Premonição 7: Clube da Morte escrita por Lerd


Capítulo 4
Ato Final


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demorazinha, mas cá está o novo capítulo. Espero que gostem e comentem :D



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Duas semanas depois.

Cassiel acordou com o barulho de seu celular tocando. Esticou o braço e o pegou na mesinha que ficava ao lado da cama. Atendeu:

— Alô?

Era sua mãe.

A Julia ficou o dia todo perguntando por você. Quando você vem pra casa?

— Mais tarde eu passo por aí. — E desligou.

Levantou-se e esfregou os olhos. Colocou uma cueca e ficou alguns segundos mexendo no celular e lendo as mensagens que havia recebido. Havia duas de Marissa, uma de sua mãe e dezoito de Grace. Cassiel sorriu consternado.

O quarto em que estava instalado era minúsculo e tinha no máximo dois metros quadrados. Ali havia apenas uma cama, a mesinha que ficava ao lado e um armário para ele guardar suas roupas. Em cima do armário havia uma pequena televisão que exibia imagens em preto e branco e que ele ainda não tinha ligado. Em cima dela havia uma caixa de pizza aberta e vazia.

Cassiel estava morando naquele quarto havia quase duas semanas. Na noite em que dormiu na mansão de Grace, teve uma longa e séria conversa com ela, na qual desabafou sobre tudo o que havia acontecido entre ele e sua mãe. A mulher ouviu com paciência e só o aconselhou quando ele pediu sua opinião. Ela fora clara e enfática.

O rapaz não tinha o direito de privar Julia da companhia da avó, e isso ele mesmo sabia. Pior: ele não tinha o direito de privá-la da vida que ela levava antes dele aparecer. Grace não ousou sugerir que ele voltasse para a casa da mãe, mesmo que soubesse que ela o aceitaria de braços abertos. Não. Cassiel era orgulhoso. Mas ao mesmo tempo, não era justo que ele levasse Julia consigo. Isso era certo.

Grace ofereceu que os dois ficassem ali pelo tempo que fosse necessário, mas Cassiel educadamente recusou, agradecendo-a imensamente. Isso não seria certo. Na manhã seguinte ele deixou a filha com a mãe, dizendo poucas palavras, e então saiu à procura de um lugar para ficar. Encontrou uma pensão alugando quartos a preço de banana e de cara pagou o aluguel de um mês. Custou-lhe apenas cinquenta dólares, mas ele logo percebeu que não valia nem dez.

Ao fim da primeira semana, na qual ele educadamente atendeu as ligações da mãe, de Grace e de Marissa, seu dinheiro acabou. Ele tinha uma respeitável quantia no banco, pagamento do exército pelos seus anos como prisioneiro, mas não queria mexer no dinheiro. Aquele seria o dinheiro que Julia usaria quando fosse para uma universidade, Cassiel já havia decidido. Era o mínimo que ele podia fazer. Sendo assim, não lhe restava dinheiro algum.

A corporação ainda queria Cassiel, mas eles exigiram que ele ficasse pelo menos seis meses de férias. A experiência que ele sofrera era traumática demais para que ele voltasse tão cedo, de modo que o rapaz não pôde fazer nada que não fosse acatar a decisão. Recebia uma pensão ínfima, mas dava todo o dinheiro para ajudar a mãe a manter a casa. Não pretendia voltar atrás na decisão, de modo que lhe era necessário buscar um serviço.

O corpo de Paul havia sido encontrado nos dias que seguiram ao desastre, mas ele não havia tido um velório correto. O irmão não tinha amigos naquela cidade, e Tina achou que seria depressivo demais que apenas meia dúzia de pessoas comparecesse. Despediu-se do filho em uma cerimônia solitária que contou apenas com ela, Grace, Erika, Marissa e Cassiel. Enterrou o filho em uma sepultura ao lado da do marido, morto seis anos antes.

Aquela foi a última vez que Cassiel viu a mãe. Ele ainda atendia suas ligações, mas não era nada além de educado. Por duas vezes conversara com Julia ao telefone, mas ela não entendia muito bem as palavras do pai. O rapaz sorria resignado e prometia visitá-la nos dias que viriam. Até aquele momento, porém, não tinha obtido a coragem necessária.

