Premonição 7: Clube da Morte escrita por Lerd


Capítulo 3
Desertor


Notas iniciais do capítulo

Demorei um pouquinho, mas cá estou :D Espero que gostem e comentem esse capítulo! E ah! Ele está cheeeeeeeeeio de notas finais, mas só as leiam depois de ler o capítulo, já que elas contém spoilers ok?Enjoy! :D



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Um, dois, três. Análise das consequências.

Eu já vi isso, Cassiel disse para si mesmo. Eu já vi o Paul. Eu já vivi tudo isso.

O irmão cumprimentava a mãe e as outras mulheres ali presentes. Tina surpreendia-se com a aparição repentina do filho. Cassiel era uma estátua de sal. Jamal levantou-se e saiu de perto dele. Foi o irmão quem o tirou de seus devaneios:

— Você voltou. Você fez falta, carinha.

Dessa vez, não esperou que o irmão lhe oferecesse a mão para levantar. Começou a respirar fortemente e então bateu várias vezes em sua cabeça, sentindo-a explodir de dor. Paul assustou-se. Todas as mulheres pareceram preocupadas, e foi Tina quem disse:

— Filho? Filho, você está me assustando...

Foi só então que ele abriu a boca para falar:

— Vai acontecer um acidente no zoológico. Os bichos vão ser soltos, vai ser um caos. Os elefantes vão pisotear todo mundo, os leões vão me comer! Eles vão comer a todos nós... — E deixou algumas lágrimas escorrerem. Não eram lágrimas pelo que havia visto, mas lágrimas pela dor insuportável que subitamente acometera sua cabeça.

Tina o abraçou, enquanto Grace, Marissa, Erika e Paul não sabiam o que fazer. Jamal não parecia entender nada. Erika temeu que Cassiel pudesse estar assustando o menino, mas o homem parecia tão abalado que ela não ousou dizer uma palavra. Vai acontecer um acidente no zoológico? Que história é essa? Ele é algum tipo de vidente?

Cassiel então começou a puxar a mãe pelas mãos, gritando:

— Por favor, me sigam. Pelo amor de Deus. Vocês não podem ficar aqui. Eu vi no meu pensamento. Eu vi todos nós morrendo... Eu... Eu...

Erika murmurou para Marissa:

— Ele está transtornado. O que a gente faz?

A loira respondeu:

— Vamos embora. O Jamal já está um pouco assustado, a gente volta outro dia. Eu não vou conseguir aproveitar o passeio sabendo que o Cassiel está mal assim.

A parceira concordou com um aceno e as duas seguiram de mãos dadas com Jamal. Apenas Paul e Grace ficaram para trás.

— Eu devia saber que ele não estava bem... — Paul resmungou.

— Como assim? — A oriental perguntou. Ela não sabia direito como agir ou o que dizer. Nem pensava direito no que Cassiel havia dito, mas no estado em que se encontrava. Ele não está bem...

— Ele não está bem desde que chegou da Síria. — Paul leu seus pensamentos. — Eu falei com ele várias vezes por telefone, e ele vivia dizendo coisas desconexas. É a guerra, Grace. A guerra fode com a cabeça das pessoas. — E saiu andando para o lado oposto, para dentro do zoológico.

A oriental surpreendeu-se com aquilo:

— Para onde você está indo?

— Eu vou esfriar a cabeça. Fala pra mamãe que depois eu encontro com ela.

Grace não soube o que dizer, então apenas concordou, meneando a cabeça positivamente. Seguiu para fora do parque a passos rápidos.

x-x-x-x-x

De onde estava, no seu banco, Crystal ouvira todo o discurso do rapaz loiro. Por um breve segundo, acreditou nele. Jamais presenciara qualquer fenômeno paranormal, especialmente uma precognição, mas acreditava que elas existissem. Sua religião era neutra em relação ao assunto, deixando a questão em aberto e dizendo que a sensitividade era complicada demais para ser avaliada. Em geral os wiccas acreditavam que fosse possível alguém prever o futuro, mas isso não era uma regra.

