Crônicas da meia noite. escrita por JeeffLemos


Capítulo 16
O Homem Planta o Que Pode, e Colhe o Que Plantou




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/400942/chapter/16

O dia está quente hoje.

Não consigo me lembrar de um dia que tenha sido tão quente quanto o de hoje está sendo.

Hoje está diferente, e eu me sinto mais estranho do que o normal.
Sento-me na cama, estico minhas pernas e olho no relógio. Acordei atrasado, penso. Levanto-me preguiçosamente e arrasto-me até a janela. Abro as cortinas e sou atingido por uma onda de calor. Os raios de sol ofuscam meus olhos, e eu sinto dor. O céu alaranjado, aquarelado em tons oníricos, me conforta e me alivia. Está lindo.

Encaminho-me para o banheiro, tomo um banho gelado, escovo os dentes e passo o protetor solar, só por precaução.
Estranho

Geralmente minha esposa costuma acordar depois de mim, e hoje não a encontrei na cama. Desço para tomar café e não encontro ninguém na cozinha. O relógio na parede marca 07h45min. Estou atrasado. Deixo para tomar café no serviço e saio às pressas de casa.

Entro no carro, um utilitário seminovo, com espaço de sobra. Minha secretária adora.
O carro não liga. Giro a chave descontraidamente por alguns segundos, e ele pega no tranco. Sinto-me desligado e com certa resignação. Desço a rua e antes de virar a esquina, olho de relance pelo retrovisor e tenho a impressão de ver um carro parado em minha garagem.
Estranho.

As segundas-feiras costumam ser movimentadas, porém, olho ao redor e vejo poucas pessoas, caminhando entorpecidas, em seu piloto automático de cada dia. Uma menina, por volta de doze anos, atravessa a rua e um carro vem em sua direção. Ele a ultrapassa como se ela fosse uma brisa, e ela nem mesmo percebe. Muito menos o carro, que segue adiante. Sinto que isso deveria me assustar, mas não me assusta. Percorro meu percurso habitual, desligado do mundo, olhando para tudo e não prestando atenção em nada. Até o ponto em que percebo estar em uma rota diferente. Enquanto dirijo por ruas estranhas, o número de indivíduos caminhando aumenta, e toda a multidão converge para um ponto específico: A entrada do metrô. Uma entrada larga e diferente das que estou habituado. Paro meu carro, saio e caminho em direção as escadas, onde todo aquele fluxo se dirige. Sem saber o porquê, me junto à multidão, e começo a descer.

Um caminho para baixo, infindável e escuro. Uma brisa de calor me trespassa, fazendo brotar gotas de suor instantaneamente. Estou usando terno, como de costume, e isso torna a brisa em um mergulho em labaredas infernais. Afrouxo o nó da gravata e continuo caminhando.
Agora, em filas organizadas, as pessoas rumam ao negrume aterrorizante, silencioso e mortal. E ao lado de cada uma, um homem de terno preto e sapatos lustrosos as acompanham. Em minha mente, o medo começa a tomar conta, e me sinto apavorado. E resignado. Não tenho forças para voltar e sei que devo seguir em frente.

Ouço choros vindos de algum lugar a minha frente. Lamentos angustiados que soam como guinchos estridentes. Sinto o pavor se alastrar pelos meus membros e minhas pernas fraquejam. Uma mão me segura. Um homem de figura indescritível, caminha ao meu lado. Eu, fraco, suando descontroladamente e com medo, olho em seus olhos e sinto...
Sinto dor e arrependimento.

Vejo minha vida.

O dia em que roubei a caixinha de moedas da igreja, com onze anos. Os flashes torturam minha alma e vejo cenas da minha vergonha. O dia em que acidentalmente engravidei minha namorada de dezesseis anos, e a obriguei a abortar. Agora me sinto um lixo por isso; O dia da véspera do meu casamento, quando transei com a madrinha da minha noiva. O dia em que transei com a minha secretária e iniciei um caso que hoje já dura dois anos. As mentiras que contei, as trapaças que cometi e tudo que pudesse me causar arrependimento surtiu efeito quando olhei nos olhos do homem. Mas de alguma forma, eu sei que já é tarde demais.

