabalho e curtir com a família. Hein? Vamos! Acorde bunda-mole — bateu em seu traseiro e riu, sob os lençóis.

— Ah, não vou a lugar algum — resmungou virando-se e cobrindo-se novamente.

— Mas Norman... — cabisbaixa, pensou em seu casamento, aflita. Ele não estava passando por uma fase boa e, apesar de seus planos e tentativas de reanimo, Norman nunca a dava ouvidos.

— Sem “mas” para mim. É não e pronto! Odeio esses feriados... Sem falar que estou de ressaca.

— Já disse que é o estresse. Não podemos ser uma família normal? Só por hoje...

Norman se virou entediado e observou a mulher levantar de roupas íntimas e seguir em direção ao banheiro. Alguns raios de sol daquela manhã iluminaram seu rosto sobre o travesseiro e ele se pôs a levantar também. Não estava no clima de feriado. Era quatro de Julho e aquela visão do homem ainda o atormentava esporadicamente, mesmo meses depois. Logo, voltou ao matinal aspecto sério.

Adentrando no quarto rosado, depois de atravessar o grande corredor próximo a sua suíte, fora em direção à cama situada no canto afastado do cômodo. Desviando-se dos brinquedos espalhados pelo chão pôde ver a garotinha de longos cabelos castanho-claros em sono profundo. Ao vê-la dormindo inerte, fora tocado em seu ponto fraco. A única com o qual ele se transformava.

Ele a amava e talvez fosse só com a pequenina que sua verdadeira essência se suprimia. Poderia não demonstrar isso e perder belos momentos junto as duas, mas algo bloqueava esse anseio que permanecia intacto, em algum lugar. Ele se dividia em desprezo e, por mais que detestasse, paixão, segregadas por uma personalidade complexa, sendo a última inerte e frequentemente inutilizada. Naquele momento, parte de seu amor pela filha havia se instaurado em sua pessoa, embora em boa parte de seu tempo, desse mais atenção a coisas materiais do que a sua família. Estava tão acostumado com sua rotina que as coisas que fugissem dela eram quase sempre ignoradas e, uma pequena febre, como a que ela tivera no fatídico dia do início de minha averiguação, não abalava sua personalidade intransigível.

Acariciou os cabelos da garota ao som da caixa de música que havia mandado comprarem para que a agradasse, em seu aniversário. A bailarina rodopiava intacta sobre o tocador enquanto a melodia adentrava em seus ouvidos.

— Papai? — sua sublime voz soou felicitando-o, tirando a expressão neutra de sua face.

— Vamos logo, acorde. Tem que se trocar. Hoje terá muitas coisas para fazer ― ao ver a filha, decidira aceitar a proposta da mulher. Ambos sorriram.

Quem dera Norman fosse assim o tempo todo... Pobre Clara.

O dia lá fora estava ensolarado. As árvores dispostas alinhadas circundavam a rua para o Central Park. De mãos dadas à mãe, Clara seguia saltitante para o lugar apropriado ao piquenique. No campo, diversas famílias aproveitavam o dia, se divertindo, conversando, vivendo suas vidas simples e felizes.

— Achei um lugar perfeito, Norman, venha! Vamos ficar aqui — Rebeca disse chamando-os para sentarem na sombra, situada abaixo de uma árvore vistosa.

Sob a toalha estendida, um farto café-da-manhã se montava para os três. Clara sorria triunfante desejando ao máximo o pudim de passas. Rebeca passara algum tempo montando as refeições antes de partir. Havia colocado muitas frutas, pães, bebidas lácteas e algumas guloseimas no cesto.

— Não, Clara, só mais tarde! — repreendeu o pai quando a filha se apressou para o pudim.

— Deixe ela — disse a mãe defendendo as vontades da garota.