Crystal era uma dessas pessoas. Olhou a capa de seu livro por alguns segundos e então se decidiu. Limpou o vestido de uma poeira inexistente e seguiu a passos rápidos para fora do zoológico. Seu dia já estava arruinado de qualquer forma, mesmo que o rapaz fosse apenas um louco. Preferia pecar agindo a pecar por omissão. Além disso, o loiro não parecia ser alguém mentalmente perturbado. Parecia ser apenas alguém fechado, sofrido. Alguém que precisava de cuidados.

Subitamente Crystal sentiu uma incompreensível ternura.

x-x-x-x-x

Cassiel seguia para fora do parque conversando com as mulheres, um pouco mais calmo:

— Era como se eu estivesse vivendo aquele momento, sabe? Eu vi coisas horríveis, coisas indescritíveis... — Olhou para Erika e ela estava encarando-o com uma expressão carrancuda. Eu estou assustando o garoto. Ela está preocupada com ele. Eu faria o mesmo com a minha Julia. E então se calou.

Ulysses percebeu a figura de Erika há alguns metros. Themis também, e foi ela quem apontou:

— Olha, é a sua chefe.

— É sim. E está acompanhada de muitas pessoas. Isso é novo.

— Por quê? A Erika não tem muitos amigos?

— Não na redação. — Ele disse.

Erika ainda estava em seu campo de visão quando ele viu que o rapaz que estava ao lado dela parecia nervoso. Isso é curioso. Seu instinto de jornalista foi imediatamente ativado. Ele precisava saber o que estava acontecendo. Saber quem era aquele homem e porque ele era amigo de Erika. Ele e Themis ficaram uns dois segundos em silêncio. Foi Ulysses quem disse:

— Vem. Vamos embora.

— Por quê? O dia está tão lindo...

— Exatamente. Lindo demais para gastarmos em um zoológico sentindo o cheiro da merda dos elefantes. Vem, amor.

Themis arqueou a sobrancelha e riu. Seguiu de mãos dadas com seu parceiro.

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Cody estava entrando no zoológico quando viu Marissa e Erika saindo dele. Jamal estava ali também. O rapaz foi correndo na direção das duas. Cumprimentou apenas o menino:

— Oi rapaz.

— Oi tio Cody. — Ele respondeu.

O fato de ele chamar o tatuado de “tio” nada tinha a ver com o parentesco que eles estavam desenvolvendo. Estava era relacionado com um hábito que o menino tinha de chamar qualquer adulto de “tia” ou “tio”. Mesmo assim, Cody gostava de ouvir aquilo. Sentia-se, de uma forma estranha, amado.

— Oi Tina. Garota do chapéu maneiro. Cara. — Ele disse, se referindo à Grace e Cassiel.

— O que você está fazendo aqui, Cody? — Marissa perguntou gentilmente.

— Eu vim esfriar a cabeça, tomar um sorvete com vocês. Mas pelo jeito vocês estão de saída né?

— Aham. O Jamal está cansado.

— Não estou não. — O menino protestou. Cody riu.

Cassiel então olhou para trás, subitamente lembrando-se de algo. Paul. Como eu pude perdê-lo de vista? Voltou correndo para dentro do zoológico.

— Filho! — Tina gritou, sem entender nada.

Ele não se dignou a respondê-la. Precisava retirar o irmão do zoológico antes que fosse tarde demais.

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— Você tem certeza? — Kitty disse, ao telefone.

Certeza absoluta. O Bunny Face saiu do zoológico. Vocês precisam ir atrás dele antes que ele perceba o deslize e se livre do celular.

A inspetora concordou com um aceno e chamou Diego com o dedo. O homem não entendeu nada, mas a seguiu. Era sempre assim. Quando ela desligou o celular, explicou a situação:

— O Cara de Coelho já saiu. Nós vamos perdê-lo.

E saíram do zoológico correndo o mais rápido que podiam.

x-x-x-x-x

Cassiel olhava para todos os lados procurando o irmão. Um, dois, três. Análise das consequências. Ele precisava achar Paul antes que o furgão o atropelasse. Mas será que aquilo aconteceria? Ele já havia causado uma mudança no futuro que previra. Grace, por exemplo, já não estava mais ali. O irmão poderia estar em um lugar totalmente diferente, onde não seria atingido pelo veículo.

