Inopino escrita por Roberta Matzenbacher


Capítulo 20
Capítulo vinte


Notas iniciais do capítulo

Oi, meninas. Como vão?

Acredito que nenhuma de vocês possa perceber, mas estou sentindo uma vergonha astronômica neste exato momento. Bom, em verdade já faz algum tempo que estou assim, mas é só agora que posso dizer isso com todas as letras. Sei que demorei muito para postar e, nossa, uma coisa como essa não tem explicação. Eu não faço ideia do que anda acontecendo comigo ultimamente. Bem… até tenho alguns palpites, mas como vocês já sabem eles de cor, não vou gastar tempo explicando.

Espero compensar minha demora e meu sumiço – ando recebendo algumas indiretas sobre o assunto... – com este capítulo gigante que eu finalmente terminei. Admito: eu podia ter concluído antes. Estava só sem vontade de escrever em Inopino. Meninas, não sei quanto a vocês, mas a autora se enjoa um pouco de escrever a mesma coisa sempre... Queiram perdoar-me, porém o Dimitri... Ele é muito parado! ushaushaush. Só agora é que ele pensa em tomar alguma atitude; e isso vai cansando, sabem?

Mas chega de falar. Desejo que gostem do que eu preparei.

Boa leitura.



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Capítulo vinte

O alarme começou a tocar, despertando-me de um sono profundo. No mesmo instante, senti uma forte pancada na cabeça, alertando-me para a vinda de uma enxaqueca daquelas. Fazia muito tempo que eu não ganhava nenhuma – mais precisamente, desde que me recuperara do estresse pela morte prematura de Ivan –, mas, se analisasse bem o momento, as circunstâncias não eram muito diferentes. Mais uma vez, um protegido meu estava em perigo e, o pior de tudo, eu me encontrava de mãos atadas, sem nenhuma opção além de aguardar algum sinal.

As imagens do que ocorrera na noite passada me invadiam sem piedade. O coelho, todo aquele sangue no banheiro, sobre a pele de Lissa, suas lágrimas desesperadas e aquele bilhete maldito. Tudo era uma confusão. A Academia não estava conseguindo lidar com os acontecimentos, cada um seguindo para uma direção diferente, sem de fato encontrar as respostas; e, no meio disso, havia um cerco cada vez mais estreito ao redor de Lissa.

Não havia dúvidas de que aquelas ameaças deveriam ser levadas a sério. Quem quer que estivesse por trás delas não pouparia seus esforços até ver a princesa completamente desestabilizada, tão confusa e temerosa a ponto de tomar medidas extremas, como fugir de St. Vladimir novamente. Isso me fazia questionar o que ocorrera da primeira vez em que elas desapareceram. Será que houveram episódios semelhantes? Uma tentativa eficaz de fazer com que Lissa e Rose cedessem àquelas ordens sem sentido?

Como era evidente, existia algum tipo de interesse oculto mascarado naquelas frases, algo que Lissa tentava esconder e que essa pessoa queria desesperadamente. “Eu sei o que você é”, dizia o bilhete, “Você não vai sobreviver por muito tempo se ficar aqui.” Tais palavras eram claras, não havia blefe, muito menos tiros no escuro. Claro que eu já sabia da gravidade dos fatos. Desde o início, quando o primeiro animal morto surgiu como evidência, eu corri atrás de mais pistas, mas, por algum motivo, não conseguia parar de pensar que aquilo que eu menos dera atenção era o que de fato me levaria à resposta final.

Na noite em que Rose e Lissa cochicharam ao lado da raposa – um acontecimento que parecia se distanciar por anos –, elas falaram sobre um episódio semelhante ao que ocorrera ali, algo que Lissa tentou fazer, mas não conseguiu. Eu ficara atento em busca de mais informações, entretanto Rose cortou o assunto antes que ela pudesse revelar algo importante. Agora, depois de toda a pesquisa que fizera, porém, eu me sentia mais perto de resolver a charada, enfim capaz de interligar as pontas soltas, mas sem conseguir evitar uma pontada de impaciência por continuar neste específico ponto cego.

Era enervante. Meu corpo e minha mente estavam esgotados de tanto pensar sem chegar a qualquer conclusão. Como em um filme, eu me via parado no mesmo lugar, impotente, enquanto assistia o fim se aproximando de mais uma pessoa querida que eu queria proteger.

