When You're Strange escrita por Jamie Hermeling


Capítulo 2
Uma doença lenta que resseca




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O prédio Lorenz era uma construção moderna, vistosa e bonita bem no centro da cidade. Um lugar onde dificilmente se pensaria em passar para um roubo, pois notadamente, a segurança dali não era das piores. O apartamento quarenta e dois, em especial, era do tamanho padrão, sem nenhuma regalia a mais, a não ser uma varanda delicada que permitia uma vista generosa do mar de luzes da cidade à noite. E naquela noite em especial, ninguém iria supor que havia uma pessoa ali dentro. Tudo estava escuro e em silêncio, a não ser pela televisão e os dentes de uma garota em trabalho fervoroso de mastigação.

Sakura devorava um pacote de salgados - que não ofereciam nem dez por cento dos valores nutricionais diários requeridos - brincava com uma garrafa de cerveja e se remexia constantemente no sofá. Não vestia nada além sua própria pele.

E naquele momento, as vozes dos atores eram algo ainda mais distante que um som ambiente. Estava exatamente pensando em como morar sozinha era a melhor coisa de todas. Não do jeito que todo mundo exclama quando fazem algo que gostam - sair com os amigos, passear com cachorro, ou tirar boa nota, comer chocolate, relaxar num feriado, ouvir uma música boa sem nenhum barulho a mais... - não. Morar sozinha para Sakura - pelo menos naquelas duas primeiras semanas - era a melhor coisa de sua vida. Ou ao menos, a melhor de que podia se lembrar.

Sorriu genuinamente por ter se livrado das pequenas coisas e das grandes coisas que para ela, havia tornado insustentável dividir uma casa. Fechou os olhos em deleite sibilando um prazeroso nunca mais.

Olhou a mobília recém-comprada - e apenas por isso limpa - contemplando-a com satisfação. Parecia se encaixar perfeitamente no apartamento. Escolhera um dos menores à disposição apenas para sua comodidade, além de que o lugar tinha um ar intimista e acolhedor que ela adorava. Em horas como aquela - pelo menos em horas como aquela - ela tinha a certeza imaculável de que amava seu pai.

Pegou o celular no chão, quase debaixo do estofado. Havia três mensagens. A primeira era do irmã, perguntando por um dinheiro que ela supostamente - Lindsay não lembrava de nada disso - devia a ele. Se Chise conhecia a irmã, já sabia previamente que jamais teria a quantia de volta. A segunda era de Sai, colega da velha escola, perguntando onde diabos a garota tinha se metido. Passou para a última e não teve surpresa ao ver que era da operadora. Seu pai já gastara tempo demais cuidando da papelada do imóvel e não perguntaria como ela estava. Sua mãe provavelmente nem sabia como enviar uma mensagem de texto, e quanto aos amigos, Sakura era consciente de que não os tinha mais. Com exceção, claro, de Sai, porque ele era tão persistente que por vezes ultrapassava os limites do agradável.

E de verdade, as chances de responder a operadora eram maiores do que as de responder Sai.

Largou o aparelho no chão mais uma vez e olhou para a TV. Não prestara atenção desde o momento em que a ligara e sequer sabia o que estava passando, só sabia que não era bom. Acabou dormindo com farelos se espalhando pelo rosto, cabelo e corpo, sem ligar o aquecedor e sem cobertor algum, numa posição que obviamente lhe renderia um torcicolo.

Um torcicolo e uma dor de cabeça. E tempo nenhum para comer, arrumar a mochila corretamente - muito menos seu cabelo - nem mesmo dinheiro suficiente, que ia desleixadamente esmagado na mão direita.

Sakura olhava as calçadas e paredes com uma atenção peculiar - nada ali era novo, no entanto ela procurava cuidadosamente algo que fosse.