Mesmo assim, as coisas sairiam do controle. Os bichos escapariam. Paul acabaria se ferindo de uma maneira ou de outra.

Acabou localizando o irmão mais rápido do que imaginou. Infelizmente, a mudança no rumo dos acontecimentos não alterara muita coisa. A consequência seria a mesma.

Pela segunda vez, o arrepio o atingiu como um raio.

Pela segunda vez, ouviu um apito.

Pela segunda vez, viu o disco de frisbee e viu tudo o que havia visto em sua visão. Dessa vez não havia Grace, mas Paul se afastara para pegar o objeto e entregar aos seus donos mesmo assim.

Pela segunda vez, não houve nada que Cassiel pudesse fazer.

Pela segunda vez, o motorista não teve tempo de frear.

O que restou no chão foi uma massa vermelha e disforme.

Dessa vez, Cassiel abaixou a cabeça e vomitou.

Quando ouviu o rugido, soube que precisava correr o mais rápido que pudesse.

Foi fácil sem a mãe nos braços. Em segundos estava fora do zoológico, em segurança. Erika trocava algumas palavras com um rapaz. Cassiel o reconheceu de imediato. Ele foi o que levou o choque e bateu a cabeça. Por algum motivo ele também havia saído antes de o acidente acontecer.

Antes que tivesse tempo de falar com a mãe sobre Paul, várias viaturas cercaram o local. Policiais gritavam frases e mandavam todos entrarem em seus carros e irem embora. Ulysses despediu-se rapidamente da chefe e seguiu com a noiva. A ruiva de alargador da minha visão, Cassiel percebeu.

— O que está acontecendo? — Tina perguntou ao filho. — Cadê o seu irmão?

Cassiel não conseguiu responder. Olhou para os lados e Marissa, Erika, Jamal e o rapaz de dois metros não estavam mais ali. Ao lembrar-se dele, pela terceira vez reconheceu alguém de sua visão. Ele era o que estava entre os dentes do leão na cela. Oh.

A quarta estranha conhecida foi vista logo em seguida. Como um vulto, ela passou por ele com seu colar de pentagrama e seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Pegou uma bicicleta vermelha de cestinha e seguiu pedalando. Em segundos só restavam Cassiel, Grace e a mãe.

Foi quando uma mulher negra se aproximou dos três.

— Vocês precisam ir embora. Houve um acidente.

Eu também conheço você, Cassiel disse mentalmente. O mesmo valia para o bonitão forte que estava ao lado dela. Ambos morriam em sua visão. Por que todas essas pessoas estão aqui fora e não lá dentro? Será que eu indiretamente fiz com que todas elas saíssem do acidente? Podia ser possível. Como uma cadeia de eventos, um efeito dominó. O efeito borboleta, pensou.

Kitty havia desistido da captura do Bunny Face. Ele já podia estar longe, e as prioridades haviam se tornado outras. Ela não estava ali para ajudar no incidente do zoológico, mas agora aquela era a sua prioridade máxima. Salvar pessoas. Isso sempre estaria na frente da captura de um assassino. Era uma lógica que a mulher não compreendia, mas seguia rigorosamente.

— Mas o meu filho está aí dentro! Eu preciso ir atrás dele! — Tina esbravejou.

— Senhora, isso não é aconselhável. Entre em seu carro, é o mais seguro a se fazer.

— Mas é o meu filho! Você não está entendendo! — A mulher gritou, e então tentou correr para dentro do zoológico. Kitty segurou-a gentil, mas firmemente. Cassiel não se opôs.

— Leve a sua mãe para um lugar seguro, por favor. — Diego disse à Cassiel. O militar assentiu com a cabeça, resignado. Sabia o que havia acontecido à Paul. Não havia mais nada que eles pudessem fazer.

Ele e Grace seguiram amparando Tina, que não parava de repetir que precisava ir atrás de Paul. A oriental olhou para o rapaz e com apenas um vislumbre de seus olhos soube o que havia acontecido. Era por isso que ele estava tão alterado quando voltou correndo para o zoológico. Ele estava indo atrás do irmão. Pela maneira como estava agindo, infelizmente não conseguira salvá-lo.

