Crônicas da meia noite. escrita por JeeffLemos


Capítulo 19
Os Milagres Que Antecedem




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– Ei, Hilde, quem vem lá?

Sentado em uma velha cadeira de balanço, ele perguntou para a companheira ao seu lado, deitada no velho tapete e coberta por um edredom. Levantou o focinho despreocupadamente e cheirou o ar por alguns instantes. Seus pelos se ouriçaram e ela pulou abruptamente, balançando o rabo, eufórica, mas sem latidos. Deu alguns passos em direção as escadas e parou, esperando que seu dono a seguisse. O manto de neve cobria toda a extensão da trilha, e a nevasca ofuscava a visão das silhuetas que se aproximavam, ao longe. Após caminharem por mais alguns metros, percebeu-se que era um homem e uma garotinha. Eles andavam trôpegos, suas roupas sujas indicavam que já estavam caminhando antes mesmo do tempo piorar. Provavelmente seriam sobreviventes de algum acidente de trânsito. A rodovia era movimentada, e vez ou outra, algum acidentado acabava andando sem rumo, até chegar à floresta.

Arrastaram-se por mais alguns metros, até que a menininha caiu, e o homem, quase sem forças, a ergueu no colo e continuou. Avistou as luzes quando haviam chegado à parte mais esparsa da floresta. Com aquela nevasca se intensificando a cada minuto, se não tivesse encontrado o casebre, provavelmente estariam mortos em menos de uma hora. Não acreditava em milagres, mas de alguma forma, aquilo estava ali para provar que eram possíveis. Com o que restava de energia, se arrastou com seus últimos passos até cair, quase de cara no velho degrau de madeira. Com a criança aninhada ao peito, ele sentia a neve tocar seu rosto, fria e implacável. O resto de calor começou a se esvair junto com a adrenalina, e a última visão que teve, foi de um rosto velho e marcado pelo tempo, de feições agradáveis e coberta por uma barba branca. E então, escuridão.

Passaram-se dias e noites, e o homem permaneceu desacordado. O bom samaritano cuidou dele durante todo o tempo em que ficou dormindo, sem nem mesmo saber se iria acordar. Não pôde fazer o mesmo pela filha. Supôs que era a filha pelos objetos que havia encontrado no bolso do homem, e também pela grande semelhança que havia entre os dois. A menina, filha, havia morrido no mesmo dia, sucumbindo à hipotermia. Não chegou a abrir os olhos depois de chegar. Ambos haviam se acidentado em um trecho perigoso da rodovia, e eram três. A mulher, pelo o que soube, morreu no momento do impacto. O carro havia sido achado ao fim de uma ribanceira, capotado e com apenas um corpo.

***

“Richard C. Baltman e Nichole M. Baltman, pai e filha, continuam desaparecidos após novas buscas. As autoridades marcaram um perímetro de dez quilômetros ao redor do local do acidente, mas as buscas foram infrutíferas até o momento, devido à grande nevasca que assola o estado. Segundo testemunhas, o carro da família derrapou na curva do “c”, KM 54 da rodovia. Michelle M. Baltman, esposa de Richard e mãe de Nichole, foi encontrada já sem vida dentro do carro, que desceu cem metros até chocar-se com uma árvore, ao sopé do barranco. O marido da vítima, é acusado de abandono de incapaz, e suspeito de sequestro da própria filha. Familiares da vítima afirmam que o relacionamento dos dois, nos últimos meses, eram marcados por fortes discussões e agressões verbais. As autoridades emitiram um mandado de prisão preventiva e oferece recompensas a quem ajudar.

E sobre o tempo. A meteorologia afirma que o tempo ruim irá perdurar até sábado, e que volta ao extremo na segunda, com fortes indícios de nevascas devastadoras, que põem todo o governo em estado de alerta vermelho.

E voltamos agora com a...”

O som do noticiário cedeu lugar aos gritos e apitos do futebol. O bar estava vazio, exceto por uns ou outros sentados em lugares espalhados, bebendo cervejas ou só mesmo se esgueirando do frio. Recostado ao balcão, o velho bebia sua cerveja.

– Mas que maldito frio é esse, Jack?

O barman parecia uma caricata saída de um desenho animado. Os cabelos desgrenhados e gordurosos – efeito de, além de ser o barman, também ser o cozinheiro, mas não fazia diferença, pois o bar nunca estava cheio o suficiente para lhe dar trabalho – eram delineados por um rosto bruto e de feições duras, com olhos que denotavam certa loucura. Era um homem que se deveria evitar em uma briga. Já havia matado dois de seus fregueses, que se envolveram em uma briga por causa de uma maldita caneca de cerveja. Ninguém nunca tocou no assunto e ele não havia sido pego. Entretanto, perdeu seus melhores clientes.