Tina pedira diversas vezes para que ele voltasse. Algumas vezes pedia desculpas, em outras chorava e implorava. Cassiel se mantinha irredutível e educadamente recusava. Percebia, pelo tom de voz dela, que a mãe ainda estava ressentida. Não. Ela disse que a vida dela seria feliz se eu tivesse partido. Eu vou lhe dar espaço. Pelo menos até a ferida cicatrizar.

Arranjou um emprego de bartender em uma casa noturna chamada “Décès”. Aquele era um lugar extremamente sexualizado, e estritamente proibido para menores de vinte e um anos. Apesar disso, era um local de certo nível, caro, aonde só iam homens da classe média e alta. Havia shows de strip-tease todas as noites, tanto de mulheres quanto de homens (embora estes apenas uma vez por semana, às quartas-feiras).

Não era um emprego ruim. Cassiel recebia gorjetas todas as noites, o que não era nada mal. Quando sua mãe lhe perguntou sobre onde estava trabalhando, ele não mentiu. Tina não pareceu se importar muito.

Naquela tarde ele havia prometido se encontrar com Marissa. Ela estava preocupada com ele e queria saber como poderia ajudá-lo. Apesar de Cassiel ter insistido no fato de que estava bem, não conseguiu persuadir a amiga. Ela o vira em seu pior estado, fedido, machucado, ferido e aterrorizado, de modo que era difícil para o loiro esconder qualquer coisa dela. Aceitou o encontro com a condição de que ela não ousasse lhe oferecer dinheiro ou uma estadia em sua casa, menos ainda tentasse convencê-lo a voltar para a casa da mãe. Marissa relutantemente concordou com aquelas condições.

Sentado na cama, Cassiel olhou para a imagem na tela do celular. Julia. Pensou no que teria sido dela se ele e a mãe tivessem morrido no Roar Zoo. Ele dificilmente pensava na visão em si, apenas nas consequências dela, em como isso afetara tremendamente a sua vida. Por algum estranho motivo, sentia que as tragédias ainda não tinham terminado.

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O teatro estava vazio. Apesar de ser dia, sua construção fora feita de modo que todo ele ficasse extremamente escuro caso nenhuma luz fosse acesa. Naquele momento, apenas a luz do palco iluminava a figura de Themis.

Ulysses estava na plateia, apenas observando. Vestia uma camiseta listrada e um colete social marrom. A ruiva, por sua vez, treinava complicados passos de dança para o musical que estava prestes a encenar naquela noite. Era uma peça original, escrita por um dos mestres de Themis, chamada “Cassandra”. A história era uma adaptação moderna da vida de uma personagem da mitologia grega, a qual era considerada louca por conta de suas visões e premonições. A garota seria uma das principais personagens, com grandes números de canto e dança. Themis sentia-se preparada, já que estava ensaiando havia alguns meses.

Ao fim do ensaio, sentou-se na beirada do palco. Ulysses lhe trouxe um sanduíche e uma coca. Enquanto comia, Themis displicentemente perguntou:

— A Erika já voltou das férias?

— Já sim. Continua a mesma dama de ferro de sempre.

Themis sorriu:

— Ei, qual é a desse tom machista?

O rapaz desculpou-se e deu com os ombros. O assunto da editora-chefe lembrou a garota do dia do acidente no zoológico, de modo que ela não conseguiu evitar perguntar:

— E aquele rapaz do dia do desastre? Você conseguiu descobrir quem ele era?

Ulysses concordou, meneando a cabeça.

— Nossa, eu jurava que já tinha te contado isso. Minha memória está uma bagunça. O nome é Cassiel, e ele é um veterano da Guerra da Síria, ficou dois anos cativo em poder dos rebeldes sírios. É amigo da parceira da Erika também. Os dois serviram juntos.

— Parece alguém formidável. — A garota disse, em seguida tomando um gole do refrigerante.