Os três entraram no fusca e ficaram vários minutos em silêncio. Então Grace deu a partida, mesmo com os protestos de Tina.

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Crystal deixou a bicicleta na varanda e destrancou a porta de sua casa. Era fim de tarde, e ela ainda não havia conseguido tirar o rapaz loiro da cabeça. As viaturas no zoológico quando ela estava saindo de lá... Será que ele realmente havia previsto um acidente?

Ligou a TV. Uma fresta de luz entrava pela janela. A casa estava imersa em um silêncio absoluto.

— Patricia! Bebê! — Gritou, e não demorou muito para a coruja voar até a sala.

A garota sorriu e acariciou a cabeça da ave. Ela então seguiu até seu quarto e pegou um dos ratinhos da gaiola que ficava em cima do guarda-roupa. Disse:

— Desculpa, parceiro.

Voltou para a sala e entregou o bicho para a coruja. O roedor não sofreu, já que Patricia o matou com apenas um movimento. Enquanto ela terminava de comer o ratinho, Crystal foi preparar sua própria comida. Abriu a geladeira e retirou uma bacia com alfaces frescas que havia lavado antes de ir ao zoológico. Decidiu lavá-las mais uma vez, seguindo até a pia.

Já somam trinta o número de mortos no acidente ocorrido nessa tarde no Roar Zoo. Uma falha mecânica acabou soltando diversos animais pelo parque, no que pode ser descrito como um pandemônio completo. Policiais e especialistas já controlaram a situação há algumas horas, injetando tranquilizantes em todos os bichos. As vítimas animais já somam quatro: um falcão, dois leões e um dos dois elefantes do zoológico, o macho. A fêmea conseguiu ser domada e permanece em sua jaula. Vale lembrar que este é um acontecimento inédito na história dos Estados Unidos, já que nunca antes...

E então a televisão saiu do ar, deixando uma tela cinza e um ruído insuportável. Crystal pegou o controle remoto em cima do balcão da cozinha e desligou o aparelho. Tremia. Eu poderia ter morrido. Se eu não tivesse acreditado naquele rapaz, há essa hora eu estaria morta.

Sentou-se no sofá, nervosa. Patricia estava parada, de pé, no encosto. Nenhuma das duas disse coisa alguma pelos vários minutos que se seguiram.

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— Isso é inacreditável. — Foi tudo o que Erika conseguiu dizer após ver o noticiário. Marissa e Cody também estavam na sala assistindo ao mesmo programa.

— Ele realmente previu essa merda toda. Caramba! — Marissa exclamou.

Elas já haviam contado ao rapaz sobre o ocorrido no zoológico e sobre o real motivo de eles estarem indo pra casa tão cedo. Cody não expressou nenhuma reação. Pelo menos não até aquele momento:

— Isso é a maior doideira, cara. E pensar que era pra gente estar aí. Quero dizer, se o cara não tivesse acabado com o programa de vocês, eu teria entrado no zoológico. A gente podia estar morto a uma hora dessas...

Aquela frase fez Erika ficar completamente arrepiada.

— Como isso é possível? — Foi tudo o que ela disse. — Premonições não existem.

— Não tem outra explicação. — Marissa falou. — Não tinha como o Cassiel saber que isso aconteceria...

Erika foi obrigada a concordar. Então se lembrou de algo:

— E o Paul? Eu não o vi saindo do zoológico com a gente...

Marissa soltou um gritinho. Pegou o telefone e discou o número de Cassiel. Surpreendentemente quem atendeu foi Grace. Ela educadamente disse que nem a Tina e nem o Cassiel podiam atender. A loira perguntou por Paul e a coreana suspirou. Por fim disse:

Ele estava lá dentro na hora do acidente. A gente ainda não sabe se ele morreu ou não, já que a polícia ainda não divulgou nenhuma lista das vítimas, mas a Tina está inconsolável.

A médica agradeceu a informação e se despediu. Erika e Cody haviam ouvido tudo o que Grace dissera, já que Marissa deixou o telefone em viva-voz. Foi o rapaz quem disse:

— Caralho...