Eu era um amaldiçoado. Um ser marcado pela vida a vir para sofrer, para perder quem estivesse ao meu redor. Ninguém, absolutamente ninguém permanecia comigo. Fora assim com meu pai e, depois, o restante de minha família. Como se não me bastasse a dor de perde-los, logo mais Ivan se foi. E, quando eu finalmente conseguira me reerguer, firmar um plano sólido e objetivos a seguir, sendo designado para o cargo de maior prestígio entre os guardiões, via isso desmoronar outra vez.

Se era egoísta, mesquinho? Lógico que sim. Eu me sentia uma pessoa péssima por sequer pensar nessas coisas, tornando pessoal um problema que nem ao menos me pertencia. Só que eu não podia evitar. Era da minha natureza me cobrar por cada falha, exigindo nada menos do que o melhor para todos. Odiava quando as coisas saíam dos eixos, um misto de revolta e fracasso me tomando de uma forma tão devastadora que eu não poderia fazer outra coisa além de me compelir e admitir mais esta fraqueza.

Com um suspiro carregado de lástima, forcei meu corpo para fora da cama. Não havíamos combinado nenhum tipo de horário, mas eu sabia que, provavelmente, Alberta e Kirova já estavam a minha espera. Então, rapidamente fiz minha higiene e coloquei roupas limpas. Só tive tempo de pegar meu casaco antes de sair pela porta enquanto amarrava os cabelos de qualquer jeito atrás da nuca.

No meio do caminho, porém, conforme passava pelo centro médico, perguntei-me se a princesa estaria bem. Decidi entrar para conferir, mas fui barrado pela mesma enfermeira da noite passada antes de sequer chegar perto da porta.

— Ela ainda está dormindo. – Ela sussurrou, seu tom sério e cansado. – Quer algo em especial, guardião Belikov?

— Não. Apenas queria saber se está tudo bem. A princesa passou por um grande trauma ontem. Acredito que lidar com tudo isso não deve ser uma tarefa fácil.

— De fato. – Ela concordou, olhando em direção à porta de Lissa com um sorriso admirado. – Mas ela tem uma grande fortaleza guardando suas costas.

Um sorriso conseguiu escapar por meus lábios, mesmo que eu fizesse força para esconde-lo. Uma onda de orgulho tomou conta de mim quando me lembrei da atitude defensiva de Rose e o quanto ela jamais me parecera tanto com uma guardiã como na noite passada. Bem, com exceção, talvez, de Portland.

— Sim. – Eu disse. – Ela tem.

Por fim, Erica permitiu que eu entrasse para averiguar Lissa. Como mesmo me dissera mais cedo, a princesa dormia tranquilamente, seu semblante sereno e lívido. Olhando-a assim, uma repentina imagem de anjos imaculados e bondosos apareceu em minha mente. Ela era tão doce e sensível. Ainda que não convivêssemos por tanto tempo, eu tinha certeza de que conhecia o motivo por trás do ímpeto que Rose tinha em protege-la. Eu sentia algo muito semelhante. Ver uma criatura como ela sofrendo nas mãos de um louco sanguinário era revoltante, fazendo-me querer aplacar sua dor apenas para que um sorriso a tomasse outra vez.

Novamente, aquela sensação amarga de impotência me invadiu. Por vezes, eu me sentia como um garotinho assustado e insolente pensando que poderia lidar com um adulto malvado. Com certeza, a emoção que esta situação me passava era de humilhação e constrangimento. No entanto, quanto mais eu olhava e reparava nos detalhes, mais crente eu ficava de que eram as minhas suspeitas que estavam corretas. Havia alguém mais astuto por trás daquilo, eu não tinha dúvidas. Poderia não saber o que esta pessoa queria ou como era capaz de reunir tantas informações estando fora da Academia, mas uma coisa eu podia afirmar: se ele ou ela reunia esperanças de que me pegaria desprevenido, estava redondamente enganado. Eu lutaria até minhas últimas forças para que ninguém machucasse Lissa e, olhando com zelo para seu rosto sereno, eu ratifiquei essa promessa antes de sair dali.

Como o esperado, Kirova já estava em seu escritório, andando de um lado para o outro nervosamente. Alberta mantinha-se estática com alguns papéis em mãos, analisando-os calmamente. Nenhuma delas percebeu minha presença até eu bater com suavidade na porta.

— Belikov. – Surpreendeu-se Kirova. – Estávamos a sua espera. Precisamos que nos conte exatamente o que aconteceu ontem à noite. Não pudemos contatar Lissa esta manhã. A enfermeira Erica estava bastante firme sobre sua decisão de não importunarmos mais seu estado psicológico com este assunto, mas a inspetora nos contou que ela revelou o ocorrido a você.