— Sim. Mas você não sabe do mais curioso. Eu quase caí da cadeira quando a Erika me contou.

— O quê?

— Ela disse que só saiu do zoológico naquele dia porque o sujeito falou que os animais iam escapar e aquela merda toda ia acontecer. Da pra acreditar?

Themis arregalou os olhos.

— Tipo... Uma premonição? Iguais as da Cassandra? Que... Coincidência.

— Exatamente. — Ulysses concordou. — Eu não sei por que a Erika inventaria uma história dessas, então eu acreditei. Mas que é uma história bem mal contada, isso é.

A garota não sabia se concordava ou discordava, então só deu com os ombros.

— Quem vai cobrir a peça hoje a noite pra Anubis? — Ela perguntou.

— O Ozzy. — Ulysses respondeu. A peça de Themis viraria notícia na próxima edição da revista, mas ele não quis ser o responsável pela matéria. Não conseguiria ser imparcial, e com toda certeza iria tecer muitos elogios à namorada, de modo que voluntariamente deixou a tarefa para outro colega.

Themis ficou satisfeita com a resposta.

— À que horas eu preciso buscar seus pais no aeroporto?

— Às quatro. — Themis contou. — Eu já vou estar ocupadíssima, então você vai ser o responsável por levá-los pra comer e depois trazê-los até aqui. Posso confiar em você pra tomar conta deles? — Ela perguntou de maneira brincalhona.

Ulysses fez cara de pensativo, e então concordou com a cabeça. Puxou a noiva para si e lhe deu um demorado beijo.

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A assistente social tinha cara de má. Era de descendência indiana e tinha bem uns cinquenta anos. Vestia-se com um terno feminino e usava os cabelos amarrados num metódico rabo de cavalo. Não usava nenhuma maquiagem e vinha com uma pasta cheia de documentos.

— Eu suponho que essa sua visita inesperada seja algo ruim, estou certa? — Erika arriscou, temerosa. Ela e Marissa estavam sentadas no sofá de sua casa de frente pra mulher, que viera sem avisar.

— Na verdade não exatamente. Eu trago notícias positivas, mas com ressalvas. — A mulher disse. Marissa forçou-se a se lembrar do nome dela, mas não foi necessário. Em um dos documentos estava escrito: “Doutora Pria Davuluri”.

Nenhuma das mulheres disse nada. Pria então retirou alguns papeis da pasta e entregou a elas, dizendo:

— Extraoficialmente eu poderia lhes dizer que a guarda do Jamal já é de vocês duas. Mas — e a mulher apressou-se em dizer isto antes que Erika e Marissa começassem a comemorar — nós temos alguns pequenos probleminhas. Nenhum deles é culpa de vocês, porém. São fatores... Externos.

— Que tipo de fatores? — Marissa perguntou.

A doutora Pria retirou outro papel da pasta e colocou-o sobre a mesinha de centro. O coração de Marissa quis sair pela boca. Ali, no documento, havia uma mugshot de Cody, de quando ele foi preso aos dezoito anos por posse de cocaína. Quando a assistente social falou, apenas Erika ouviu. Marissa estava surda a tudo ao seu redor.

— Nós estamos preocupados.

— Com o quê? — Erika disse, tirando a parceira de seus devaneios. — Isso foi há quase quatro anos. O Cody cumpriu a pena dele. Ele está limpo desde então, eu posso lhe assegurar disto. Ele mora conosco e eu coloco a minha mão no fogo de que ele nunca mais se envolveu em nenhum tipo de crime.

Pria Davuluri suspirou.

— Eu acredito na senhorita. Mas a minha opinião não importa. Juiz nenhum vai oficializar essa adoção sabendo que esta criança está indo pra uma casa onde mora um ex-viciado em cocaína.

— Isso é um absurdo! — Marissa exclamou. — A senhora disse bem: “ex”. O Cody não usa mais. Foi uma fase, coisa de adolescente...