Para Sakura, Treton era uma daquelas cidades das quais nunca se pode esperar muito. Um daqueles lugares que são bonitos, mas onde ninguém sente vontade voltar - ou ficar. Quando fria, não era romântica, quando quente, não era aconchegante. Trenton era uma daquelas cidades que, no plano mais puro e técnico tinham tudo para ser admiráveis, mas por uma razão subjetiva demais para ser palpável, não provocavam nenhuma inspiração.

De Treton não se podia esperar nem mesmo uma estação de metrô limpa. Ela sabia disso do fundo de seu pessimismo, e mesmo assim, não pode deixar de dedicar atenção extra ao cheiro de carne podre ou à desorganização anômala. Naquela manhã, havia menos gente e mais policiais que o normal.

Dois pilares à sua esquerda podia enxergar uma faixa amarela cobrindo uma área de aproximadamente dez pés. Um grupo de pessoas a circundavam, enquanto os menos humorados policiais reclamavam para que saíssem. Sakura deu de ombros. Era provavelmente um assassinato que, se de muita importância, ouviria sobre ele a semana inteira. Caso contrário, se perderia nas estatísticas ou num canto qualquer de jornal.

O metrô chegou, levantando a poeira da faixa amarela, e qualquer curiosidade ou questionamento que sobrevivessem na mente de Sakura foram prontamente banidos.

Sentou-se no banco mais próximo da porta, havia acabo de acordar, mas estava estranhamente cansada. Tirou sua jaqueta, cedendo ao calor, guardou o dinheiro restante num dos bolsos. Revirou a mochila, demorando pra achar o celular e mais ainda para achar o fone de ouvido. As dezenas de lápis estavam espalhados, soltos. Parecia a mesma mochila da quarta série.

Sakura bagunçou ainda mais seus cabelos róseos quando se afundou no banco, tentando se envolver pelo som do baixo distorcido e pela voz anasalada do cantor. Na parte preferida da música - aquela em que ela olhava pra cima e fechava os olhos lutando para não cantar junto - alguém a tirou desse mundo onírico com um simples e cruel puxão no fone direito.

- SAKY! Nossa, nem acredito que já te encontrei! Eu já estava mesmo ficando preocupado de não te achar, ficarmos em salas diferentes, etc.

Sakura reconheceu a voz na primeira sílaba. Prendeu a franja atrás da orelha e olhou por baixo, não muito amigável, para o garoto, que estava em pé à sua frente, com as mãos nos bolsos largos e um sorriso no rosto.

- Oi, Lee. O que diabos você tá fazendo aqui? A nossa, digo, a sua escola é do outro lado da cidade.

Ela disse o óbvio, embora já desconfiasse do motivo pelo qual ele estava ali. Era a cara dele.

- A escola ficou meio sem graça e eu já tinha problemas lá, lembra? - Lee deu de ombros, visivelmente embaraçado, forçando-se a continuar sorrindo. - Neji acabou me dizendo que você vinha pra cá, e eu...

- Você me seguiu.

- Meio que sim.

Sakura bufou, sem irritação. Rock Lee era um garoto com nenhum atrativo - pelo menos numa avaliação para além das barreiras físicas - era atrapalhado, não sabia falar de coisas boas e não conseguia agradar ninguém, mesmo quando tentava. Por isso mesmo, ela dava seu melhor para tratá-lo ao menos decentemente, apesar da paixão estranha que ele desenvolvera por ela. Lee nunca fora do tipo que se apaixonava por alguém. Lee nunca foi do tipo que gostava de alguém. E ela sabia que, por essa razão, as coisas nunca eram fáceis para ele. Ter problemasera eufemismo demais.

- Tudo bem. Foi o melhor, você ia acabar se degenerando no meio da podridão daquele colégio.

Ele riu, desajeitado, e intimamente aliviado. Sentou-se ao lado dela.

- Como o Neji sabe onde você está?

- Aquela vadia da minha irmã vive dando em cima dele, mesmo que jure o contrário. Ela deve ter falado pra ele. Outra idiota.

Lee tamborilou os dedos na janela, num silêncio de um minuto. Ponderou o que ia dizer - se devia. As palavras vieram à garganta uma, duas, três vezes e voltaram. Na quarta, saíram de supetão.