– Nem me fale “Cabeça de alce”, nem me fale.

Seu nome verdadeiro era Willian, mas a cabeça de Alce empalhada em sua porta de entrada deu nome ao lugar e ao dono. E agora, todos os anos ele matava um e prendia a cabeça no mesmo lugar. Dizia que era para deixar a clientela satisfeita, e fazer com que se sentissem em casa. Alguns acreditavam, mas a maioria desconfiava que ele tivesse prazer em fazer aquilo.

– E então... – Cabeça de alce começou a falar, mas foi interrompido por um bêbado que chegou espalhafatosamente ao balcão. Sentou-se, encostou a cabeça e ficou em silêncio. Ele desviou o olhar do homem e voltou-se para Jack.

–... ficou sabendo do rapaz e da menina ali do noticiário? Caso feio, igual daqueles dois filhinhos de papai que caíram aqui uns meses atrás.

– Fiquei sim. Um caso triste, devo dizer. – tomou um gole demorado – O frio vem tomando muitas vidas nesses últimos tempos.

– E eu não sei? – jogava água em alguns copos distraidamente enquanto falava – Perdi um maldito cavalo semana passada. O bicho estava bom em uma noite, na outra apareceu morto de frio. Pelo menos a carne era boa.

Riu estrondosamente a ponto de acordar o bêbado, que levantou a cabeça assustado e quase caiu da cadeira. Olhou para os lados com a vista enevoada, e depois voltou a dormir. Jack terminou sua cerveja, tirou uma nota e a colocou ao lado da garrafa.

– Pedi uma encomenda para cá, caso ela chegue, me avise.

– Ah, ainda bem que você falou – abaixou-se no balcão e tirou de lá uma caixa embrulhada em papel pardo. – Isso chegou pra você hoje de manhã.

– Obrigado. – tirou outra nota e o entregou, piscando um olho – te devo essa.

Saiu para o vento frio que assolava à tarde. O som zunia por entre as árvores e os flocos de neve começavam a cair com mais força, provando que a meteorologia, pelo menos daquela vez, havia acertado. A coisa realmente iria ficar feia. Jack encaminhou-se para sua caminhonete a passos curtos, soltando baforadas que evaporavam na gélida temperatura. Entrou e jogou o pacote no banco do carona. Ligou o carro e encolheu-se, esperando que a vida preenche-se o lugar. O aquecedor demorou um pouco, mas depois de um tempo fez efeito. Aquecido, rumou em direção a casa.

As constantes geadas e nevascas, haviam tornado as estradas locais muito perigosos, principalmente as feitas de terra. A neve acumulada criava blocos gigantescos e propícios a atolamentos, e só os acostumados com aquilo conseguiam se safar. Isso não era problema nenhum para Jack, que viveu toda a sua vida naquelas bandas, e conhecia cada lugar como a palma de sua mão. Chegou em segurança ao casebre. Pegou seu pacote e desceu, fechando a porta com um forte estrondo e correndo para fugir da nevasca, que havia se tornado pior com o cair da noite mais próximo.

Abriu a porta e o calor o atingiu, entorpecendo os músculos de seu rosto, que se sentiam aliviados por sentir algo quente. Hilde estava deitada, aparentava estar dormindo, mas havia acordado ao ouvir o dono chegar. Balançou o rabo preguiçosamente e voltou aos seus sonhos. O homem permanecia do mesmo jeito, dormindo um sono profundo e inalterável. Jack tirou seu casaco e pegou o outro em cima da cadeira. Aproximou-se da fogueira, e jogou mais lenha. O fogo crepitava trazendo vida ao lugar, mantendo-os afastados da morte gelada que espreitava pelas janelas. Após os procedimentos básicos, sentou-se na cadeira, e, com a caixa a mão, desembrulhou-a. Lá dentro havia alguns analgésicos, antibióticos, vitaminas e uns fracos de comprimidos de cálcio. Jogou-os em cima da mesa, e como já fazia a alguns dias, desde que o homem havia chegado a sua casa, recostou-se na cadeira e dormiu.

Acordou assustado. Hilde latia de forma brusca e avançava no homem em cima da cama, que atordoado, apenas grunhia e tentava se levantar, de forma inútil.