— Sim. – Eu disse. – Basicamente, alguém entrou no quarto da princesa antes de ela voltar das festividades reais e... Bem, explodiu o coelho no chão, entre as duas camas. Lissa encontrou a cena e limpou tudo antes que sua colega de quarto, Natalie Dashkov, pudesse vê-la. Mas apenas a encontramos quando Rose ligou para o dormitório dos guardiões e me alertou sobre o ocorrido. A princesa estava no banheiro, coberta de sangue, com os restos do animal no lixo e o bilhete em mãos.

— Nenhum suspeito? – Inquiriu Kirova.

— Não. – Alberta tomou a frente. – Conferimos as câmeras de segurança esta manhã, mas não houve nenhuma movimentação suspeita na área. Isso nos ajuda de certa maneira, é claro. Assim, já temos como saber que não foi qualquer estudante o responsável pelo incidente, mas sim um Moroi. Alguém de dentro dos dormitórios.

— Alguém de dentro? – Kirova parecia chocada. Eu e Alberta trocamos olhares significativos. Pude perceber sua ansiedade crescendo conforme a diretora assimilava aquela nova informação. – Está me dizendo que um próprio Moroi fez isso a outro sem mais nem menos? Como é possível?

— De jeito nenhum. – Retrucou Alberta. – Lissa tem muitos admiradores na Escola, mas também há pessoas que não nutrem os mesmos sentimentos. Tentei fazer um levantamento de qualquer desavença que ela teve nas últimas semanas, para restringir as suspeitas, mas isso não ajudou muito. Algumas brigas sem importância com colegas, seu convívio isolado, nada me pareceu chamar muita atenção. Como bem sabemos, a pessoa pode ser especificamente de dentro de seu círculo.

— Mas então houve desentendimentos. – Kirova franziu o cenho, pensativa. – Lissa não passou tão desapercebida como pensamos. Bom, é claro que não. Se tudo isto está acontecendo é porque alguém acha que tem um motivo.

— Discussões adolescentes não justificam um ato tão terrível como este. – Alberta revidou, sua calma inabalável. – Eu não posso sair interrogando os alunos da Escola sem motivo. A situação ficaria fora de controle.

— Claro, você tem toda razão, Petrov. Eu... Simplesmente não sei mais o que pensar sobre isso. Tudo o que tentamos parece não nos levar a lugar algum.

Kirova respirou fundo, voltando a andar de um lado para o outro. Depois de algum tempo, usando a manga da roupa, começou a limpar a lente de seu óculos. Sua expressão era aflita.

— Mesmo que pareça impossível, nós não podemos fraquejar agora. – Murmurei, minha voz ressoando profundamente pela sala. – Precisamos nos ater aos fatos, só isso. Sabemos que é a mesma pessoa quem está matando os animais, que as ameaças são para a princesa. Ele quer alguma coisa que Lissa esconde e este objeto ou seja lá o que for pode ter relação com o que está sendo mostrado, como uma charada. Só precisamos descobrir o que é.

— Uma charada? Como uma pista macabra dos contos de Edgar Allan Poe? – Kirova brandiu, irônica. – Só pode ser brincadeira.

— Não é brincadeira, isso é muito sério. – Revidei, pasmo com seu tom desdenhoso. – Mais sério do que qualquer brincadeira adolescente. – Olhei para ela incisivamente. – Existe alguém querendo prejudicar Lissa e não podemos negar esse fato. Seus planos podem ser bem maiores do que sequer imaginamos.

— O que, agora não é mais um estudante que está fazendo tudo isso? Está sugerindo que se trata de alguém fora da Academia?

— Eu não estou sugerindo coisa alguma, apenas que temos de nos focar, não ficar desesperados e com medo do que pode acontecer. Claro que estou de mãos atadas, sem saber que providências tomar, mas nem por isso vou perder a cabeça.

Depois de minhas palavras, um longo silêncio se seguiu. Eu não gostava muito de bancar o crítico, mas Kirova parecia ter sérios problemas em admitir quando cometia um erro; ou uma injustiça. Gostaria de lembra-la do momento em que quase expulsou Rose da Escola, por uma espécie de revanche, sem nem ouvir o que ela tinha a dizer. Para começar, fora por minha causa que ela soube da ligação. Porém, mantive-me calado, deixando que ela assimilasse minha opinião como bem entendesse.

Alberta se pronunciou antes de qualquer um.

— Diretora, eu disse isso a você. Não podemos cortar nenhuma suspeita sem averiguar os fatos até a exaustão. É insensato. Dessa forma, apenas deixaríamos passar algo importante.