- O Kiba e ele e... Todo mundo, eles nem falam de você. É tão estranho, é como se você nunca tivesse existido. Não que eu fique muito com esse pessoal, mas... Eu não entendo eles. Vocês eram amigos e do nada...

- Não pode julgar o que não conhece - ela levantou a sobrancelhas e contraiu os lábios, pegando um dos fones de volta.

- Eu sei lá o que você fez, mas é estranho. Gente normal estaria falando mal de ti até enjoar.

Sakura não respondeu. Rock Lee continuou a observá-la, já que ela não podia vê-lo - os olhos haviam se fechado mais uma vez. Murmurou um quem sou eu pra falar? e conformou-se com o silêncio até o fim do trajeto.

Caminharam da estação até a escola sem muita interação. Lee se esforçava apara manter uma conversa, mas além da vontade de Sakura não ser muita, o rapaz falava apenas de assuntos pelos quais ela não se interessava ou não conhecia. Ele se calava brevemente a cada tentativa, parte por não ser bom com comunicações, parte por saber que Sakura provavelmente ainda estava irritada com a perseguição.

Ele parou maravilhado assim que ficaram de frente ao prédio que exibia em tons sóbrios o nome de Loyal Trenton High School. As paredes, a pintura, o design, texturas e janelas daquele lugar o forçaram a parar e admirar alguns segundos. O gramado na frente era cheio de vida, tanto pelo verde ávido quanto pela multidão de pessoas que a cercavam. Rock Lee estava tomado de expectativa e ansiedade.

Sakura, no entanto, já terminava de cruzar a passarela, nenhum olhar dispensado à escola, nem muito menos ao formigueiro humano. Não iria queimar sua pele e seus olhos naquele sol escaldante por nada.

Foram cinco minutos e meio contados de lamentações por não terem ficado na mesma sala. E Lee, com toda a sua gentileza, disse que fazia questão de pelo menos aproveitar o tempo antes da aula para fazer companhia a Sakura. Afinal, quando chegaram, havia apenas um rapaz ruivo estranho debruçado na janela, entretendo-se com algo que era um mistério. Não queria deixá-la sem nada para fazer por quinze minutos, muito embora, nos próximos sete que se passaram, Rock Lee tivesse ficado preso a um monólogo, no qual Sakura apenas participava com um aceno positivo de cabeça.

- Vou comprar alguma coisa pra comer - ela disse de repente, levantando-se e interrompendo o discurso de Lee sobre a arquitetura da rua.

- Mas a gente vai perder tempo da aula! - o rapaz protestou, e no entanto, já a acompanhava pelo corredor.

- Você não precisa vir, vá pra sua aula. Eu não comi antes de sair de casa, estou morrendo de fome.

- Você vai ter que andar bastante pra achar comida, o refeitório não está aberto.

Sakura parou antes de descer as escadas e riu do modo que Lee falava.

- Notei que tem uma lanchonete aqui quase de frente. Vá pra sua aula, faltam só cinco minutos.

Ele ficou no topo da escada, amuado, vendo Sakura descer os degraus de par em par e correr pelo salão. A aula seria ruim, de qualquer maneira, e talvez ele pudesse escapar da terrível hora das apresentações - resolveu segui-la.

O que encontrou ali fora foi um cenário bem diferente do que vira pouco minutos antes. Um carro cinza se encontrava no meio do gramado, deixando um rastro de terra sobre a grama arrancada e a multidão que antes estava espalhada, agora encontrava-se reunida em torno do automóvel.