— Infelizmente eu temo que isso pouco importe. — A doutora continuou. — Como vocês sabem, os pais biológicos do Jamal eram viciados em cocaína. O pai inclusive traficava, e isso é um assunto muito sério. Já existe um histórico. Conseguem compreender? Nós não sabemos que tipo de coisas eles fizeram com esse menino. Nós só podemos imaginar.

Erika estava prestes a dizer que eles sabiam sim o que haviam feito com ele, mas então a sua ficha caiu. Ela está falando das drogas. Oh, Deus. E seu coração se desfez no peito. A simples hipótese a fez querer vomitar ali mesmo.

Pria falava sobre a possibilidade de os pais de Jamal terem lhe viciado em cocaína. Além disso, Erika já lera estudos que diziam que bebês nascidos de mães viciadas, algumas vezes nasciam com a mesma dependência, sem que nem ao menos tivessem noção disto. Jamal havia sido retirado do lar aos dois anos, pouco tempo atrás. Ele convivera naquele meio durante tempo suficiente.

— Uma coisa não tem a ver com a outra... Eu já disse, o Cody está limpo. Ele já pagou a sua dívida com a sociedade. — Erika repetiu gaguejante.

Pria, porém, já tinha passado daquela etapa da conversa:

— Isso não precisa ser algo traumático ou que destrua a família de vocês. Basta que vocês aluguem um apartamento ou algo assim, em que o rapaz possa morar. Não teremos problemas com visitas dele, o que não podemos permitir é a possibilidade de Jamal ir morar em uma casa em que vive um ex-viciado na mesma droga da qual ele pode ser inconscientemente dependente.

Marissa estava em choque, tremendo. Erika segurou a mão da parceira de maneira firme, procurando lhe passar conforto.

— Nós vamos resolver essa situação. — Foi tudo o que a morena disse. Pria meneou a cabeça positivamente.

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No backstage, Themis se maquiava. A pele do rosto estava completamente branca, e ela colocava um batom vermelho sangue. Passou o lápis pelos olhos, de modo a destacá-los, e observou-se no espelho durante vários segundos. Seus cabelos de cobre estavam presos em uma trança no alto de sua cabeça. Ela usava uma túnica da mesma tonalidade, com sandálias grandes nos pés. Estava quase que completamente caracterizada. No meio da peça trocaria o calçado por um par de saltos que usaria para dois números de dança.

A equipe técnica trabalhava vigorosamente para deixar tudo em ordem. Os equipamentos estavam quase todos instalados, inclusive a iluminação. Durante o espetáculo, vários funcionários ficariam responsáveis por acender e mudar o foco dos holofotes. Dois deles, em especial, eram enormes. Eles estavam localizados nos dois extremos do palco, e só seriam acesos duas vezes, já que, quando ligados ao mesmo tempo, deixavam o palco tão iluminado que não era possível ver nada. A primeira ocasião seria durante uma troca de roupa coletiva, em cena, em que os personagens subitamente apareceriam com outra vestimenta. A segunda vez seria durante a última aparição de Themis, quando ela apareceria flutuando (graças a cabos de aço) como num passe de mágica.

Os holofotes eram segurados por duas cordas firmemente amarradas a barras de ferro no teto do palco. Elas podiam ser soltas conforme a necessidade, dando mais ou menos distância, sendo que, ao se moverem, faziam um movimento em pêndulo. Ambos os holofotes, então, culminariam no centro do palco.

As pessoas começavam a chegar à plateia. Os pais de Themis estavam sentados na primeira fileira, ao lado de Ulysses e Ozzy, o jornalista que viera cobrir o espetáculo para a Anubis. Ao lado deles estavam alguns críticos de importantes jornais, revistas e blogs. No teatro, naquela noite, havia quase três mil pessoas. Era uma estreia fabulosa, que, caso funcionasse como deveria, colocaria Themis ao lado de grandes estrelas em ascensão no mundo dos musicais. Provavelmente seria o seu ticket, só de ida, para a Broadway. A expectativa era grande.

E então uma música de fundo anunciou que o espetáculo estava prestes a começar. Ulysses respirou fundo e ajeitou-se confortavelmente em sua poltrona.