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Tina estava trancada em seu quarto desde a hora que eles chegaram do zoológico. Cassiel não pediu que ela saísse uma única vez. Não contara a ela que já sabia que Paul estava morto, mas a mulher parecia ter visto em seus olhos, assim como Grace. Ele era muito transparente, muito claro. Qualquer pessoa podia ver através de Cassiel.

Grace estava sentada no sofá com Julia aos seus pés, brincando com alguns blocos de madeira. Cassiel aproximou-se e se sentou ao lado dela.

— Obrigado pelo apoio, Grace. Eu não teria conseguido lidar com isso tudo sozinho.

A garota concordou com um aceno de cabeça. Evitou o contato visual com o rapaz. Assim como ele, ela era bastante explícita. Não conseguiria esconder o que pensava. Seu olhar a denunciava.

— Você precisa de ajuda com mais alguma coisa? Quer que eu faça uma mamadeira pra Julia ou algo assim? Quero dizer, a Tina não está em condições...

Cassiel sorriu tristemente e agradeceu, dizendo:

— Não precisa, obrigado. E obrigado por não me pedir respostas.

— Respostas?

— É. — Ele garantiu. — Como eu sabia que o zoológico iria virar aquele caos e tudo mais...

— Mas você já me contou. Você viu na sua cabeça. Eu acredito em você.

O rapaz se surpreendeu com aquilo. Não esperava que alguém acreditasse nele, mas não era surpresa que se alguém fosse acreditar, fosse ser Grace. Ela era a pessoa mais sensível que ele já havia conhecido.

— Bom, então eu vou indo. — Ela disse, se levantando do sofá.

— Você vai a pé? — Cassiel perguntou.

— Oh! Que cabeça a minha. Posso usar o seu telefone para pedir um táxi? Eu deixei o meu celular em casa...

O loiro concordou com a cabeça.

— Só não te ofereço uma carona porque eu ainda estou inseguro com a direção e tudo mais...

Grace entendia. Em minutos o táxi chegava à porta da casa dos Hendrix e a coreana partia. Quando ela saiu, Cassiel sentiu-se terrivelmente sozinho, mesmo estando na companhia de sua filha, a quem amava mais do que a si mesmo.

x-x-x-x-x

Eram duas da manhã e Cassiel dormia.

Acordou com os passos em seu quarto. Dormia nu, então se levantou, sentou na cama e esfregou os olhos. Quando a visão se tornou nítida, percebeu que a porta estava aberta, embora não houvesse ninguém ali.

Colocou uma cueca e saiu.

Encontrou Tina no andar de baixo, sentada em sua cadeira almofadada. Ela o percebeu mesmo antes de o rapaz descer as escadas.

— Por quê? — Foi tudo o que a mulher disse.

— Porque o quê?

— Por que você tinha que fazer isso?

O rapaz não entendia. Gaguejou ao dizer:

— Isso o quê? Do que você tá falando, mãe?

Houve alguns segundos de silêncio. Então lágrimas correram pelo rosto de Tina quando ela disse:

— Isso. Com o seu irmão. Por quê?

— Mas caramba, eu já te disse que eu não fiz nada! Eu até tentei salvar o Paul, eu corri pra dentro do zoológico e...

— Cala a boca! — A mulher esbravejou, e Cassiel se sentiu como quando tinha seis anos. Essa era uma habilidade que apenas os membros de sua família tinham. Cassiel não temia nada: não tinha medo de animais, de fogo, de água, de altura, da morte. Nada. Mas, por algum motivo que só a psicanálise poderia explicar, temia sua família. Não um tipo de temor como se eles fossem lhe fazer algum mal, mas um temor de autoridade. Ele não ousava responder Tina ou seu irmão. Não sabia o motivo, mas sentia em seu íntimo que era algo errado.

Engoliu em seco. Tina continuou:

— Você nunca gostou do Paul. Nunca.

— Mãe... — Tentou, mas antes mesmo que ela o interrompesse, se calou.