– Ei, calma meu garoto. – aproximou-se do homem e o segurou – Você sofreu um acidente muito feio. Provavelmente deve ter quebrado alguns ossos e machucado alguns órgãos ai por dentro. Acordar desse jeito não vai te ajudar em nada.

– Cadê minha filha? – ele gritou e se agarrou a Jack. Hilde avançou, mas foi impedida por seu dono, que a advertiu com um aceno de mão. – Eu quero saber, onde está...

Richard, sem foças e com olhos marejados, caiu deitado. Seus olhos baços procuravam por Nichole dentro da pequena cabana, mas não conseguiam encontra-la. O mundo foi perdendo a cor aos poucos, e a escuridão voltou a preenchê-lo. O último sentimento a acometê-lo, foi o sentimento de dor. Sentiu-se culpado e envergonhado, pois no fundo de seu coração, sabia que não havia sido capaz de salvar sua filha. Estava morta, assim como a mãe, que ele também havia matado.

***

Os tímidos raios de luz entravam pelos vidros congelados, trazendo uma claridade tênue, quase extinta. A verdadeira provedora de luz e calor era a fogueira que queimava dia e noite. Jack preparava algo na cozinha enquanto Hilde, sua fiel companheira e ajudante, o acompanhava, esperando que alguma sobra escapasse pelas mãos do dono. Richard abriu os olhos devagar, sentiu a luz inundá-los e junto com ela, sentiu a dor. Depois de tanto tempo dormindo, a claridade já não era algo que seus olhos estavam acostumados. O primeiro passo já havia sido dado, agora, seu corpo pesava quase uma tonelada. Parecia feito de chumbo, e até mesmo levantar uma mão exigia tremendo esforço. Tentou, sem sucesso, erguer a mão esquerda. Esforçou-se mais uma vez e conseguiu. Apoiou-a na cama, e fez força para subir seu corpo. E logo depois, percebeu que foi um erro. Aguda como uma flecha, a dor percorreu seu seus músculos e tirou-lhe o pouco de ânimo que tinha, fazendo-o gritar e desistir, com o que restava do “nada” se esvaindo.

Na cozinha, o almoço estava sendo preparado, quando Jack ouviu o grito no quarto ao lado. Hilde disparou na frente, enquanto ele ia atrás. Encontrou o homem estirado à cama, suando frio e gemendo. Os olhos arregalados ainda mostravam o choque que o acidente havia causado.

– Ei amigo, vá com calma. – Jack aproximou-se de forma sutil.

– ughh... qu...em é vo... cê?

– Meu nome é Jack, e essa é minha parceira, Hilde. – falou ele, apontando para a cachorra que olhava de forma atenta para Richard. – Você encontrou minha cabana, no meio da tempestade, estava junto da... sua menina.

Percebeu que, mesmo com a amargura que o acometia, o homem começou a chorar. As lágrimas escorriam enquanto, por debaixo da coberta, seu corpo tremia de dor. Mais a emocional do que a física, naquele momento.

– Desculpe-me, mas eu não consegui salvá-la.

Ele abaixou a cabeça e nada mais foi dito por um bom tempo. O único som audível era o choro do homem, que depois de reprimido por dias, pode então ser livre. Chorou pelo que pareceram horas, devido a sua angústia e a dor de sua perda. E enquanto isso, Jack permaneceu de pé, de cabeça baixa, apenas ouvindo. Depois de um tempo, aos poucos, o som cessou, e o se silêncio se instalou.

– Há quanto... tempo es... estou dorm.. argh... dormindo? – as últimas lágrimas haviam escorrido, e agora só deixaram a típica vermelhidão que vem depois.

– Fará duas semanas depois de amanhã. – Jack agora se sentava em sua cadeira, com Hilde o seguindo e deitando aos seus pés, olhando atenciosamente para Richard.

– Meu Deus... eu dormi por tanto tempo?

– Sim, mas cuidei de você desde que chegou aqui. Deu trabalho, mas está dando certo, como pode ver. – sorriu de satisfação.

– Obrigado... acho que nasci de novo, e você é o responsável por isso.

– Eu sou apenas um homem velho, que vivo minha vida simples com a minha garota aqui. ­– abaixou-se e acaricio a cabeça da cadela.

– De qualquer forma, não sei como agradecer pelo o que fez por mim. – Richard permanecia imobilizado, mas agora a voz saia mais facilmente, porém não menos dolorosa. Sentia seu coração pesado, de vergonha e incapacidade.