— Mas, certamente, vocês não... – Ela balançava a cabeça para os lados, piscando os olhos repetidas vezes. Parecia em estado de choque. – Você não está sugerindo que haja algum sequestrador ou... Ou um maníaco por aí? – Ela olhou para Alberta com pavor. – Dentro da Academia? Como alguém que está fora poderia chegar até aqui? E com que motivos? O que a princesa poderia oferecer?

— Eu não posso lhe dar todas essas respostas, Ellen. – Alberta falou, sua voz surpreendentemente suave. – Mas uma delas é bem fácil de adivinhar. Como alguém que está fora poderia chegar até aqui, você perguntou? É bem simples, basta enxergar o óbvio. Essa pessoa está usando alguém de dentro. Um aluno.

— Não. Não pode ser.

— Ellen, negar não irá nos ajudar nessa situação.

Kirova pareceu se empertigar com o tom duro da guardiã. Uma renovada expressão decidida se formou em sua face.

— Está certo. Negar é ridículo. Se houver um culpado, esta pessoa vai pagar. Eu farei questão disso.

Ao olhar de esguelha para Alberta, pude captar um leve sorriso desenhando seus lábios. Porém, tão logo como apareceu, ela voltou à expressão séria e compenetrada de sempre. Literalmente, uma muralha inabalável. Claro, se fosse eu o responsável por mudar um dos conceitos padrão de Ellen Kirova, também me permitiria alguns momentos de auto satisfação.

Não houve muito mais o que discutir depois daquilo. Meu dia precisou seguir sua rotina logo após a reunião. O fato de não termos quase nada de concreto a que nos agarrar era preocupante, mas eu resolvi seguir a dica de Alberta. Se ela ficara satisfeita com o pequeno passo que demos com Kirova, não seria eu o único a insistir no assunto. Além do mais, pensar sobre isso o tempo todo não me ajudaria em nada, principalmente quando havia um longo horário de trabalho me esperando.

Fiz uma porção de rondas pelo campus e me mantive fora do fervor dos estudantes durante boa parte da manhã, mas não tive a mesma sorte depois disso. Havia três aulas escaladas para o meu turno, praticamente seguidas, então, encaminhei-me até elas rapidamente. Durante algum tempo, nada extravasou a normalidade, apenas percebi uma leve onda de murmurinhos fora de hora, mas, como isso era algo normal entre os alunos, não dei muita atenção.

No entanto, conforme o tempo passava, era cada vez mais difícil ignorar as conversas. Os professores mal podiam conter seus alunos, que pareciam discutir a nova fofoca com bastante energia. Ao longo do dia, ouvi burburinhos ininteligíveis dos mais variados, mas nada como a conversa de duas Moroi que se sentavam ao fundo da sala, bem próximas de onde eu estava parado. Suas vozes pareciam ecoar, e não pude deixar de prestar atenção ao que diziam.

— Eu fiquei sabendo que ela foi até o fim com ele. – Uma delas explicava, com uma expressão excitada. Ela até tentou colocar a mão sobre a boca, mas eu vira pelo menos três ouvidos atentos à discussão. – Você sabe, isso não é nenhuma novidade nem nada, mas eu me surpreendi com o que ouvi falar depois disso. – Uma pausa. – Ela o deixou beber seu sangue. Durante o sexo.

— O quê? – A Moroi ao lado exclamou, chocada.

— Eu sei! – A outra respondeu com um risinho. – Fiquei espantada também, mas depois que pensei melhor percebi que era algo idiota. Todos sabiam que ela tinha um lance com aquele amigo do Andre. Quem sabe o que rolou durante o tempo fora da Academia? E como é que... 

— Srta. Walker, Srta. Evans! – A professora rugiu, fazendo-as interromperem a conversa de imediato. – Vocês desejam dividir o assunto com a turma? Parece bastante interessante, já que não param de falar sobre ele.

Para meu alívio, depois da repreensão que receberam, as estudantes não voltaram a destilar seu veneno. Só que isso não impediu os demais de passarem o assunto adiante. Durante o resto do meu tempo de guarda, os murmúrios persistiram. Eu sempre soube o quão maldosos os adolescentes poderiam ser caso desejassem, mas, até vê-los em ação com um boato realmente tenebroso, não tinha noção de que poderiam beirar à crueldade. A história era passada de boca em boca, risos e deboches poderiam ser vistos em cada uma daquelas faces.

Foi só depois da última aula que eu pude me livrar da confusão. Admito que eu adorava trabalhar em St. Vladimir, mas, com certeza, tumulto e algazarras não eram coisas com as quais eu gostava de lidar. Preferia muito mais as rondas monótonas – porém silenciosas e pacíficas – do que o agito das salas de aula. Por isso admirava tanto os instrutores que se aventuravam a lecionar.