— Nunca. Você sempre teve essa rixa estúpida e irracional com ele. Desde sempre. Vocês sempre estavam competindo um com o outro, em qualquer coisa que fosse. Jogos de futebol, videogame, notas. Tudo. Eu sempre achei que fosse algo saudável, sabe? — E ela sorriu morbidamente. — Irmãos competem, é natural. Eu não via nada de ruim nisso. Oh meu Deus, como eu fui estúpida! — E então Tina irrompeu em lágrimas.

Cassiel continuou parado, apenas de cueca, há alguns metros da mãe.

— Eu sempre amei e sempre vou amar vocês dois com a mesma intensidade. Eu não tenho escolha, é algo impensável amar mais um do que o outro. Vocês dois fazem parte de mim. Vocês dois saíram daqui de dentro. — E ela tocou a própria barriga. — Vocês são meus anjos.

Apesar de não ela não ter dito, Cassiel sabia que em seguida viria um “mas”.

— Então porque você tem que ser assim, Cassiel? Por quê? O seu irmão só me deu alegrias. Ele sempre foi mais carinhoso, mais prestativo, mais gentil... Até as notas dele sempre foram superiores as suas. Mas e daí? Isso, pra uma mãe, não significa muita coisa. Mas então você se transformou mais ainda. Tudo começou com aquele maldito dia em que você teve a maldita ideia de se alistar nesse maldito exército.

— Eu amo a minha pátria. Eu amo a minha corporação com a mesma intensidade com que eu amo a minha família. — O rapaz disse de maneira firme.

— Eu sei. — Tina concordou, resignada. — E essa é a pior coisa de todas. Esse seu “amor” — e ela fez as aspas com os dedos — só me trouxe infelicidades. Meu coração parou quando você saiu dessa casa pra ir pra Síria. Naquele dia eu morri um pouquinho. E então você sumiu. Dois anos, meu filho. Dois anos! Meu coração voltou a bater apenas pra ser brutalmente dilacerado. Eu achei que você tinha morrido, Cassiel. Eu realmente achei. E eu sei que isso vai doer muito em você, mas eu aceitei, meu filho. Eu pedi o apoio de Deus e aceitei a sua partida.

Aquela frase foi como um soco no estômago de Cassiel. Nem a minha própria mãe...

— A Julia me deu forças pra continuar. Eu não tinha mais você, mas eu a tinha. E ela é tão linda... E nós estávamos aprendendo a viver, só nós duas. Sem você, Cassiel. Porque você tinha partido.

Cassiel foi obrigado a se sentar. Sentia as pernas bambas, emocionalmente exausto, pronto para cair.

— Mas você estava vivo. E você voltou pros meus braços, e eu senti que eu estava completa de novo. Meus dois filhos estavam aqui, sãos e salvos. O dia mais feliz da minha vida foi o dia em que você pisou de novo nessa casa.

Por algum motivo, o rapaz não conseguiu derrubar sequer uma lágrima, mesmo vendo a mãe parar o discurso várias vezes pra enxugar os olhos.

— Porém... E eu tenho ideia de o quanto isso vai te doer... Mas eu não posso mentir. Eu não posso. Se eu soubesse que o dia em que você pisou de novo nessa casa, as coisas fossem caminhar para o dia de hoje... Oh, o meu Paul! — E então a mulher colocou as duas mãos no coração. — Eu desejaria que você jamais tivesse voltado. Eu tinha aceitado a sua perda. Eu tinha chorado a sua morte. Eu estava triste, mas em paz. E hoje, Cassiel... Eu acho que eu nunca mais vou estar em paz. Eu não perdi o meu Paul numa guerra estúpida em que ele se meteu porque quis... — Aquela frase fez o sangue de Cassiel ferver. — Eu o perdi por algum motivo que eu não compreendo, e isso é o pior. Eu não compreendo, porém eu tenho certeza de uma coisa: você é responsável.

A última sentença foi a gota d’água. Cassiel abaixou a cabeça, explodindo de raiva. Ele tinha noção de que ficava vermelho com facilidade, de modo que não era possível esconder sua ira. Pegou a primeira coisa que viu, um abajur que estava na mesinha ao seu lado, e o jogou com toda a força na parede. O objeto explodiu em dezenas de pedaços. Tina tremeu.