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Cassiel mandou uma mensagem para Marissa avisando que só poderia encontrá-la à noite, uma hora antes de sair para o trabalho. Não era culpa sua: Julia ficara inesperadamente doente, e ele viu-se forçado a ir até a casa da mãe. Só teve tempo de se encontrar com ela assim que voltou do hospital e deixou a filha em casa. Não era nada grave, apenas um resfriado, mas fora suficiente para cancelar os planos daquela tarde.

Ele não contou os motivos e Marissa também não perguntou. Ela era médica, ele sabia, e com certeza poderia ajudá-lo com o problema. Mas Cassiel achava que já tinha gente demais se metendo em sua vida e oferecendo ajuda, mesmo que elas fossem bem intencionadas. Queria, pelo menos uma vez, resolver um problema sozinho.

Os dois se encontraram em uma cafeteria há duas quadras da Décès. Conversaram trivialidades por vários minutos, enquanto tomavam suco. Cassiel relembrou a primeira ida deles para a Síria, dois anos antes, e então relembrou o dia de sua libertação. Marissa tinha medo de tocar no assunto, por saber o quão sensível era aquilo, mas como o rapaz o trouxe a tona, comentou sem medo.

— Aquele dia jamais sairá da minha memória. Foi um dos dias mais tristes e mais felizes da minha vida, tudo ao mesmo tempo. — Ela confessou.

— Como assim? — O rapaz perguntou.

— Ué, é simples. Por um lado era uma ocasião feliz: vocês estavam sendo soltos. Estavam vivos! Toda a América comemorou conosco, tenho certeza. Mas, por outro lado, vocês pareciam mortos vivos. Não falavam, estavam completamente subnutridos e fediam. Foi uma visão que trouxe lágrimas aos meus olhos. Eu não consigo imaginar o que vocês sofreram.

Cassiel deu com os ombros, como a menosprezar o assunto.

— Existem pessoas que passam por coisa pior todos os dias. Gente que vive uma vida inteira naquelas condições. Eu só passei dois anos, grande coisa. Isso constrói caráter.

E destrói vidas, Marissa pensou, mas não falou.

— E eu estava servindo o meu país, uma coisa da qual poucos podem se orgulhar. — E ele então ergueu a dogtag que usava em seu pescoço vinte e quatro horas por dia. — Eu não fiz muito, eu sei, mas eu não fugi ao meu dever.

Marissa concordou, meneando tristemente a cabeça. Ele não sabe que pode ser feliz. Pior: ele não sabe que mereceser feliz. Oh, Cassiel... Marissa queria pegá-lo no colo e apontar as estrelas para que ele visse. Queria mostrar que a vida era tão maior do que ele a via, mas teria como? Ela estava de frente com alguém que, em um curto período de tempo, perdeu tudo o que considerava importante em sua vida. Só lhe restavam duas coisas: uma filha e um dever vitalício com sua pátria. Uma daquelas coisas, sua filha, estava forçosamente sendo tirada dele, de modo que a mulher não podia, em hipótese alguma, lhe tirar a outra. Além disso, sendo ela própria uma militar, entendia o que ele dizia quando mencionava o seu “dever”. Ela também se orgulhava de jamais ter fugido ao seu dever.

— Eu queria te perguntar uma coisa... — Marissa disse, de repente, acanhada.

Cassiel meneou a cabeça em sinal de que ela podia dizer.

— É sobre aquele dia no zoológico.

O rapaz concordou. Já havia passado algum tempo, era algo que ele conseguiria reviver.

— Eu nunca te perguntei isso, mas... Como você soube? Eu sei que você disse que você teve uma visão ou algo assim. Mas isso é muito doido! Essa foi a primeira vez que você previu alguma coisa?

Cassiel meneou a cabeça positivamente. Disse:

— Eu ainda não faço ideia do que foi aquilo, pra ser sincero. Eu nunca vi nada assim na minha vida. Eu nunca previ coisa alguma. Eu quero dizer, já tive pressentimentos ruins, mas foram apenas sensações, e em geral nada de tão horrível acontecia. Mas naquele dia eu realmente vitodo o desastre. Eu vi as pessoas morrendo.