Cheguei ao treino com Rose antes dela, como era de praxe. Arrumei tudo rapidamente, pensando no que estava previsto no cronograma de aulas, mas, assim que a vi entrando no ginásio, tudo foi varrido de minha mente com rapidez. Apesar de seu humor ácido, Rose não era alguém intragável. Pelo contrário, ela sempre lançava um enorme sorriso quando me via, fazendo piadas sobre mim ou tudo o mais que pudesse inventar. Porém, naquele momento, mal a reconheci.

Ela estava calada e distante, não olhou na minha direção nem me cumprimentou como de costume. Havia preocupação em seu olhar, além de um peso invisível que curvava seus ombros. Encarei-a por um tempo, perguntando-me o que poderia ter causado isso, mas resolvi não comentar. Fiquei com medo, apenas, de que Lissa pudesse estar em apuros, mas a ideia logo desapareceu. Eu conhecia Rose o suficiente para saber que ela me contaria se fosse algo relacionado à amiga, e não seria um interrogatório que a faria desabafar.

O seu desempenho, ao contrário do humor, começou com fulgor, melhorando a cada novo golpe que eu lhe ensinava. Eu jamais a vira socar e chutar com tamanha brusquidão. Rose estava imparável, aparentemente transferindo todo o seu ressentimento naquele treino. Fingi que não havia percebido nada de anormal, tratando-a como sempre fizera até então, mas era difícil manter meus sentimentos afastados quando sua raiva era tão evidente.

Mais tarde, quando já estava no refeitório matutando sobre o ocorrido, surpreendi-me quando avistei a figura de Lissa se aproximando de mim. Emil a acompanhava, provavelmente para que ela pudesse entrar sem mais problemas, mas logo nos deixou a sós. Ela parecia nervosa, mexendo as mãos uma na outra sem parar enquanto seu rosto demonstrava grande aflição.

— Algum problema, princesa? – Perguntei com preocupação.

— Eu, bem... – Ela se sentou a minha frente, encarando-me de perto com aqueles intensos olhos verdes, tão característicos dos Dragomir. Era a primeira vez que eu observava seu rosto com devida atenção, assimilando cada traço e trejeito. Vê-la recuperada me aliviava, principalmente quando pensava no seu estado anterior, mas não pude deixar de lamentar quando percebi que o que nos aproximava era sempre alguma coisa ruim. – Eu vim conversar sobre Rose.

Aquilo me pegou desprevenido. Eu não sei o que esperava daquela aparição repentina, mas, com certeza, não era falar sobre Rose. Automaticamente, fiquei alerta, à espera do motivo pelo qual ela ficara tão distante no treino.

— O que há de errado com ela?

— Eu vi que você esteve de vigia em uma das minhas aulas. Com certeza você deve ter visto meus colegas tagarelando sem parar sobre... Hum... Foi quando a professora chamou a atenção de Hanna e Ashley, lembra-se?

— Sim. Eu me lembro.

Sem compreender como, eu já sabia o que Lissa diria a seguir.

— Elas falavam sobre Rose.

De repente, momentos esparsos do meu dia começaram a se ligar em minha mente. Todas as fofocas que eu entreouvira, os burburinhos irritantes que circularam pelas salas de aula e me deixaram quase maluco, a conversa entre as duas Moroi... Elas falavam sobre Rose. Mas é claro. Quem mais supostamente teria deixado que alguém a mordesse durante o sexo? Quem passara dois anos longe da Academia, fazendo sabe-se lá o quê? Quem, dentre tantos alunos, tinha a fama de ser fácil?

Meu estômago se embrulhou.

— Você tem alguma ideia de quem possa estar espalhando esse boato? – Por alguma razão, eu não conseguia tirar a imagem de Jesse da minha mente.

Lissa franziu o cenho, indecisa.

— Tenho um palpite, mas não foi para isso que vim até aqui. – Ela me encarou com firmeza, seu olhar suplicante. – Guardião Belikov, você é um dos únicos que convive com Rose e realmente sabe do que ela é capaz. Eu sei o quanto ela o respeita e admira seu trabalho. Sei também do quanto você abriu mão quando decidiu interceptar por ela, e lhe sou muito grata por isso. – Sorriu. – Mas agora ela precisa de um tipo diferente de ajuda.

Franzi as sobrancelhas, atento em suas palavras.