Cassiel não foi capaz de proferir uma única palavra. Jamais seria. Aquela mulher era tudo o que ele mais respeitava no mundo. Tudo o que ela dissera, para ele, fez com que seu mundo desmoronasse.

Sabia que se não fosse por Julia, subiria até o quarto e faria um laço em seu pescoço.

Fez diferente, porém. Subiu até o quarto e retirou uma mala de cima do guarda-roupa. Começou a jogar todas as peças ali dentro, até que ela estivesse cheia e o armário estivesse vazio. Vestiu-se com a primeira coisa que encontrou: uma camiseta camuflada e uma calça jeans surrada. Colocou um par de coturnos negros sem meia e os amarrou de maneira prática. Em seguida foi até o quarto da filha. Tina o observou de maneira surpresa.

Ele então pegou uma enorme bolsa cor de rosa e começou a colocar todas as roupas da filha ali dentro. Não conseguiu esvaziar o armário: Julia tinha muito mais roupas do que ele. Não pegou nenhuma fralda, mas supôs que conseguisse comprá-las em algum lugar. Colocou uma mamadeira e um bicho de pelúcia.

Julia dormia como um anjo. Ele sentiu a maior pena do mundo ao tirá-la dali, mas era o que precisava fazer. Tina entrou no quarto e viu a cena. Seu ímpeto foi gritar, mas viu a neta dormindo no colo do filho e falou em tom brando:

— O que você pensa que está fazendo?

Cassiel manteve a sua ética e não disse sequer uma palavra. Colocou a bolsa da filha no ombro esquerdo enquanto, com a mesma mão, segurava sua própria mala. Ele conseguia segurar a filha usando unicamente a mão direita. Julia se mexia um pouco, mas ainda estava sonolenta.

Ele a colocou no sofá e então pegou o telefone. Tina ainda estava perplexa quando ouviu o filho pedindo um táxi.

— Pra onde você está indo, meu filho? Pelo amor de Deus, fala comigo.

Mas ele não falou.

Ficou sentado no sofá, com a filha nos braços, durante dez minutos. Tina subia e descia as escadas, angustiada. Pediu perdão e implorou a Deus. Cassiel abriu uma exceção e disse uma única frase:

— Você não tem que pedir desculpas.

E então o táxi buzinou na porta de casa. O rapaz tateou as calças e percebeu que tinha pegado sua carteira. Tinha pouco mais de trezentos dólares, uma quantia ínfima, mas devia ser o suficiente.

— Você não pode levá-la, ela é minha neta.

Cassiel saiu porta a fora. A noite estava quente. Virou-se e disse uma última sentença:

— Ela é minha filha.

E entrou no carro. Tina observou, em prantos, o veículo sumir no infinito.

x-x-x-x-x

Grace acordou com o barulho da campainha. Àquela hora estava sozinha em casa, já que todos os empregados tinham ido embora. Apesar de a mansão ter um quarto para a governanta, a oriental achava aquilo extremamente medieval, de modo que todos os funcionários iam para suas respectivas casas para passar a noite. Ela mantinha, porém, diversos dispositivos de segurança de modo a protegê-la de bandidos. Se alguém invadisse a casa, em menos de cinco minutos haveria diversos seguranças ali.

Colocou um robe verde de seda e lentamente desceu as escadas. Prostrou-se diante da porta e levou um susto ao ver, através do olho mágico, quem estava do outro lado. Digitou a senha no painel de segurança, girou a chave na fechadura e abriu a porta.

— Cassiel... O que... O que... — E então lhe fugiram as palavras. Ele está com a menina nos braços... E com malas...

— É uma história complicada. Será que você podia deixar eu e a Julia passarmos a noite aqui? É só por hoje, nós não temos pra onde ir. Você a coloca em uma cama macia. Eu fico aqui na sala mesmo. Eu prometo não incomodar.

A oriental ainda estava extremamente surpresa quando disse:

— Eu estou confusa...

— Se você achar que as pessoas vão fazer fofoca e tudo mais, eu entendo. Eu não quero que você se sinta pressionada ou faça algo que vá te prejudicar.

