When You're Strange escrita por Jamie Hermeling


Capítulo 5
A forma covarde de conter sentimentos em palavras




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Ino me informara, meio sem querer, sobre o clube de literatura.

Os alunos costumavam se reunir, sob supervisão da professora, em um horário extra-classe e compartilhar seus escritos. Os outros ouviriam e criticariam, fariam alusões e comparações sobre outros escritores e períodos literários. Me parecia imperdível, e ainda sim, minha timidez e falta de coragem de me expor tanto esfriavam minhas expectativas.

Porque eu não sabia escrever sobre situações diferentes, política, economia e sociedade. Eu só sabia escrever sobre mim. Tudo o que eu escrevia, era, de uma forma ou de outra, aquela parte da minha alma que eu não conseguia conter em meu corpo.

Eu me sentia nua só de pensar em ler algo que eu escrevera para outras pessoas.

Mesmo assim, Ino estava ali, do meu lado, tentando ferozmente me convencer a ir. Disse que começara a frequentar o clube ano passado e se surpreendera por ser tão bom. Viria comigo, para que eu não me sentisse tão perdida. Não pude negar mais uma de suas gentilezas.

Passei o dia nervosa, preocupada com as mil maneiras pelas quais as coisas poderiam não dar certo. Tentei, no entanto, não deixar transparecer perto de Myuu. Ela tinha tirado o dia de folga na clínica só para ficar comigo. Percebi, pela sua falta de jeito, que ela não sabia como iniciar uma conversa comigo. Myuu era a irmã mais nova de minha mãe, e muito cedo, saíra de casa para ir tentar a vida em outra cidade. Mantinha um equilíbrio variante entre responsável e inconsequente. Desde então, nunca tivera muito contato com a família. Antes de morar com ela, não a havia visto mais de três vezes.

-      Myuu, eu queria saber se os documentos sobre a minha guarda já estão prontos – perguntei, enfim, lembrando da obrigação que havia tomado diante de Naruto.

-      Eu só tenho tua guarda provisória, Hina, ainda vai ter audiência com o juiz e teu pai sobre a definitiva – ela respondeu alto, em cima de uma escada, tirando a poeira de cima do guarda-roupa.

-      Eu tenho uns papéis da escola para você assinar. E preciso tirar umas fotos. Ah, também vou sair hoje, pode ser?

-      Sair? Pra onde? – Myuu levantou uma sobrancelha e sorriu torto pra mim, insinuando minhas supostas segundas intenções.

-      Clube de literatura – respondi simples, ela comprimiu os lábios pela obviedade.

-      Claro. Mais tarde tiramos suas fotos e eu já te deixo na escola.

As fotos 3x4 saíram como sempre: meu rosto redondo demais, meus cabelos assanhados demais e minha boca torta, mesmo que eu tivesse ajeitado meus fios e procurado um bom ângulo para minha cabeça. No final, não dei muita importância e não quis tirar outras. Myuu, como prometido, me deixou na escola. “Divirta-se” disse-me, quando eu descia do carro. Seu sorriso morno mostrava que ela duvidava que aquilo pudesse se concretizar.

Me dirigi à sala três, logo no primeiro andar, onde me comunicaram que funcionava o clube. Não vi Ino no corredor – ela me prometera que esperaria do lado de fora, assim eu não teria que entrar sozinha. Abri a porta e logo encontrei alguns rostos – uns sorridente, outros levemente surpresos por dar de cara com uma desconhecida. As cadeiras estavam organizadas em círculo: a professora Kurenai ocupava o lugar mais próximo do quadro. Encontrei lá duas meninas de cabelos marrons: uma com dois coques no cabelo, que me sorriu simpática, a outra parecia ainda mais nova que eu, e me lançou um olhar indiferente. Havia um ruivo com expressão melancólica, a qual em nada se alterou ao me ver. Fora eles, mais dois garotos que conversavam assuntos paralelos – um de cabelos pretos, com um corte estranho, e outro meio gordo, que gesticulava animado.

Naruto também estava lá, porém não no círculo – via alguns papeis na mesa do professor, sem parecer muito animado.

Ino acabou não vindo, e eu me senti espremida por aquelas cadeiras, sufocada pela mistura de perfumes.

-      Bem – Kurenai começou, juntando as mãos. – É nosso primeiro encontro, muita gente não está sabendo ainda, então divulguem a ideia. Vamos esperar mais alunos para a próxima reunião. Alguém quer começar?

Depois de uma pequena discussão, a garota com os coques de penteado levantou a mão, e suspirando cansada, disse que começaria.

-      Eu escrevi isso ouvindo Ne me Quitte Pas, de Jacques Brel. É o meu título, também. É mais sobre não se apaixonar do que fazê-lo – ela disse, e pareceu tentar recuperar o ar.

-      “Não sei o que é isso que descasca meu peito feito unhas sujas descascam as árvores no outono – é a vontade e te amar ou o medo de te amar?
Tudo o que eu sei é – é você.
Não me deixe – não ainda, não antes de eu descobrir. Não antes de eu desistir. E fugir. Não antes de eu descobrir que sou muito covarde pra sentir.”