“A diretora não me liberou nem um minuto para falar com Rose.” Continuou. “E eu sei que ela precisa de mim. Ela esteve estranha o dia inteiro, não falou nada, não reclamou, não brigou com ninguém. Diabos, Rose nem sequer socou Jesse quando teve oportunidade!” Ela colocou as mãos sobre as têmporas, frustrada. “O laço pode funcionar apenas de um lado, mas eu consigo sentir quando algo grande está acontecendo. E isso é muito sério.”

Aquelas palavras foram como um soco no meio do meu estômago. De fato, a situação começava a ficar preocupante quando Rose não demonstrava nenhuma reação diante a um boato como aquele. Fora mais chocante do que o esperado descobrir por Lissa que ela estava sendo conivente com tudo aquilo, tentando controlar suas emoções em um momento em que mais estariam a flor da pele.

— Será que não tem um jeito de eu ir até ela? – Lissa perguntou, interrompendo meus pensamentos. – De falar com ela? Você poderia me levar até lá?

Novamente, encarei seus olhos. Havia uma fixação impressionante neles, em todo o seu ser. Pude captar algo que dificilmente se via nos Moroi, principalmente os da realeza: obstinação, força, coragem. Lissa queria ser o suporte de Rose daquela vez, como uma via de mão dupla. E não seria eu a impedir isso.

Olhei para os lados.

— Hum, não agora. Seria muito arriscado leva-la até o dormitório com uma porção de guardiões nos observando. – Lissa pareceu se dar conta apenas naquele momento de que havia pelo menos dez pares de olhos nos encarando. – Mas se você me encontrar perto do alojamento daqui a uns cinco minutos, eu te levo até Rose.

— Sério? – Ela abriu um sorriso. – Obrigada, guardião Belikov.

— Por favor, sem formalidades, princesa. – Sugeri. – Você não precisa usar meu nome de guardião. Posso ser apenas Dimitri.

Ela ergueu uma das sobrancelhas.

— Oh, mesmo? Do modo que você faz?

Empertiguei.

— Bom, mas isso é diferente, quer dizer... 

— Façamos o seguinte. – Ela concluiu, já se levantando. – Assim que você esquecer essa história de princesa, eu posso pensar em fazer o mesmo com você.

Balancei a cabeça, resignado.

— Tudo bem por mim.

— Certo. Até daqui a cinco minutos!

Observei-a sair em disparada com um sorriso beirando meus lábios, mas ele foi sumindo progressivamente a medida que eu assimilava a seriedade de nossa conversa. Lissa, que não tinha nenhuma condição de falar com Rose ou ajuda-la, fez praticamente o impossível para conseguir isso apenas porque sentiu a tristeza da amiga. Ela não se contentou com a distância, não se absteve de tentar conversar comigo quando Kirova a proibiu de seguir adiante. Não havia dúvidas de que aquele era um assunto de extrema importância para ela.

Mas e quanto a mim? Eu também sentira a seriedade daqueles boatos, mesmo sem saber sobre quem eles falavam, vira o quanto Rose estava triste e afetada em nosso treino. Naquele instante, senti-me um estúpido. Eu poderia ter feito a ponte se tivesse prestado mais atenção, mas minha mente estivera tão distante que nem me preocupei. Cheguei a pensar que fosse um problema com Lissa! Que estupidez. Se assim o fosse, eu teria sido o primeiro a saber. Rose jamais me negaria qualquer informação sobre essas questões, mas isso não queria dizer que ela faria o mesmo em relação aos seus próprios problemas.

Sentindo-me duplamente estúpido, praguejei mentalmente. Que tipo de instrutor eu era, que não percebia algo desta magnitude diante do meu nariz? Seriam meus sentimentos tão verdadeiros quanto eu pensara?

Pelo visto, não.

Quando dei por mim, eu já estava caminhando na direção dos jardins. Fui até o dormitório pegar o meu molho de chaves reserva e, em seguida, encaminhei-me ao encontro de Lissa. Ela estava parada perto da entrada quando cheguei, com os braços cruzados e a expressão distante e preocupada. Aparentemente ouvindo minha aproximação, ela se virou de imediato para me encarar, relaxando as feições duras que carregava. Percebi que ela estava prestes a dizer algo, mas rapidamente balancei a cabeça, apontando para a porta principal do dormitório Dhampir.

— Não vamos entrar por aqui. – Eu disse. – Alguém pode nos ver.

— Ah. Tudo bem.

Esperei que ela me seguisse até a porta lateral, uma que não era usada com frequência. Apenas poucos tinham a chave, incluindo o pessoal da faxina e os guardiões de vigia. Mesmo assim, fiquei preocupado com a probabilidade de alguém encontrar Lissa perambulando por onde não deveria. Olhei-a com atenção, baixando meu tom de voz para um sussurro.

