Crônicas da meia noite. escrita por JeeffLemos


Capítulo 13
Paradoxo




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Diário de Joshua Herington, encontrado no porão de sua casa, por entre caixas e mais caixas de entulhos e bugigangas. Joshua era formado em Física e trabalhava no governo no desenvolvimento de projetos para melhoria da sociedade. Certo dia ele saiu para trabalhar e nunca mais foi visto. Seus amigos foram interrogados, colegas de serviço e qualquer outro que pudesse tê-lo visto, ninguém teve qualquer pista sobre o seu paradeiro. Houve relatos de mudanças de comportamento de Joshua, perto da data do seu desaparecimento, pelo menos foi esse o relato dos envolvidos no caso. Sua esposa havia dito que ele andava fechado e quase não saia de casa, andava para cima e para baixo com um caderno na mão, e hora ou outra estava escrevendo naquele mesmo caderno. As buscas por Joshua Herington cessaram após alguns meses e um funeral simbólico foi feito em sua homenagem.

Hoje sua filha voltou à antiga casa para recolher algumas coisas, pois ela e sua mãe pretendiam vender a casa de vez e o que não pudesse ser aproveitado, iria para o lixo.

Annie Herington entrou no porão, fuçou por entre as coisas e acabou encontrando o diário. Pegou-o entre as mãos, virou de um lado para o outro e encontrou o feixe, simples e sem nenhuma proteção. Subiu as escadas e caminhou para a cozinha, sentou-se sobre o balcão e abriu o diário. Ele estava abarrotado de coisas. Anotações em cima de anotações, cálculos, desenhos em esboço, mais cálculos, lembretes, alguns relatos... Annie folheou o diário sem se preocupar e foi passando as páginas sem muita atenção. Levou dois minutos sentada ali, revirando o diário sem nenhuma animação aparente. Pouco depois da metade, as anotações deixaram de ser simples anotações, os cálculos e os desenhos sumiram, e os relatos estavam separados por dia, havia um espaço de mais ou menos um mês destinado a esses relatos. Isso chamou a atenção de Annie, então ela começou a ler.

Dia #1

“Eu sei que estou parecendo um adolescente escrevendo diários, mas não confio no meu computador para gravar uma coisa dessas. Há duas semanas, em uma segunda de manhã, estava assistindo o noticiário sobre o 11 de Setembro. Pessoas falando, relembrando seus entes queridos e tudo mais. Porém, nas gravações do dia do acidente, feito por pessoas que estavam por lá, eu vi um homem. Era um homem comum, já com uma idade, diria que mais ou menos o que tenho hoje em dia, cinquenta e três anos. Não pude reparar muito, pois a imagem da câmera não era muito boa, mas esse homem estava lá, assistindo aquilo com certa “satisfação”? Não sei dizer, ele simplesmente parecia se sentir bem em estar ali. E isso não era o pior de tudo, o pior de tudo é que ele se parecia comigo! Eu não sei por que eu senti isso, eu simplesmente senti que ele se parecia comigo. Acho que no fundo eu senti medo, nosso projeto está quase concluído e logo entraremos em fase de testes com humanos, algo secreto, é claro, porém eu não creio que vá dar certo. Estamos muito distantes de encontrar a verdadeira realidade por trás de toda essa complexidade. Espero não estar enlouquecendo com todo esse estresse.”.

Annie não sabia o que sentir naquele momento, já passava das duas da tarde e sua mãe esperava que ela voltasse até a noite, já com tudo separado na casa, esperando apenas o caminhão de mudanças. Mas ela se sentiu tão absorvida pelas coisas que viu escrita ali, que não parou e continuo sua leitura. Alguns dias eram apenas relatos das coisas que aconteciam no dia-a-dia, outros eram mais pessoais, seu pai parecia estar enlouquecendo a cada dia mais.