Não é isso, Grace pensou. Ele acha que eu sou esse tipo de pessoa. Acha que eu sou uma mulher que se importa com fofocas. Oh, Cassiel...

— Eu não dou a mínima pro que as pessoas vão pensar. Entra. — E estendeu o braço, oferecendo-se para pegar uma das malas que ele carregava.

O rapaz agradeceu e entrou. Julia ainda dormia. Acordara durante o caminho de casa até ali, mas já voltara a dormir.

— Coloca ela no meu quarto, é o terceiro da esquerda. Eu vou fazer um chá. — E saiu pra cozinha.

Enquanto esquentava a água no fogão, sua cabeça fervilhava de pensamentos. Com certeza algo muito sério havia acontecido, para que ele saísse da casa de Tina tão abruptamente. Não era nada com a saúde da mulher, com certeza, já que essa teria sido a primeira coisa que Cassiel lhe contaria. Mas então o que poderia ser?

Grace tinha certeza de apenas uma coisa: tinha a ver com a visão que ele tivera no parque. Pensar naquilo lhe trouxe um arrepio incontrolável, como se algo tivesse passado por dentro dela. A oriental não queria pensar no assunto, mas alguma coisa em seu íntimo teimava em sussurrar:

Ainda não acabou...


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Notas finais do capítulo

O título desse capítulo tem um significado que tenho certeza que a maioria (senão todos) perceberão. Tipo: "desertor" é alguém que abandona as forças armadas de um país. Sendo Cassiel um militar, isso se aplica bem. Até porque ele de certa forma "desertou" da lista da morte, right? XDE ah! A sugestão de Crystal possuir uma coruja foi do Peeh, e eu achei uma ÓTIMA ideia! Eu planejei desde o princípio que ela tivesse um mascote, mas foi ele quem mencionou a coruja, então fica aqui os créditos :DAliás, eu tava reparando, e a única fic minha a não ter um mascote foi a 3! XD A 1 teve o Mick Jagger (cachorro da Alice), a 2 teve o Frank N Furter (cachorro da Mia), a 4 teve o John Travolta (cachorro da Trish/Tiffany), a 5 teve a Senhora Bigodes (gata da Emily), a 6 teve o Sugar (sagui da Babe/René) e essa tem a Patricia, a coruja da Crystal XDDou um doce pra quem pegar a referência "olhos de cigana oblíqua e dissimulada" sem googlear! XDA maioria (senão todos) dos meus leitores são também escritores. Então vocês vão entender quando eu digo que: alguns plots dessa fic estão se escrevendo sozinhos, tomando rumos que eu não planejei inicialmente. Eu digo que: eu tenho o "esqueleto" de toda a fic, de quais eventos acontecerão quando e etc. Tenho um começo, um meio e um fim. Mas alguns personagens simplesmente estão saindo desse esquema, e isso é ótimo! Grace é um exemplo: ela está planejada para não ser uma personagem tão grande quanto, slá, Ulysses ou Crystal. Mas, WHO KNOWS? Estou escrevendo conforme a maré está me levando, e geralmente isso gera coisa boa. Bom, esse foi mais um desabafo mesmo, desculpa gente hasusahsauas segue a vida!Nessa fic eu quis explorar algo pouco visto nos filmes ou em outras fanfics: pessoas deixando o acidente por conta da ação INDIRETA do visionário! Vários personagens dessa lista não saíram porque acreditaram no Cassiel: na verdade alguns (Ulysses, Themis, Diego, Kitty...) nem mesmo SABEM que ele previu o acidente! Foram ações indiretas (mas diretamente ligadas à visão) que os tiraram dali. Ulysses saiu porque viu Erika, sendo que, essa sim, saiu por conta da visão de Cassiel. Diego e Kitty, por sua vez, saíram porque a visão dele, de alguma forma, acarretou na saída do Bunny Face. Espero que esse aspecto pouco explorado tenha ficado bom. E é CLARO que explicarei como/porque a visão de Cassiel acarretou na saída do Cara de Coelho, aguardem! ^^ps: só eu não sabia que "rixa" era escrito com X? XDAbração e até o próximo capítulo, gente! o/



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