— Você fica aqui até eu ter certeza de que está tudo limpo. Vou chamar Rose e dar a vocês alguns minutos a sós. Será suficiente para conversar?

Ela me olhou com desdém.

— Em comparação ao zero de minutos que eu teria se dependesse da diretora Kirova? Isso é mais do que suficiente. Obrigada.

Aquela declaração quase me fez sorrir.

— Ok, então.

Deixei-a para subir as escadas do dormitório, praticamente correndo pelos corredores até alcançar uma das últimas portas habitadas. Por um momento, a ausência de estudantes ali me pegou desprevenido. Eu nunca pensara muito sobre o assunto, mas percebia o quanto as garotas Dhampir faziam falta naquela Escola. Ou mesmo na vida real. Só que não havia tempo para lástimas. Ao encarar a porta do quarto de Rose, tudo sobre o que eu viera pensando se extinguiu pouco a pouco.

Bati à porta algumas vezes. Não demorou nem dois minutos para que Rose a abrisse, mas pareceu uma eternidade. Eu estava confuso e muito ansioso para descobrir o que se sucederia a partir daquele encontro.  Uma parte minha ainda estava bastante atônita com todas as informações que recebera, duvidando de que Lissa pudesse ter razão. A outra, já não tinha mais tanta convicção de que encontraria algo bom.

E não em vão.

O que eu vi assim que me deparei com Rose pôde ser comparado a qualquer coisa, menos um evento positivo. Na verdade, foi bem pior do que eu imaginara. Seu semblante abatido estava bastante diferente ao daquela manhã, de alguma forma mais assimétrico e côncavo. Eu nunca vira nada parecido. Havia marcas arroxeadas e fundas sob seus olhos, um tom avermelhado espalhado pelo nariz e bochechas, além das escleras lacrimejantes e de aspecto sofrido. Era evidente que estivera chorando.

Aquilo me pegou em cheio. Desviei o olhar no mesmo instante, sem coragem de encará-la novamente. Parecia-me errado observá-la por mais tempo que o necessário, como se lhe invadisse um espaço particular. Uma coisa rara para mim era pegar um guardião com a guarda baixa, submerso em seus permissivos e raros momentos de mácula.

— Você está bem? – Perguntei hesitante.

— Não importa se eu estou bem, lembra? – Ela fixou seus olhos nos meus com uma inesperada confiança, pegando-me desprevenido. Qualquer traço de vulnerabilidade seu estava esvaído por completo. – Lissa está bem? Isso vai ser duro para ela.

Pisquei os olhos diversas vezes antes de assimilar o que ela havia dito. Já não deveria ser uma surpresa para mim os rompantes altruístas de Rose para com Lissa, mas aquela atitude conseguiu driblar cada expectativa que eu reunira a seu respeito. Como ela conseguia isso com tanta frequência, no entanto, era uma incógnita. Tão admirável que não me restou outra alternativa a não ser a de simplesmente assentir, guiando-a com cautela pelos corredores do dormitório até a porta que a levaria até Lissa.

— Cinco minutos. – Sussurrei.

Rose me lançou um olhar questionador, mas não parou para ouvir a resposta. Foi bom porque, assim, dava-me um pouco mais de tempo para entender tudo o que ocorrera até então. Escorei-me na parede e respirei fundo uma porção de vezes a fim de me acalmar, porém a sensação ruim que preenchia meu peito não ia embora.

Durante a minha vida inteira eu soube que deveria colocar certas pessoas a frente de qualquer escolha que eu viesse a tomar. Meus sentimentos, meus sonhos, meus anseios e expectativas… Minha vida. Nada disso importava ou seria colocado acima do meu dever. Entretanto, havia coisas pelas quais eu impunha certos limites. Esta situação com Rose era um deles. Eu vinha nutrindo uma compaixão por ela, um padecimento pelo que ela estava passando, justificando a quebra de regras para trazer Lissa e descobrir como ela se sentia depois de tantos acontecimentos escabrosos.

Mas depois de vê-la se preocupar mais com sua protegida do que consigo? Ignorar tamanha dor pelo medo de que aquilo pudesse afetá-la de forma negativa? Eu não sabia o que pensar. Para Rose, tudo estava resolvido. Ela tivera seu momento de libertação e só. Em seguida, bola para frente e sua vida seguiria. Isso era um sinal claro de que o assunto deveria estar encerrado para mim também.

Só que não estava.