A manhã se foi tranquila abaixo das árvores. Terminaram de recolher as coisas quando o sol já estava a pino. Satisfeitos, puseram-se a caminhar na orla do lago. Ainda tinham o dia todo pela frente e planos a serem decididos. No meio do caminho havia um vendedor de balões, alto, vestido de palhaço, que gritava sua entoada anunciando o produto de forma convidativa. Todas as cores eram bem distribuídas nas bexigas flutuantes e as crianças as adoravam.

— Quero a amarela, moço — Clara se adiantou sorridente.

O homem retribuiu o sorriso, logo, Norman se viu tendo que caçar moedas no bolso. Ao lhe entregar o simplório trocado que carregava consigo, vira de relance que os olhos do ambulante emitiam uma estranha luminescência rubra mesclada ao sorriso ambíguo, que o dava um aspecto medonho.

Aterrorizado, Norman fechou e abriu os olhos com força voltando a encarar o sujeito que havia voltado ao seu aspecto normal. Fosse somente uma mera ilusão, Norman se assustara. Por impulso descontou o medo em ódio desferindo-lhe um murro.

— Senhor... o que está fazendo? — berrou o homem sobressaltado apoiando-se no chão ao cair, sangrando no queixo. Enquanto se levantava, seus olhos voltaram a avermelhar-se e o sorriso se tornou mais forte, acompanhado de uma risada fraca.

Norman bufava de ódio e nem sabia ao menos o porquê. Só sabia que havia algo em seu interior o alertando que o que vira era mais real do que parecia. Rebeca olhou para ele como se o homem que encarava estivesse enlouquecido.

— O que pensa que está fazendo? — perguntou arqueando as sobrancelhas com a expressão de desapontamento nítida no rosto.

— Nada, só não estou me sentindo bem...

— Eu não tenho culpa de seus acessos de loucura, meu caro. Sou apenas um trabalhador honesto — disse o homem se recompondo.

— Já chega! Vamos logo... Já não se contentou em estragar nosso dia? — Rebecca disse se distanciando dos dois — Me desculpe por ele, senhor.

Norman seguiu sua esposa, angustiado. Não poderia deixar as coisas piorarem. Como se já não bastassem esses eventos sinistros que o perseguiam, ele ainda preferia não acreditar no ocorrido e se prender a problemas mais reais, não dando valor aos que julgava como imaginários. Comprometeu-se a aproveitar o dia.

— Não espera pelo o que há por vir, Norman — uma voz rouca soou próxima ao seu ouvido, acompanhada de um farfalhar incomum.

— Como disse? — sua pele arrepiou-se com a súbita tensão que sentiu após a voz ecoar.

Norman se virou tentando desvendar a situação, mas o homem não se encontrava mais lá. Apenas o vento preenchia seu lugar naquela trilha de terra vazia.

— Onde está Clara? — Rebeca perguntou ao notar a falta da filha.

— Estava com você. Não é possível que se descuidou dela...

— Estava ocupada com outra criança, uma bem maior — riu sarcástica — Nada justifica aquilo, Norman... Só por que ele te encarou?

— Você não viu o modo como ele me olhava. Ele não era humano.

— Agora seu discurso é esse? Não vamos mais discutir sobre isso, está bom? Trate de achar Clara, a culpa é sua. Provavelmente deve estar se divertindo por aí... Sorte a dela — disse apreensiva, desgostosa com Norman pela culpa do repentino sumiço, pensando onde sua filha poderia estar e o que aprontava no momento.

Rebeca ficou a aguardar sentada num banco próximo ao lago enquanto Norman corria procurando por Clara. O Central Park era muito grande para que ele a encontrasse de imediato. Caso ela estivesse perdida, poderia durar o dia inteiro. Porém, para sua sorte, ou nem tanta assim, algo chamou sua atenção. Pouco distante de onde estava, no céu, o mesmo balão amarelo sorridente de Clara sobrevoava as árvores, anunciando que ela estava próxima.

Ao notar o fato, correu para o lago de onde o balão provinha. No meio deste, a uma distância razoável da margem se encontrava sua filha, afogando, submergindo nas profundezas.


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