Depois disso, Kurenai disse que era a vez do ruivo. Algo em suas trocas de olhares demonstrava que se conheciam há muito tempo, coisa que era confirmada nos gestos gerais do ruivo – aquela sala parecia sua casa, e por um fio, eu quase me sentia uma intrusa.

- Minha única inspiração pra isso foi um gato que passou do beco da minha casa – o ruivo disse, e todos nós, inclusive ele, rimos um pouco. – Dei o título de “Interferência”.

- “Com o passar dos anos, eu já não podia olhar nos olhos do gato – investigá-lo e deixar que investigasse minha alma. Não podia mais discernir a estruturas celtas nem o brilho que jogava a leviandade de volta. Seria incorreto atribuir a causa de tal impotência aos meus dois graus em cada olho míope. A verdade é que a malevolência execrável e mesquinha que toma conta de todo ser ao longo de cada lustro, de mim apossou-se rápida, absoluta e indelével como a autêntica anfitriã de minha existência”.

O ruivo terminou, e a atmosfera do lugar tornou-se completa e única. Nós não nos apresentamos no começo, nós nem sabíamos o nome um do outro. Ali nós podíamos ser o que quiséssemos – tolos apaixonados de paixões passageiras e solúveis, fracos repetidores de erros e bons jogadores de conversa fiada. Qualquer coisa. Nós não tínhamos identidade fixa, nem casa, nem parentes, nem obrigações. Nós só tínhamos as letras. Aquilo me encantou. Naquela sala, eu me sentia mais confortável do que se estaria com meus amigos mais íntimos.

- E você? – Kurenai perguntou de repente, dirigindo-se a mim.

A verdade é que eu não preparara nada. Eu não escrevera nada, pela pura pré-certeza de que não conseguiria jamais me expor a desconhecidos. Ino me dissera que eu não precisaria, já que era minha primeira vez. Mas o tom intimista daquela sala, a sensação de que nós éramos parte de um clube secreto e especial era tão grande que a ideia de não compartilhar nada me parecia altamente mesquinha. Lembrei-me de um poema que havia escrito há alguns meses, e o tinha decorado em minha mente.

-      Esse é um poema sobre o intermediário. Chama-se “Ballet de Vagabundo”.

“E eu dancei sozinha a minha tristeza
Tentando parecer leve nos meus passos e me sustentando nas pontas dos dedos e dando meus saltos que nunca foram leves e carregando minhas lágrimas que nunca foram leves
Eu dancei sozinha para as paredes amarelas que me adoeciam e me circundavam esperando minha morte
Eu dancei com as janelas fechadas para que minha tristeza não fosse embora
Eu dormi para que a minha tristeza fosse embora
Eu dormi e acordei e não sei se isso é bom
Eu dormi e não tive tempo para ler Reale
Eu deitei e não me importei com a Guerra Fria
Eu deitei e tentei amar a Guerra Fria
E as mortes de outras guerras que não fossem as minhas”.

Observei Naruto. Ele parecia paralelo às nossas palavras, embora olhasse para nós. Em seus olhos, vi que sua permanência ali estava torturando-o, e desejei saber por que.

No fim, nos fizemos críticas – eu recebi aplausos. O garoto de corte de cabelo estranho, com sua voz alta e deselegante e seus olhos deveras grandes demais me surpreendeu positivamente. Escrevera algo sobre o tema mais comum que existe: amor não correspondido. Usou as mesmas palavras estupidamente comuns, e ainda sim, suas frases – “Há tanta dor e ninguém consegue encontrar as luzes. Apenas diga que me ama, não precisa ser verdade. Apenas diga” – me soaram com uma prece de desespero único e grudaram em minha memória.

Nos despedimos sem demora e sem grandes cumprimentos – Naruto foi o primeiro a sair, e me apressei em ser a próxima. Não saberia reagir a um elogio, e meu sorriso sairia sem graça depois de um “tchau”. Ele ia na frente e eu atrás – ele em seus passos pesados e apressados – e eu ficando cada vez mais para trás com meus passos leves e errantes.

Chegamos, enfim, à calçada. Naruto olhou algo em seu celular e pareceu não gostar. Encostou-se num carro, e finalmente, de frente para mim, me viu. Seu mesmo sorriso comercial abriu-se.

-      Gostando da escola? – ele perguntou ainda de longe.

-      Sim – respondi num meio sorriso. – Ah, já arrumei o que você pediu, amanhã trago.

-      Muito bom. Se você os tivesse aqui, eu receberia agora mesmo.

Admirei sua pressa e o fato de ele ter adivinhado. Entreguei-lhe as fotos e a assinatura de Myuu. Ele as colocou seu muito cuidado numa pasta que trazia.

Naruto comprimiu os lábios, era a hora que nos despediríamos e ele entraria em seu carro. Eu iria para casa a pé.

Foi então que ouvimos um barulho estranho e olhamos sem pestanejar para nosso lado esquerdo. Uma garota apoiava a mão na parede da escola e vomitava na calçada. Não parecia nada bem. Quando levantou a cabeça e deixou que sua face fosse visível pela iluminação da rua, eu percebi rapidamente quem era. A garota dos cabelos róseos.


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