Crônicas da meia noite. escrita por JeeffLemos


Capítulo 18
Os Filhos da Noite




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A Força

Won’t you stop, take a breath
Find a moment to reflect
On the pure and simple choices that we fail to see

From the worst to the best
From the east coast to the west
On a never-ending quest to end our misery
– Billy Talent

Um homem caminha em direção ao trabalho. Percorre o mesmo caminho de todos os dias. Os carros cortam as teias de ruas do império de pedra e concreto. Linhas intricadas, que levam de lugar algum à lugar nenhum. Pessoas presas em seus mundos de números e contratos, vigiados por um vírus chamado tecnologia e vistos através dos olhos do mundo. Azuis e espelhados, negros e opacos, transparentes e visíveis. Janelas.

Homens e mulheres, velhos e jovens, trabalhadores e viciados. Uma profusão de cores, tamanhos e sabores. Um mundo que cheira a gás carbônico e fossa séptica. O cheiro do caminho final. O cheiro da sociedade que constrói e corrompe. Que cria a partir de seus atos, suas destrutivas consequências.

Em sua cabeça, ele tem um mundo de pensamentos. Vidas e mais vidas. Um mundo de pessoas percorrendo um jardim repleto de vias. Ele detém a sabedoria, e sua ignorância fora como uma fera. Um leão que destrói e estraçalha os últimos pedaços da inteligência de sua vítima. Ele o domara, e tornara-se iluminado. Em baixo dos braços ele carrega um livro. Um livro de expectativas, sonhos e decepções. Um livro que conta sobre a vida e a morte. Existências que se desenham e se apagam, em um “looping” infinito de ressureição.

Ninguém o vê, e ninguém o percebe. Ele segue em linha reta e os caminhos se desdobram a sua frente.

De olhos fechados ele avança.

Muitos não acreditam em sua existência, outros dizem que tudo só acontece por seus planos, enquanto outros apenas o aceitam. Mas ele mesmo é apenas mais uma peça em seu próprio jogo, assim como todos, ele está jogado às mãos de si próprio: O Destino.

A Morte

She took her life
Within her hands
She took her life
Within her own two hands
And no-one can tell her
What to do now
– Eurythmics

A respiração pesada era tudo o que ele menos esperava naquele momento. As dores começaram bem fracas, e ele achou que era resultado de apenas mais um dia puxado no trabalho. A operação ainda doía de vez em quando, mas tudo aquilo era apenas efeito colateral, como o médico havia dito. Eu sinto isso de vez em quando, então acho que não representa problema, certo? Nada que um remédio de pressão não resolva! Mas dessa vez ele estava errado.

A dor lacerante cruzou pelo seu peito e chegou sufocante, tirando-lhe a respiração. Ele caiu derrubando a mesa e um velho vaso de planta que estava sobre ela. O vaso espatifou-se ao chão, lançando pétalas ressecadas e sem vida, de uma linda flor que algum dia vivera ali. Ele brigava e lutava por ar. Arranhava o nada na esperança de que aquilo ajudasse em alguma coisa. As mãos em forma de concha apertaram fortemente o peito enquanto seu coração acelerava desesperadamente, antes de se preparar para descansar.

E foi assim que ela veio até ele. Linda e cheia de vida. Entrou pela porta enquanto ele agonizava no chão.

De olhos arregalados e a boca escancarada, foi atingido pela compreensão e cedeu, pois sabia que não havia mais volta. Sua vida havia passado inteira diante de seus olhos e dali em diante não haveria para onde voltar, apenas seguir e frente. Soltou o peito que agarrava fortemente, e deixou seus braços mortos caírem. Ela lhe deu um sorriso e a luz veio em direção aos seus olhos.

Olhando para o homem parado de frente para ela, estendeu a mão. O homem, que antes agonizava ao chão, agora mostrava um olhar de alegria e redenção. Juntos, caminharam em direção à luz e desapareceram. A única lembrança que sobrara fora um velho vaso de planta jogado ao chão, com flores lindas e coloridas, prostradas entre cacos de cerâmica.

Ela era o início, o meio e o fim, e seu nome era Morte.

O Eremita

Mr. Sandman, bring me a dream
Make him the cutest that I’ve ever seen
Give him the word that I’m not a rover
Then tell him that his lonesome nights are over.
– Chordettes

Em seu palácio, ele observa.

Um garoto, jogador de futebol profissional. Ganha milhões por ano e participa de comerciais de marcas famosas. Está em todas as festas mais badaladas e conhece a todos, inclusive as mulheres. Uma vida de rei, o garoto pensa.

Deitado em sua cama, em uma casa de palha e madeira, um menino sonha. Ele sonha em ser jogador profissional, e pensa que o dinheiro não seria mais problema. Enquanto dorme um sono profundo, seus lábios se arqueiam em um esboço de sorriso.