Sakura parou a pouca distância, na indecisão entre verificar o que havia acontecido ou seguir e comprar sua comida. Diferente do caso no metrô, agora o assunto lhe interessava mais, embora não soubesse por que - talvez por ser numa esfera social menor, talvez por aquela ser a única chance de obter detalhes. Ela não precisou pensar muito - logo, os acontecimentos fariam das possibilidades um plano de fundo. O círculo mal feito de gente começou a se dissipar ao som de protestos e gozações que ela não entendia por serem muitas. Parece que, ao ver o rosto do acidentado, todos tinham perdido o interesse. Quem estava agora de joelhos, com grama dos cabelos à calça, tirando a terra da camisa era um garoto de cabelo escuro, que ia até quase os ombros, com uma aparência ainda mais furiosa do que a situação permitia - e talvez não tão sóbria. Mal olhou ao redor com seu brilho raivoso, cravou-o em Sakura, e veio até ela em passos que pareciam uma marcha.

- Mas que merda, se quer vadiar, não faça isso no meio da rua, na frente do meu carro, sua escrota!

Sakura piscou os olhos duas vezes e limpou o respingo de saliva que tinha ido parar em sua bochecha. Sua calma se dava unicamente pelo completo desconhecimento da situação.

- Como é que é, meu filho?

- Não se faça de idiota, você teve a brilhante ideia de falar com sei lá quem do meio da rua e olha o que aconteceu - o rapaz saiu da frente dela apenas para apontar o desastre que todo mundo já vira. - Não sei o que me deu que eu não te atropelei.

Sakura o encarou em silêncio e tentou encontrar calma em uma respiração mais profunda.

- Cara, eu saí lá de dentro agora, agora, há dois minutos. Sinto muito, mas você está me confundindo, e sinceramente? Vá pra casa, pelo amor, nem sóbrio estás - balançou a cabeça indignada e preparou-se para voltar. Sair da sala tinha sido realmente um erro e ela iria procurar ouvir Lee da próxima vez.

- Não preciso de uma imbecil pra me dar conselhos, e nem vem com essa, eu vi a sua roupa, era você. E você vai pagar o estrago, tá me ouvindo?

- Ah, você sabe que sou eu por causa da roupa?

O moreno fez que sim fervorosamente. Os dentes até se cerravam de impaciência.

- Essa calça jeans comum e essa camiseta de dez dólares que pode ser facilmente adquirida em umas vinte lojas de departamento da cidade e que com certeza tem umas cinquenta meninas nelas vestidas hoje, com uma possível variação de cor apenas?

Sakura riu, e foi acompanhada por parte do público que agora assistia à cena. O rapaz visivelmente não estava nem um pouco feliz por ser contrariado, mas não disse nada.

- Olha, só agora, nesse pátio, eu posso te apontar três garotas com ela - Sakura observou como as outras completavam a camiseta tão básica com acessórios tão diferentes que às vezes, nem pareciam mesmo ser iguais. - Boa sorte procurando sua culpada, acho que não vai ser fácil. E ah, eu tenho um álibi.

Sakura afastou-se depressa, e se tivesse ficado pra acompanhar mais um pouco a expressão do rapaz, teria pela segunda vez a impressão de que ele parecia algum punk das bandas que escutava dois anos atrás - impressão que ela repudiou por não achar o marginal juvenil digno o suficiente. Não demorou a avistar Lee, que aparentemente havia acompanhado a cena e ria-se todo.

- Qual é a desse maluco? - zombou.

- Não faço ideia, mas continuo com fome.

Sakura quase tomou um susto com o tapa leve que recebeu no ombro. Era uma garota que nunca vira, ruiva, com um óculos de grau no rosto, um cabelo espetado e postura altiva. Estava acompanhada de outras duas - uma, inclusive, vestindo uma blusa igual à sua.

- Hey, não ligue pro Sasuke, ele arranja problemas com todo mundo, nem é mais novidade.

Sakura sorriu e deu de ombros. Agora havia um garoto loiro que brigava com o moreno, aparecido sabe-se lá de onde.

- E quem é aquele?

- Ah, deve ser um dos líderes de turma, eles aparecem quando surge alguma treta - deu de ombros. - Nossos carrascos - a garota sorriu, com uma sobrancelha de ironia levantada e foi embora, sem dizer seu nome.


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