Marissa tremeu.

— Você me viu morrendo?

Cassiel concordou com a cabeça.

— Você, a Erika, todo mundo. Até o seu irmão.

— O meu irmão? — E ela instintivamente colocou a mão no peito.

— Sim. Todos nós morríamos lá, e eram mortes ruins. Eu tenho pesadelos com isso até hoje.

— Pesadelos de que tipo? Como se nós estivéssemos lá de novo?

— Também, mas não só isso. Eu ainda vejo a gente morrendo, mas nem sempre é lá. Eu já me imaginei morrendo de uma dúzia de maneiras diferentes desde aquele dia. Eu e todo mundo que saiu de lá. É como se, nos meus sonhos, a gente estivesse destinado a morrer, sabe? Nós nunca nos salvamos. Nunca. Por mais que eu tente, as coisas sempre acabam da mesma forma.

A mulher estava aterrorizada. Cassiel falava de maneira séria, calma e pausada. Falava em um tom que dava a entender que ele não se importava muito com aquilo. Quase como se achasse que era algo trivial. Parecia não se assustar ou se impactar com o conteúdo de seus sonhos.

— Mas ah, quanta bobagem né? Nós estamos vivos e é isso que importa. Danem-se os motivos que me fizeram ver aquela merda toda. — E ergueu seu copo de suco, comemorando uma vitória inexistente. Marissa não soube o que dizer.

Nos minutos seguintes, ela não cumpriu sua promessa e convidou-o para ficar em sua casa. Cassiel educadamente recusou. Ela então tentou convencê-lo a voltar para a casa da mãe, o que também foi polidamente recusado. Conseguiu convencê-lo somente a levar Julia em um passeio junto com ela, Erika e Jamal, no fim de semana seguinte. Ela também o fez prometer que ligaria caso tivesse algum problema, fosse ele de saúde, financeiro ou qualquer outro. Despediram-se com um demorado abraço e, enquanto ela pegou o carro para ir para casa, o rapaz seguiu a pé até a boate onde iria trabalhar.

x-x-x-x-x

No palco, as coisas corriam como previstas. Ulysses assistia, maravilhado, Themis dançar, cantar e atuar. Ela parecia outra pessoa, parecia tomada por alguma entidade. Era talentosa, graciosa, mágica. Sua voz era doce e suave, e em seus passos de dança parecia flutuar.

Cantava:

Will you still love me

When I’m no longer young and beautiful?

Will you still love me

When I’ve got nothing but my aching soul?

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Cassiel preparava um drink qualquer quando sentiu um arrepio. Foi como se ele tivesse sido atingido por um raio. Tremeu e deixou o copo cair no chão, espatifando-se em vários pedacinhos. O líquido vermelho que estava nele espalhou-se rapidamente pelo chão. O rapaz focalizou a imagem que ele formou. Era clara e brilhante.

Uma caveira.

Ao fundo, uma música tocava:

I’ve seen the world

Lit it up as my stage now

Channeling angels in a new age now

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Os holofotes pendiam em ambos os lados do palco, a poucos minutos de iluminarem a figura de Themis no centro A peça estava quase terminando, e ela estava pronta para o último ato. Estava agachada no chão, enquanto um grupo encenava uma performance final, entoando em coro a mesma música que ela começara a cantar vários minutos antes:

Dear Lord, when I get to heaven

Please let me bring my man

When he comes, tell me that you’ll let him in

Father, tell me if you can

E então chegou o seu momento. O cabo de aço já estava preso em suas costas. Os holofotes estavam prontos para serem acesos de modo a deixar o palco completamente branco, e a figura de Themis invisível.

Eles foram acesos como o esperado. Em um segundo todo o palco estava branco e Themis não conseguia ver nada. Algo, porém, estava diferente. A garota pôde observar, bem ao longe, à sua esquerda, uma pequena fumaça saindo de cima de uma das cordas que segurava um dos holofotes. Começou fraca, e então explodiu em um clarão.