Em uma floresta densa e banhada pela escuridão da noite, ela corre. Em seu encalço, um homem com olhos famintos a segue. Ela chora e se desespera, respirando pesadamente e tropeçando em galhos e raízes soterradas, enquanto se atrapalha com suas próprias pernas. Ela cai e o homem se aproxima.

O grito corta o ar e chega aos ouvidos da mãe que corre alarmada. Chega ao quarto de sua filha, e se depara com ela chorando e soluçando. Tivera um pesadelo.

Enquanto um sonha ser um vampiro, o outro tem um pesadelo em que foge de um lobisomem. Uma mulher que se vê presa em uma tarefa que se repete infindavelmente. Um homem bem sucedido que abre sua empresa e a transforma em uma multinacional… pessoas, simples pessoas e o que querem para si.

Seu palácio é sua caverna, seu lugar de repouso e meditação, e neste lugar ele pensa.

Ele vê tudo o que acontece. Ele observa as situações mais extremas, os pedidos mais urgentes e as necessidades alojadas no interior mais profundo. Em seu limiar, ele vê a linha tênue que separa os sonhos da realidade. Ninguém o incomoda e ninguém o percebe, mas ele está sempre lá. Com um punhado de areia nas mãos e uma expressão indecifrável no rosto.

Nas noites mais longas e escuras é possível senti-lo, é difícil vê-lo, mas ele está sempre à espreita. Feche os olhos, viaje para seu mundo pessoal, o seu lugar de expectativas e decepções, a linha que separa o que é real do que você deseja que fosse, e você o encontrará.

Lorde moldador é um título dos muitos que ele usa, mas no contexto antropomórfico ele atende por Sonho.

O Julgamento

Just like the Pied Piper
Led rats through the streets
Dance like marionettes
Swaying to the Symphony…
Of Destruction
– Megadeth

Os sons agudos das trombetas anunciam o ataque. Carnificina e destruição são visíveis por todos os lados. Corpos espalhados até aonde o olhos podem ver, e o cheiro pútrido de decomposição torna o ar desagradável e sufocante.

E dentre os milhares que ainda restam vivos, um homem se sobressai.

Ele contempla a batalha que se sucede, e seu deleite é notável ao ver o cenário em que se encontra. Veterano de muitas guerras, não costuma perder, e mesmo em sua derrota, cumpre seu papel com maestria impecável. É um visionário que vê além do que qualquer um poderia, e onde outros veem sofrimento, dor e agonia, ele vê um renascer.

Em seus olhos é possível ver algo novo se criando. Universos e galáxias, estrelas e planetas, vida que rasteja, nada, anda e voa. Um ciclo infinito de explosões.

Brahma, Vishnu e Shiva. Para ele, esse é o sentido da existência.

E por sua janela, ele observa enquanto suas tropas partem para uma última investida, a que trará a paz e uma nova vida.

Os tiros de canhão, o som perfurador das balas, e a melódica sinfonia da exterminação, são uma clássica música em seus ouvidos. Tudo isso faz parte de sua existência, e tudo isso é o que ele é.

Ele é estrategista, calculista e mortal, seu tiro é certo e nunca falha. Sua espada é afiada e suas armas estão sempre calibradas. Ele é temor, é glória e é derrota. Ele é Destruição.

Os Enamorados

They sat together in the park
As the evening sky grew dark.
She looked at him and he felt a spark
Tingle to his bones.
It was then he felt alone
And wished that he’d gone straight
– Bob Dylan

Um casal encontra-se sentado em uma praça. A noite avança e eles se veem sozinhos. As mãos acariciam habilmente em ambos os corpos. Um momento de luxúria e prazer. Ela diz que o ama e ele retribui. A amarelada e confusa luz de um poste é a única testemunha dessa união carnal.

Das sombras distantes, surge uma silhueta caminhando por entre as árvores. O casal apaixonado não é capaz de nota-la. A figura estranha que se aproxima, mostra ser uma mulher. Ela caminha lentamente abeirando-se dos amantes, que só então a percebem, e se recompõe.

Eles o olham avidamente, com certo fogo crescente em seus olhos. A mulher passa e eles a perseguem, querendo-a com a vontade que nunca tiveram um pelo outro. Absortos em pensamentos que nem mesmo imaginaram ter um pelo o outro. Eles não se movem e nem falam, apenas observam aquele homem sumir na escuridão da noite. O fogo que incendiava o casal se esvai, e a noite termina ali, com ambos frustrados e insatisfeitos sem nem saber o porquê. Eles se levantam e vão embora, com a noite tornando-se fria enquanto o calor de seus corpos se vai, dando lugar a indiferença e a inesperada repulsa. Os dois ainda não sabem, mas aquilo corroerá a relação, e tudo que eles prezam sumirá no relacionamento, até o mesmo não mais existir.