Dia #13

“Hoje aconteceu de novo. Depois daquele dia eu venho procurado reportagens sobre fatos que tenham marcado nossa história durante esses anos, e alguns dele eu até tive vontade de vivenciar, pessoalmente. E foram nesses que eu me foquei. Procurei por alguns vídeos na internet e reportagens, vídeos amadores, qualquer coisa. Encontrei um sobre o furacão Katrina em Nova Orleans. Vídeos amadores de pessoas que estavam no local após o incidente, levando ajuda e resgatado feridos. E sim, aquele mesmo cara estava lá! Ele estava entre as pessoas que estavam ajudando, retirando crianças de lugares propensos à catástrofe e levando-as para locais mais seguros. Ele parecia estar disposto a fazer aquilo, assim como eu me senti quando aquilo havia acontecido. Lembro-me de, em um momento, ele ter olhado diretamente para a câmera e parecia estar olhando diretamente para mim. Não tenho ideia de como sei onde posso encontra-lo, eu apenas sei. E isso é uma coisa que está tirando minha sanidade, eu sinto quase como se o conhecesse, são apenas duas ocasiões e eu sei que pode ser coincidência, porém com os avanços que estamos tendo com o projeto, eu tenho ficado inseguro, mesmo o projeto caminhando para frente e não para trás. Vou procurar mais algumas coisas e sinceramente espero não encontrar mais nada. Isso está me deixando maluco, não sei o que fazer”.

Annie estava assustada com tudo aquilo que estava lendo. Seu pai, quem a havia criado e um exemplo para ela por toda a sua vida, estava enlouquecendo aos poucos, debaixo do nariz de todos, e ninguém foi capaz de perceber. Nessa hora, já eram quatro horas da tarde, e ela desceu do balcão, passou pela sala entulhada de caixas, pegou sua bolsa que estava jogada em cima de uma delas, colocou o diário dentro dela e saiu pela porta da frente, trancou a casa e foi embora, sua mãe a esperava. Chegando em casa, explicou para a mãe que havia muitas coisas lá, e que levaria mais de um dia para organizar tudo, sua mãe aceitou sem pestanejar, e ela subiu para o quarto. Deitou na cama sem nem mesmo retirar os sapatos, retirou o diário de dentro da bolsa e voltou a lê-lo de onde parou. Mais alguns relatos do progresso do trabalho e coisas cotidianas, agora com um pouco mais de loucura adicionado à escrita, e no décimo nono dia, ele havia voltado com a mesma conversa estranha sobre o homem que havia visto.

Dia #19

“Agora tenho certeza de que realmente estou enlouquecendo! Em 2009, um vietnamita abre fogo em um centro para imigrantes em Binghamton, Nova York (norte), matando treze pessoas. Ele estava lá, em vídeos amadores eu o vi, por entre as pessoas que observavam o trabalho da polícia e dos bombeiros ao recolher os corpos. Em 2010, as tropas do Iraque foram retiradas e um alvoroço marcou a chegada delas aqui. E ele estava lá, vi pela reportagem do canal 11, ele pareceu ter olhado para a câmera novamente, como daquela vez. Em 2011, Osama Bin Laden foi morto e uma grande coletiva foi armada para esclarecer o que havia ocorrido. E mais uma vez, eu o avistei por entre as pessoas que estavam por lá. Meu Deus, isso é insano, e a forma como eu sempre acabo o notando nos lugares... estou ficando maluco e com medo, e não sei mais o que fazer”.

A vontade de Annie Herington em mostrar aquilo à sua mãe era grande, mas ela tinha medo que o governo de alguma forma soubesse e viesse para buscar. O governo ficou muito em cima dela e de sua mãe logo assim que seu pai desapareceu. Até o momento ela ainda não havia entendido, mas depois de achar o diário de seu pai, começou a ter uma noção de o porquê. Continuou focada no que estava lendo, e nesse momento já passava das oito da noite. Nem mesmo ouviu sua mãe chama-la para o jantar. Ela já estava na metade do diário, porém as páginas escritas estavam acabando, e a cada página, ela sentia-se mais entorpecida, e também cada vez mais triste por não ter conseguido ver o que estava acontecendo ao seu pai. Finalmente, ela chegou à última página, depois de mais alguns relatos sobre o misterioso homem nas páginas anteriores, seu pai parecia com uma sanidade estável na última página, e por mais que parecesse “normal”, ainda falava algumas coisas sem sentido.