A corda está pegando fogo. O calor das luzes é excessivo.

Seu primeiro e instintivo movimento foi tentar pular para fora do palco. Não conseguiu: estava presa pelo cabo de ferro que a suspenderia. Tentou retirá-lo, mas foi em vão: como ele era feito para sua segurança, seria difícil removê-lo sem ajuda. Olhou para o lado direito e viu que a corda também estava em chamas. Não conseguia ver a plateia, de modo que não sabia suas reações. Apesar disso, ouvia.

E então gritou o mais alto que pôde, temendo o que viria em seguida.

As cordas queimaram-se o suficiente para que os dois holofotes realizassem o seu movimento de pêndulo até o centro do palco. Não havia nada que alguém pudesse fazer. Tudo ocorreu em questão de segundos. Algumas pessoas da plateia nem ao menos perceberam o erro, tamanha a claridade colocada no palco.

Ulysses notou que havia algo errado no último segundo.

Os holofotes chocaram-se no centro do palco, numa explosão de luzes e cores. Themis estava no meio, e foi brutalmente esmagada pelos dois objetos. Seu corpo foi partido na altura da cintura, sendo que a parte de baixo caiu no chão, bem na beirada do palco. A parte de cima ficou presa, inerte, entre os dois holofotes. Algum sangue espirrou nas pessoas que estavam na primeira fileira, entre elas seu namorado e seus pais.

O jornalista estava de boca aberto e olhos mareados. Demorou alguns segundos até que os holofotes parassem de emitir luz, e a visão grotesca ficasse clara. Quando todos na plateia conseguiram ver a horrível visão de Themis cortada ao meio, gritaram em uníssono.

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Em seu quarto, Jamal tremia por algum motivo desconhecido. Do lado de fora chovia forte e raios caíam do céu. Ele não sabia por que aquilo acontecia, mas sempre se aterrorizava com o barulho e as cores no céu. Encolheu-se em sua cama e fechou fortemente os olhos.

Ao lado da cama dele havia sete outras camas, onde sete outras crianças dormiam. Isso não era conforto nenhum, o garoto tinha medo mesmo assim. Queria estar com Marissa ou Erika, mas as mulheres dali do orfanato teimavam em deixar que ele as visse apenas nos finais de semana. Para Jamal aquilo era um martírio.

Dormiu. Em seu sonho estava de volta no dia em que teve de ir embora do zoológico. Lembrava-se pouco daquele dia, além do fato de que havia ficado bastante chateado em ir embora tão cedo. Mas havia uma visão que ele não esqueceria jamais, e com toda a certeza ficaria gravada em sua memória para sempre.

O homem mau.

Jamal lembrava-se claramente dele. O homem não fizera nada, apenas o olhara. Mas aquele único olhar fora suficiente para tirar seu sono durante várias e várias noites. Era um olhar frio e gelado, carregado de ódio e morte. O menino não sabia que se tratava de sua imaginação, mas naquele dia vira o homem com a cara de um demônio, carrancudo, com olhos vermelhos e com chifres. Um adulto diria que aquilo não passava de um pesadelo, mas em seu íntimo o menino entendia que era muito mais. Era um aviso.

Ela está vindo te buscar, alguém sussurrou em seu ouvido. E ela vem acompanhada...


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Notas finais do capítulo

Eu sempre escrevo as notas finais enquanto tô revisando o capítulo, pra saber o que comentar com vocês, mas... Dessa vez eu acabei esquecendo de fazer isso HASUSAHSAU então acho que não tenho nada prévio pra dizer, além de três coisinhas: 1) Sabem quando dizem que crianças conseguem ver a real personalidade de uma pessoa? Pois então, quis representar isso quando Jamal vê o homem como um demônio. Sim, foi Bunny Face quem ele viu!2) Dou 1 doce pra quem souber de que filme tirei a ideia da peça da Cassandra! XD3) Não me odeiem Crystal-fãs (plssss), próximo capítulo será DOMINADO por ela, chegará chegando! É que realmente não havia espaço pra ela nesse... Enfim XDAbração e até o próximo, amigos :D