O problema não era meu, mas eu sentia como se fosse. Assistir a cada comentário maldoso já fora ruim sem saber a quem eram dirigidos; e pior ainda quando finalmente descobri qual a reputação que afetavam. Eu tinha certeza de que eram mentiras – e das mais escabrosas –, porém, só o fato de imaginar que se espalhavam cada vez mais durante aquele momento já era suficiente para que uma sensação fervente de ira me tomasse sem medidas. Pensar no empenho que Rose vinha atribuindo aos nossos treinos também não ajudava. Tanto trabalho e esforço jogados ao vento por causa de uma difamação mal calculada. Era lastimável o quanto a inconsequência juvenil afetava o seu próprio futuro. E eles mal se davam conta disso.

Eu acreditava que o susto que dera no garoto Zeklos fora o bastante para calar qualquer espécie de orgulho masculino seu, mas me enganei. Aquilo não bastara. E ele me pedia por mais. Mas eu não podia. Uma coisa foi minha reação ao encontrá-los naquela situação. Eu ficara tão decepcionado que não medi palavras ou gestos para expressar cada pensamento que tivera sobre o assunto. Outra bem diferente era a ciência de que ele desrespeitara minhas ordens sem nem hesitar. Eu estivera muito longe quando as coisas aconteceram. E o que poderia fazer sobre isso? Não muito. Nenhum ato impulsivo meu justificaria as agressões que eu planejava praticar no lado mais sombrio de minha mente.

Meu coração bombeava uma corrente de sangue quente que pulsava e agitava meu corpo inteiro. Como guardião, eu tinha o dever de me manter centrado e avaliar cada passo a seguir. Como instrutor, seria uma enorme hipocrisia ensinar auto-controle se eu mesmo não o seguisse. Lembrei-me então de uma frase que Galina – minha mentora na Academia da Sibéria – sempre me dizia nos momentos de maior provação: “use a impulsividade a seu favor. Não deixe que ela comande seus desejos, mas sim comande os dela para que você possa agir cada vez melhor”.

Eu custei a compreender na época. Como controlar uma força que impulsionava cada molécula do meu ser a agir, sem tempo sequer de pensar ou refletir sobre as consequências? Fora uma tarefa quase impossível na época. E ainda me parecia difícil agora. Por mais que os anos de treinamento me fizessem um homem centrado e controlado, havia momentos em que eu voltava à adolescência, querendo defender todos os que eu amava com uma fúria cega e quase doentia.

Resolvi, então, que o melhor a fazer seria desviar minha atenção desses pensamentos. Cerca de onze minutos haviam se passado desde que eu as deixara conversar e, a esta altura, Rose já deveria estar bem mais calma. Desci as escadas de dois em dois degraus até encontrá-las conversando perto da porta.

— Você precisa entrar, Rose, antes que alguém encontre você.

Lissa assentiu para mim e rapidamente voltou-se para fora, resignada. O olhar que Rose dirigiu a ela, no entanto, era de puro pavor.

— Vou tomar conta de tudo desta vez, Rose. – Ela disse por cima do ombro, enquanto me acompanhava. Encarei-a com o cenho franzido, sem compreender. – De tudo.

Não me atrevi a perguntar sobre o que aquele “tudo” significava, apenas guiei a princesa Dragomir de volta ao seu dormitório, onde ela me agradeceu pela ajuda e, com um leve aceno de cabeça, afastou-se. Observei-a atentamente até que entrasse, perdido em meus pensamentos e com uma estranha sensação de que aquele seria apenas o começo de uma tremenda reviravolta em nossas vidas.


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Notas finais do capítulo

Talvez vocês tenham em mente ideias diferentes de como o Dimitri veio a saber sobre os boatos. Eu respeito cada uma delas, acreditem, mas não consigo deixar de pensar que a Lissa foi a única e exclusiva responsável por isso. Adoro ela, mas admito que o seu papel nos livros não é dos melhores. A Lissa simplesmente ignora todos os momentos baixo-astral da Rose, não consegue perceber nem a tristeza dela, nem o sofrimento pelo Dimitri, muito menos que eles vieram a se envolver mais para a frente. Então, aproveitando o gancho desse momento único em que ela faz algo de útil para ajudá-la, também transcorri o capítulo vinte desta maneira. Espero que entendam isso e concordem, pois, para mim, foi como aconteceu.

Meninas, se vocês gostaram ou odiaram o capítulo, me digam. Se desejam torturar a autora até a morte pela demora, por favor, também não deixem de me manter informada. Não se acanhem em me xingar, mas também não sejam tão duras comigo. Lembrem-se de que estou sem internet há algumas semanas, tornando, desta maneira, as postagens um pouco mais complicadas.

Vejo-as nos reviews!



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