– Meu bom amigo, o que importa é você ficar bem. E fico feliz que tenha acordado – levantou-se e rumou em direção à cozinha, falando mais alto – Sente esse cheiro? Guisado de veado com cebolas e cenouras, com purê de batatas, arroz e uma boa cerveja para acompanhar.

O cheiro que vinha da cozinha era delicioso, e nem mesmo o pesar e a dor, impediram o estômago de Richard de roncar de forma furiosa. Duas semanas sem comer uma comida decente o haviam feito ficar como um esqueleto. Havia perdido pelo menos 15 quilos, e sentia-se fraco também por isso.

– Não sei se serei capaz de comer. Mal consigo me levantar.

– Não se preocupe com isso, eu te ajudo. Comprei alguns remédios para você, e vitaminas também. Os comprimidos de cálcio eu já os venho administrando desde ontem, pois você com certeza teve fraturas nos ossos.

Enquanto falava, enchia os pratos. Colocou o purê e o arroz, e em cada um despejou uma concha de caldo, com um pedaço suculento de carne. O caldo grosso do guisado emitia uma fumaça quente e com aromas deliciosos. A cerveja ficava guardada em um pequeno barril. Abriu as janelas com muito esforço, e retirou duas canecas congeladas, que estavam do lado de fora do parapeito. Encheu-as e as carregou para o quarto-sala. Colocou-as em cima da mesinha, que ficava ao lado da cabeceira da cama, sorriu para Richard e voltou para a cozinha. Pegou o prato da cadela, despejou um grande pedaço de costela e voltou para o quarto, com os pratos em mãos.

– Como eu ia dizendo. Você carregou sua filha até aqui – suspendia o corpo do homem aos poucos, enquanto ele gemia e tentava se contorcer. Conseguiu coloca-lo recostado nos travesseiros. – isso me parece um daqueles milagres que ouvimos de nossos avós, onde pessoas ganham forças para salvar seus entes queridos. Creio que você já tenha ouvido dos seus.

– Sim, e talvez isso possa realmente existir. Milagres. Afinal de contas, encontrei sua casa, aqui no lugar onde seria o mais provável que eu pudesse morrer.

– Graças a Deus por isso, meu amigo. Consegue comer? – perguntou já pegando o prato. Richard tentou levantar a mão, e aos poucos, ela subiu. A dor pesava agora mais no peito do que no resto do corpo. – Isso, segura.

– Obrigado por tudo isso, Sr. Jack.

– Já disse que não precisa agradecer. Agora, coma. Depois posso te dar alguns remédios e quem sabe amanhã pode começar a tomar a vitamina.

Pegou seu prato e, sem cerimônias, começou a comer. Aos poucos, Richard conseguiu levar uma garfada a boca. Adorou no mesmo instante. Seu estômago, que já não via comida há dias, sentiu-se extremamente satisfeito. Depois de tanto tempo sem comer, até mesmo o cheiro das coisas é capaz de revestir uma barriga vazia. Comeu como nunca havia comido na vida. Até se esqueceu de seus membros que estavam com movimentos limitados. Acabou e mandou para dentro a cerveja, que desceu gelando e o deixando tonto. Quase vomitou, mas se conteve.

– Sr. Jack, esse é o guisado mais delicioso que eu já comi.

– Receita de família. Meu pai sempre viveu por aqui, e eu herdei tudo isso dele. Ele me ensinou a caçar, e quais os melhores animais. Aqui não é permitida a caça, mas a gente sempre dá um jeito. – Hilde aproximou-se com o osso de sua costela na boca. Deitou-se e postou-se a extrair o tutano. Jack arrotou e sorriu.

– Saúde! – e por um breve momento, depois de tudo que havia acontecido, Richard também se permitiu sorrir. A ideia parecia impiedosa: Depois de tudo o que aconteceu, ele ainda ter motivos para sorrir. Mas ter comido depois de tanto tempo, o entorpeceu, e fez com que seu corpo ficasse até mais leve, com a força voltando aos poucos, e seus músculos relaxando.

– Vou pegar seus remédios, e depois você pode voltar a dormir. Afinal, não tenho nada a oferecer para te entreter. Não tenho rádio e nem televisão.

– Está tudo bem, só quero poder descansar e amanhã poder andar novamente.

– Não sei se vai poder andar tão cedo, mas te garanto que farei o possível. – foi até o armário e pegou os remédios. Pegou um copo de água na cozinha, e os entregou a Richard. – Descanse e amanhã vai se sentir melhor.