Dia #28

“Hoje eu acabei de perceber o que realmente tudo aquilo significava. Depois de ver todos aqueles vídeos e o encontrar nesses lugares que significavam algo pra mim, eu acabei entendo a mensagem. Peguei os papéis do experimento e analisei minuciosamente nesses últimos dias. Descobri que a possibilidade de regressão é maior do que a de progressão. Acabei de ligar para lá e me candidatar como voluntário. Na verdade, fiz até um favor para eles, ninguém queria ir e creio que ninguém iria mesmo. Mas eu sei o que vai acontecer, e sei que vai dar certo. Espero que minha esposa e minha filha um dia possam entender. Talvez eu tenha até mesmo escrito isso com esse intuito, minha menina é esperta e espero que ela acabe encontrando isso antes dos militares. Vou viver esses meus últimos dias o melhor que eu puder. Amo minha mulher e minha menina, porém o destino fala por nós de uma forma que não podemos mudar. Certa vez ouvi em um lugar, uma frase que dizia; “O destino é inexorável”, e isso eu não posso negar. Tenho que fazer o que vou fazer, afinal de contas esse é o ciclo. Se algum dia você ler isso meu amor, ou até mesmo você, minha filha, espero que vocês possam entender o porquê eu tive que fazer o que fiz. Mas lembre-se que eu sempre estarei observando vocês, e vocês estarão em meu coração, onde quer que eu possa estar”.

Annie tinha noção do que poderia ter acontecido, mas de forma nenhuma queria acreditar, ela fechou o diário, com lágrimas nos olhos e ficou deitada na cama, chorando e imaginando as coisas que aconteceram e a levaram até aquele momento.

Linda Herington estava na cozinha terminando de arrumar a mesa e já estava cansada de chamar Annie para o jantar, decidiu subir e ver o que estava acontecendo. Subindo as escadas, caminhou até o quarto da filha, e quando abriu a porta. Ela estava deitada na cama, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Seu olhar parecia triste e um pouco diferente, entorpecido. Aproximou-se da filha para saber o que estava acontecendo, e antes mesmo que pudesse falar alguma coisa, sua filha falou: “Temos que encontrar o papai”.

Dia #1

“Treze anos mais velho do que deveria estar, porém eu tenho certeza de que ninguém mais teve essa oportunidade que eu tive. Eu vi o mundo de uma outra forma, de certa forma, eu tive uma segunda chance. Eu fiz coisas que realmente queria fazer, ajudei pessoas e hoje me sinto bem por isso. Já fazem quatro meses desde que “eu” desapareci. Depois do meu desaparecimento, minha esposa e minha filha se mudaram da nossa antiga casa, e desde então eu venho visita-la com bastante frequência. Sempre tive esperanças de que minha filha acabasse encontrando o meu caderno, nunca o maldito governo. Eu a vi por aqui certo dia, e no dia seguinte quando retornei, fui no porão e meu caderno já não estava mais lá. Tenho certeza de que foi ela quem encontrou, e ela é inteligente, já deve ter percebido tudo. Desde tive minha segunda chance eu venho relatando tudo que acontece em minha vida, nesses diários. De certa forma isso virou um hobby para mim. Agora mesmo estou escrevendo enquanto estou dentro de um táxi, com dois buquês de rosas e uma caixa enorme de chocolates. Acho que já fiquei tempo demais fora de casa, sei que não sou o mesmo de meses atrás, mas ainda sou eu, e tenho esperança de ser aceito. Só falta mais uma esquina e eu estarei chegando em “casa”. Acho que é isso, a tensão está me matando e meu coração está martelando feito um louco em meu peito. O destino é inexorável e implacável, mas como sempre, eu espero que ele esteja do meu lado nesse momento”.

Joshua Henrington, treze anos mais velho em apenas quatro meses, desceu do táxi e se encaminhou para uma pequena casa, em um bairro familiar na zona norte de Seattle. Seu coração estava cada vez mais rápido, e ele transpirava compulsivamente. Ajeitou seus cabelos, agora mais grisalhos do que nunca, e desajeitadamente tocou a campainha. Esperou durante dez segundos até que ouviu o barulho do trinco sendo destrancado. A porta foi aberta e Annie colocou o rosto entre a fresta da porta. Ela arregalou os olhos quando olhou para aquele homem em sua porta, pois o reconhecimento veio automaticamente. Seus olhos começaram a lacrimejar e ela gritou para que sua mãe pudesse ouvir.

– Mãe, acho que não precisaremos mais procurar pelo papai! – Com seu coração aos saltos e uma felicidade tomando conta de seu corpo, ela abriu a porta abruptamente e abraçou seu pai, que havia voltado para o futuro.


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