Quando dou por mim, lágrimas escorrem pela minha face e se mesclam ao suor. Eu lamurio, e grito e sinto medo. O calor aumenta cada vez mais e um ponto de luz surge ao longe, no fim da escuridão. As pessoas ao meu redor não suportam o calor infernal, e começam a se despir. E eu também não aguento. Enquanto isso, os homens de preto continuam a nos acompanhar, e seus olhos são poços em chamas.
Começo pelo terno. Tiro-o e por baixo, minha camisa é pura transpiração. Tiro a gravata e jogo-a longe. A minha volta, homens e mulheres parcialmente nus. A minha frente, a luz aumenta gradativamente e suavemente muda de ton. Tiro a camisa, e em seguida os sapatos, as meias e o resto. Nu, sinto vergonha e dor.

Conforme me aproximo do ponto brilhante que aumenta no horizonte, o calor se torna imensurável. Bolhas se formam sobre minha pele e eu grito enquanto as coço e elas estouram. Os sons dos condenados a urrar formam uma melodia dantesca. Sinto minha pele escorrer com cera pelos meus músculos. Cada vez mais se torna difícil caminhar. Sinto meus músculos incharem, e eles começam a rasgar. Eu caio, gritando o mais alto que consigo. A luz completa seu ciclo cromático e torna-se laranja fogo-vivo. Os homens com olhos incandescentes continuam ao nosso lado, silenciosos e soturnos. Levanto-me e com o terror que nunca imaginei que pudesse sentir, vejo meus músculos grudados no chão onde cai. Tostando como carne em uma chapa. Olho para minhas pernas, e apenas os ossos posso ver. Em farrapos, o que restou de minha carne começa a cair. Sinto se tivesse sido embebido em lava.

Agora, sou apenas um esqueleto. Meus olhos explodiram e a gosma já caíra. Meus ossos estão transparentes e me sinto como um fantasma.
Caminhos pelos lances finais da escadaria, e chego ao ponto em que o calor é tão grande que já nem o sinto. A luz se torna ofuscante e me cega. Eu cubro meus olhos. O som dos gritos desaparece, e com ele a dor e a angústia.

Abro os olhos e vejo minhas mãos, feitas de carne e osso. Então é apenas um sonho, penso. Quando olho a frente, abaixo do abismo em que termina as escadas, vejo os campos da punição. Rios de lava, vapor de enxofre e acima um céu de fogo.

Chego ao fim do meu caminho, como um homem novamente. Um homem que aceita sua punição. Ao meu lado, o homem de terno se despede, e sem pensar, eu me jogo no abismo.
Caindo no que me parece um queda sem fim, eu sofro.

Minha carne queima e ferve como lava. Meus ossos se desintegram e curam com uma rapidez que amplifica em cem vezes a dor que corre pelo meu corpo, que se torna trapos, e recompõe-se novamente apenas para se desintegrar outra vez. Eu grito, mas não consigo emitir som algum. Minha garganta estoura com a pressão da queda, e eu sinto o gosto de sangue fervendo.

Depois de um tempo indefinido de um sofrimento que me pareceu eterno, eu acerto o chão. Caio como um meteoro e me torno uma mancha vermelha dentre muitas outras. Fecho os olhos que não tenho, e a dor que me faz desmaiar.

Acordo recomposto, e de frente para mim, uma construção de forma retangular se ergue. No automático, caminho em direção à porta e a abro. Ao entrar, me deparo com uma figura horrenda, me mirando do outro lado do cômodo. Seu corpo é deformado, uma aparência grotesca que é ainda mais acentuada por seus olhos malignos. O demônio fala comigo.
O tempo é fluído aqui, ele me diz.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Crônicas da meia noite." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.