Ele apenas acenou com a cabeça e pegou os comprimidos. Tomou a água, e bem lentamente, e com a ajuda de Jack, voltou-se a deitar. Agradeceu mais uma vez e, pela primeira vez em semanas, pode se virar de lado. Suas costas já doíam devido ao tempo que passou na mesma posição. Aconchegou-se e tentou dormir, mas foi em vão. As imagens vinham em sua cabeça em formas densas e pesadas. Não conseguiu dormir, e o preço que pagou por ter sua consciência de volta, era estar consciente de quê, havia sido o responsável pela morte de sua mulher e filha, e que esse pesadelo o seguiria pelo resto de sua miserável vida. Voltou a chorar, e enquanto isso, fitava as sombras que a fogueira lançava a parede em sua frente. Viu monstros horrorosos emergirem das chamas, seres grotescos que tinham milhares de chifres negros, cabeças pontudas e dentes afiados. Eles emergiam em sequência, e formavam uma legião de silhuetas aglomeradas. Seu coração disparou e o medo foi o que tomou conta. Cobriu o rosto tentado desviar o olhar das cenas horríveis que presenciava, mas agora elas estavam fixadas em sua cabeça. O remédio, aos poucos fez efeito, e os monstros se deitaram para formar uma estrada, ajuntaram-se e formaram um carro, com uma família feliz dentro, até que, um deslize e tudo veio abaixo. Sua cabeça deu milhares de voltas, e ele viu o corpo de sua mulher ser catapultado de um lado para o outro, incapaz de fazer qualquer coisa. E assim foi sua noite, voltas e mais voltas de dor e sofrimento, com pesadelos de demônios, estradas e carros.

***

– Está quase na hora de partir, eu acho.

Richard apoiava-se na porta, segurando uma muleta com o outro braço. Jack sentava-se em sua cadeira, observando os primeiros flocos de neve a cair. A nevasca viera de forma arrasadora nos últimos dias, mas depois perdeu a força, e agora caia levemente, apenas renovando o branco da noite anterior.

– Quero que vá quando estiver se sentindo realmente bem... na verdade, eu preciso te dizer uma coisa.

Eles haviam se tornado amigos durante esse tempo, e Jack sentiu-se na obrigação de ajudar. Ele sabia que se Richard saísse dali, seria preso muito em breve, e sem nem mesmo saber o porquê. Nas últimas semanas, os noticiários falavam com pouca frequência sobre o acidente que envolveu a família Baltman. Todas as tardes Jack ia ao bar do “Cabeça de alce”, e ficava por dentro das coisas que aconteciam no mundo. Assistia um pouco de televisão, jogava conversa fora e depois tomava o caminho de volta. Richard não podia se locomover, então ficava em casa, olhando a neve cair pela janela, e às vezes se sentava na varanda, sentindo o frio penetrar em seus ossos e trazer-lhe amargas lembranças.

O tempo dedicado por Jack, e as vitaminas e remédios haviam contribuído para a sua recuperação. Ele havia ganhado peso novamente, e agora já beirava a marca de 80kg. Quase atingindo seu peso ideal. Seus ossos se recuperavam mais devagar, mas os comprimidos de cálcio faziam efeito. Começou a poder caminhar com a muleta em menos de três dias, e agora sentia menos dor. Ganhou uma tala feita de madeira velha e uns pedaços de atadura. Estava se sentindo melhor, e pronto para voltar.

– O que foi? – perguntou ele, distraído enquanto olhava a neve cair.

– Os noticiários.

– O que tem eles? – agora olhava para Jack.

– Eles dizem que você é um fugitivo da polícia, e estão dando recompensas para quem te encontrar. – percebeu o semblante calmo se desmanchando aos poucos.

– Como assim? Fugitivo? – o desespero tocou lá no fundo. E pior do que isso, sentia-se confuso por não saber o porquê de aquilo estar acontecendo. – O que eles dizem que eu fiz?

– Fica calmo, senta aqui que eu te conto – levantou-se e cedeu lugar ao outro, que se acomodou e permaneceu em estado de choque. – Eles disseram que você matou sua mulher, e que fugiu com a sua filha. Falaram que segundo seus parentes, você vinha tendo brigas frequentes com ela. Acham que você já havia tramado isso.

– Malditos! Isso é o que eles são. Nunca gostei daquela bruxa, e agora ela apronta mais essa comigo.

– Não se desespere, eu sei o estado em que você se encontrava quando chegou aqui. Só não sei como vamos fazer para provar isso. Se eu for depor para você, posso complicar meu lado também.