Na calada da noite, seu coração bate fortemente, pulsante e feliz. Ela/Ele sente-se satisfeita. O amor é algo tão puro e belo quanto fogo que arde nos corações apaixonados. O fogo que corrói as correntes da timidez, e transformam até mesmo a menor gatinha em uma tigresa selvagem. É algo inexplicável, uma coisa que apenas se sente, e faz deixar a razão e o entendimento de lado. Um sentimento primitivo, tão forte que une o céu e a terra.

E ele/ela sente tudo isso.

Sente a paixão, o calor, a vontade e o que mais a atrai, o que lhe impulsiona e o que traz o sentido deleite. Ela/Ele sente o Desejo.

O Diabo

Oh despair, you’ve always been there
You’ve always been there, you’ve always been there
You were there through my wasted years
Through all my lonely fears, no tears
– Yeah Yeah Yeah

As lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto ele se olhava no espelho, e pensava sobre sua vida. A dívida do carro, a hipoteca da casa, a fatura dos cartões e o esquema de lavagem. Tudo desabou de uma vez.

O mundo que ele conhecia havia mudado, e ele estava prestes a vê-lo de um modo menos convencional. Cercado por grades. Sua vida fora um mar de rosas após seus esquemas “super programados” para lavagem de dinheiro. Ele subiu, alçou voos tão altos que chegou a tocar o brilho do sol. Mas agora suas asas falhavam e ele caia em queda livre, em direção a um chão maciço de desilusões. Entrou em depressão e era acometido por arrependimentos e culpa. Seu sofrimento era visível e seus atos começaram a afetar as pessoas a sua volta. Fora perdendo as coisas aos poucos, e até mesmo os amigos estavam inclusos.

Tudo isso passava por sua cabeça enquanto ele chorava e se olhava no espelho. O cano frio da arma parecia cada vez mais acolhedor, e a necessidade de ouvir o disparo final, era gritante. No quarto escuro, o brilho de suas lágrimas destacava-se pela luz do luar que entrava por entre as frestas de madeira, afastando a escuridão que tentava envolve-lo. Considerando tudo o que acontecera e o que poderia vir a acontecer, ele tomou sua decisão, e pôs o ponto final na desgraça que era sua vida. Fechou os olhos pela última vez, e puxou o gatilho.

Do lado de fora, ela ouviu o disparo. Estava sentada ao lado do pequeno casebre construído na viela. Algo feito por sem tetos. Ela levantou-se pesadamente e caminhou em direção ao lixo. Ratos a seguiam e uma sensação de sofrimento estava sempre presente. Ela sabia quais os problemas afetavam aquele homem, sabia que ele morreria e sabia o que o mataria.

Ela sempre sabe esses tipos de coisas, diferentemente da irmã/irmão gêmeo (a), ela não necessita de desejo, luxúria ou amor. O que ela precisa é algo bem mais simples e comum. Todos passam por isso durante suas vidas, e todos sempre passarão. Problemas familiares, financeiros ou qualquer outro tipo, lá no fundo sempre bate aquilo que menos se espera. Aquilo que tira as noites de sono e transforma sãos em loucos. No fundo, bem no fundo, sempre bate um Desespero.

O Louco

Can I play with Madness?
The prophet stared at his crystal ball,
Can I play with Madness?
There’s no vision there at all.
Can I play with Madness?
The prophet looked and he laughed at me!
Can I play with Madness?
He said you’re blind, too blind to see!
– Iron Maiden

As flores cresciam em tons caleidoscópicos enquanto peixes nadavam por entre suas pétalas, misturando-se com as cores, e formando um redemoinho em forma de arco íris. Pequenas explosões coloridas tornavam o quadro branco colorido novamente, e o céu tornava-se de uma cor verde limão, com um sol azul e bem brilhante. Ela sorria enquanto olhava para tudo isso. Cores, brilhos e mais cores. Uma profusão enorme de cores.

Havia sido diagnosticada com transtorno bipolar e esquizofrenia. Morava em um asilo, onde era feliz. As pessoas de lá a entendiam, e ela podia entrar e sair bem quando entendesse. Seus sumiços não eram notados, e muito menos sua presença. Os outros pacientes a amavam.

Um dia ela havia sido feliz, os tirava de lá e os trazia para vida novamente, mas agora era essa a vida que ela os dava. Pelo menos lá todos se entendiam, isso bem era verdade. E ela fazia o possível para isso acontecer.

Certa vez, um homem falou sobre ela para um de seus enfermeiros. Descreveu a moça bonita e colorida que vivia no quarto ao lado. O enfermeiro sorriu para ele e disse que não havia ninguém assim por lá. O homem insistiu, falando sobre o quão era boa, e que os outros concordavam e gostavam dela, e logo depois começou a se alterar pelo fato de não estarem acreditando nele. O enfermeiro apenas o lançou mais um sorriso, e lhe disse para que ele pudesse se acalmar, tudo iria ficar bem, e aquilo era apenas mais um Delírio.


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