– Mas eu não fiz nada... – estava absorto em seus pensamentos. O peito voltou a pesar com a mesma força de dias atrás, e a mágoa tomava conta de seu coração. – Nossa viagem. Isso tudo foi para ficarmos bem.

“Estávamos nos programando há muito tempo, mas nossas desavenças sempre se colocaram no caminho. Até que eu cansei, e disse que iríamos fazer aquela viagem de uma vez por todas. Ela ficou animada. Esperamos pelo recesso na escola da Nichole, e no dia anterior, arrumamos todas as malas para partir.

“Saímos bem cedo no dia seguinte. Ela e minha filha estavam ansiosas. Nem dormiram direito durante a noite. Pegamos a estrada normalmente e seguimos o caminho sem maiores problemas. Até cruzar a fronteira do estado, quando essa neve começou a cair. Isso foi duas horas depois de termos saído.

“Conversávamos dentro do carro, como sempre fazíamos, até ela debochar algo sobre minha secretária. Ela tinha ciúme, muito ciúme. E a maioria das nossas brigas eram por causa desses ciúmes doentios. A conversa começou a esquentar e quando percebei, estávamos falando alto e gesticulando um com o outro. Percebi que nossa filha começava a chorar no banco de trás. Pedi para Michelle que parasse, mas ela não me ouviu. Tirou o cinto de segurança e, ainda falando, foi pegar a Nichole. Foi quando aconteceu.

“Eu me virei e tentei dizer para ela que não deveria fazer aquilo, mas não cheguei nem mesmo a completar a frase. A forte nevasca que ofuscava a pista escondeu a curva de mim. Quando tirei os olhos de Michelle, percebi que já estava em cima. Tentei frear e não consegui. O carro capotou e eu só pude olhar minha mulher ser jogada de um lado para o outro. Não sei como eu e minha filha sobrevivemos, mas quando consegui sair do carro e tirar Nichole, minha mulher já estava morta.

As emoções bateram forte, e ele já terminava as últimas frases, meio choroso. Até que não conseguiu mais segurar, e as lágrimas vieram. Jack o consolou por um tempo, apenas ouvindo suas lamentações.

– Não posso dizer que sei o que está acontecendo com você, mas se precisar de mim, estarei lá dentro. – deu uns tapinhas no ombro de Richard, e o deixou na varanda, chorando por sua perda.

– Jack? – gritou antes que ele sumisse para a cozinha.

– Sim? – respondeu ele, voltando.

– Ainda tem aquela deliciosa carne de veado? – perguntou, esboçando um sorriso.

– Só até amanhã, mas a gente dá um jeito. – retribuiu o sorriso e o ajudou a entrar.

O almoço havia sido delicioso, e a quantidade generosa que Jack o havia servido, fez com que seu estômago e olhos pesassem. Deitou-se e dormiu pela tarde, enquanto Jack fazia sua incursão diária até o “Cabeça de alce”.

Chegou ao bar e se sentou, chamando a atenção de Willian. Havia alguns clientes a mais naquele dia.

– Preta, como sempre.

– É pra já. – saiu, voltando alguns segundos depois com uma garrafa na mão.

– Não consigo viver um dia sem uma dessas. – abriu a garrafa no balcão e tomou um gole. – O que aconteceu? Está cheio aqui hoje.

– Olha para essa porra desse lugar? Cheio de quê? Moscas?

– Para mim, tem mais pessoas do que o normal.

– Sei lá, deve ser algum fim de semana com feriado. Vendi até alguns hambúrgueres hoje.

– E alguém comeu aquela porcaria? – deu um sorriso e bebeu mais um pouco.

– Pagaram pelo menos, e isso é o que importa. Amanhã está de pé o jantar?

– Com certeza. Quero que vá de manhã, quero matar o veado até à tarde, a carne que tenho lá já está acabando, e não sou a favor de comprar desses mercados que desconheço a procedência.

– Nem eu como dessas porras desses lugares. Só vendo para essa tralha que aparece aqui.

– Você é um maldito de um filho da puta, will. Isso é o que você é.

– Minha mãe não discorda. – riu com vontade.

– Agora, eu estou partindo. – bebeu o resto da cerveja e colocou a garrafa no balcão, junto com uma nota. – Deixei Hild em casa e se ela ficar muito tempo sozinha, acaba aprontando. Leve a faca de caça amanhã, estamos na temporada dos grandes veados. Pra destrinchar é melhor.

“Cabeça de alce” apenas assentiu. Jack saiu pela porta e adentrou na tarde gélida, de um frio que perdurava por semanas.

***

– Deus do céu! – tremia por debaixo da coberta enquanto falava – que frio é esse?

– Já acordado? – Jack sentava-se em sua cadeira, observando a floresta nevada e imutável naquela fria manhã de domingo. Nem olhou para Richard ao falar.

– Sim, e a ponto de congelar. – levantou-se, pegou a muleta e foi em direção à varanda.

– Desculpe, a lenha está acabando. “Cabeça de Alce” vai trazer mais para mim hoje. Aliás, ele vem almoçar conosco.

– Tudo bem, será bom ver outras pessoas depois de tanto tempo. – escorava-se na porta e observava o branco infinito que camuflava o verde morto da floresta. – Ei, ontem à tarde eu estava dando uma olhada naqueles jornais velhos que você tem, e encontrei... – foi interrompido pelos latidos da cadela.

A caminhonete do velho “Cabeça de alce” chegou fazendo barulho. Foi vista a distância, e eles aguardaram enquanto ela cortava pelas estradas alvas que levavam ao casebre.

– Parece que seu amigo chegou mais cedo – olhou para baixo e viu o estado de euforia da cadela – e parece que eu sou a única pessoa por quem sua cadela não tem apreço.

– Ela já conhece o Will há muito tempo.

– Will?

– Willian. Esse o nome do “Cabeça de alce”. – Will parou em frente à casa. Desceu já os cumprimentado e foi em direção a eles.

– Bom dia. – apertou a mão de Jack e parou na de Richard. – Sinto muito pela sua filha, amigo.

– Ah, você me conhece? – deixou transparecer certo medo em seu olhar.

– Fique tranquilo. O velho Jack aqui é um amigo, e se ele não vê motivos em te achar uma má pessoa, eu também não. – Enquanto ele falava, a cachorra pulava em suas pernas. Ele se abaixou e a acariciou. – Ei garota, sentiu saudade? Já fazem o quê? Três semanas?

– Três semanas? – perguntou Richard, completando – Você já esteve aqui enquanto estive desacordado?

– Sim, o ajudei com o trabalho pesado.

– Ajudou a enterrar minha filha também? – falou, demonstrando a mágoa em sua voz. – Ainda não tive coragem de ir ao túmulo dela.

– Sim. – colocou a mão ombro dele – Você fez o que pode, foi um grande pai. – recebeu o silêncio como resposta.

– Bem, o que acham de entrarmos? Depois do almoço iremos caçar, e nada melhor do que caçar de pança cheia. – Jack passava a mão pela barriga, fazendo sinal de fome.

– Tudo bem – respondeu Richard, virando-se e entrando.

Depois de um olhar longo para Jack, Will voltou a falar.

– Você me parece bem melhor, Sr. Richard.

– Graças a este homem. – apontou para Jack enquanto falava.

– O milagre aqui foi você, meu caro amigo. – respondeu ele, com um sorriso de satisfação.

– E o que vamos ter para o almoço? – perguntou Will.

– O resto do veado que estava guardando para esse nosso encontro de domingo.

– O guisado que ele faz é divino, Sr. Will.

– E eu não sei? Venho aqui pelo menos uma vez por mês pra comer a comida que esse cara faz. Jack Higgs é uma lenda da cozinha. – Como de costume, riu espalhafatosamente.

– Não sabia que seu sobrenome era Higgs, Jack. – gritou Richard para ele, que se encontrava na cozinha.

– Desculpe por não ter dito, agora já sabe! – gritou para o quarto.

A memória de Richard não costumava funcionar de forma consistente, desde que ele sofrera o acidente. Mas naquele momento, como que por um instinto primitivo, ele se lembrou. Higgs. Will não percebeu a mudança em seu semblante, e isso era algo bom. Pois sua expressão de incredulidade, naquele momento, seria de espantar qualquer um. Ele se lembrou de que nunca havia ido à cozinha, nos momentos em que Jack estava cozinhando. E isso tornava seu medo cada vez maior. Lembrou-se daquela textura diferente, da cor engraçada e do cheiro de algo novo. Lembrou-se do fato de que a cadela não ia com sua cara, e ligou todas essas coisas à falta de comunicação que havia naquele lugar.

A notícia do jornal rodava em um “looping” infinito pela sua mente. Caminhou em direção à cozinha, e mancava ao fazer isso. Passou por Will que estava a sua frente, e ficou observando enquanto ele se locomovia. Dentro do pequeno cômodo, Jack usava seu velho e enferrujado cutelo. Batia com força, cortando a carne dura em cima da tábua. Richard se aproximou, e aquela manchinha de nascença, na parte do torso, perto do pescoço, confirmou seus temores.

Vomitou e caiu ao chão, se debruçando em cima do próprio vômito.

– Ei, tente não vomitar na comida. – advertiu Jack, enquanto ele continuava a despejar os restos não digeridos no chão da cozinha.

– Aí, Jack, olha o trabalhão que vai dar pra limpar.

– Pior de tudo, – ele continuava a cortar com o cutelo – é desperdiçar uma comida tão boa e nobre dessas.

– É verdade. Carne de criança é a melhor, sem sombra de dúvidas. – ambos riram, e Jack olhou para o amigo, encurvado no chão.

– Não fica assim, meu caro Rich. Lembre-se que hoje é domingo e domingo é dia de caça.

Richard, do jeito que estava, desmaiou. O nojo, a dor, a mágoa e incredulidade mostraram-se uma mistura forte demais para suportar.

***

– Ei, acorda! – o tapa na cara foi forte o suficiente. Ele estava amarrado à cadeira, e incapaz de se mover.

– Ahn...

– Isso aí, bom garoto. – Jack se aproximou e ficou ao lado de Will. Ele carregava um prato e comia com vontade.

– Servido? – de boca cheia, perguntou para Richard.

– Desgraçado! – acabou de falar e vomitou novamente, assustando os dois a sua frente, que se esquivaram.

– Tá maluco? E o que é isso de ficar vomitando? Você gostou, vai ficar assim agora? – sorria, enquanto ao lado, o outro apenas concentrava-se em comer.

– Você mentiu. Seu pai... aquele maldito canibal do jornal. Eu vi a notícia ontem à tarde. Minha filha... – o gosto amargo misturou-se ao sabor salgado das lágrimas, e mais uma vez ele vomitou, Já não havia mais nada no estômago, e o liquido incolor manchava o chão da sala.

– Sim, eu disse que meu pai me ensinou a ser o que sou. – terminou de comer e colocou o prato na mesa – Mas se te serve de consolo, ela não sofreu.

– Maldito! Por que? Tudo isso que você fez. Para que todo esse trabalho? – o sentimento que sentia era inexplicável. As imagens corriam por seus olhos, e a tristeza tornava-se cada vez maior, fazendo o choro descer em torrentes.

– O animal que tem a melhor carne, é aquele mais saudável. Sua filha chegou aqui aparentemente bem, então não vi o porquê de me demorar um pouco mais. Will veio aqui e me ajudou a limpar. O primeiro pedaço é sempre o mais delicioso. Até a Hilde concorda, não é verdade? – perguntou para a cachorra, que estava atenta, ao lado da cadeira.

– Por quê? Por que eu? – já não tinha mais forças para lutar, e sentia seu corpo ficando dormente. Os braços já não faziam mais força, e a cabeça começava a pender para o lado.

– Porque você foi o meu milagre. Desde os rapazes que caíram aqui há dois meses, que eu não como uma carne decente. Você, literalmente caiu do céu. – virou-se para Will e falou – O remédio esta começando a fazer efeito. A mesa está atrás da casa. Trouxe a faca que te pedi? – ele tirou-a do bolso e jogou para Jack.

– O que está acontecendo comigo? O que vocês vão fazer? – já não controlava mais seu corpo, e falava arrastado.

– Seu corpo está ficando dormente, e o que vamos fazer com você, é o que fazemos com todos os animais que pegamos. – levantou a faca e mostrou para ele – destrinchar!

Will voltou com a maca e a armou na sala. Juntos, desamarraram Richard da cadeira e o colocaram deitado. Amarraram o corpo, apenas por precaução, e saíram. Alguns minutos depois, vestidos com aventais e cada um com um cutelo na mão, voltaram para a sala.

Richard, com os olhos baços, os observava. Sentia vontade de falar, mas sua boca mole e cansada era incapaz de emitir algum som.

– Ei amigo. – falou Jack, usando uma máscara cirúrgica e toca plástica. – Não pense que é por mal, mas quando o bicho ainda está vivo, a carne fica mais tenra.

– O que vamos ter para hoje, Jack? – perguntou Will

– Costelas ao molho pardo.

Os cutelos desceram em conjunto, cortando a carne e exibindo o rubro. Mesmo que gritasse, distante de tudo e tão próximo do fim do mundo como estava, ninguém poderia ouvi-lo.


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