Milene e eu passamos um bom tempo calados. Sei que ela me ofendeu, mas eu não ligo, não é hora para guardar rancor, e eu não sou disso. Levanto e vou em direção à mesa cheia de comida, pego um dos pratos decorados, sirvo um pedaço de pernil com molho e levo até ela.

– Pra você. Coma. - estendo o prato em sua direção.

– Por quê? - pergunta perplexa.

– Eu sei que você também está faminta. Não quero brigar com você, Milene. Veja isto como uma trégua. - sorrio sem jeito - Nós devíamos estar apoiando um ao outro, e não discutindo como crianças, afinal. Somos parceiros de Distrito.

– Obrigada. - ela agarra o prato e devora o pernil em poucos minutos. Estava faminta, realmente.

Nós dois ficamos sentados em um dos sofás do vagão descascando algumas das frutas e conversando sobre como o pessoal da Capital é estranho e como suas vozes são engraçadas. Milene era uma garota tímida, mesmo aparentando ser durona. Ela morava junto com seu pai e sua avó na parte alta do Distrito 1. Perguntei se sabia algo sobre as construções que estavam fazendo no distrito, mas ela apenas disse que ninguém avisou nada antes da construção, somente apareceram e começaram a subir paredes. Pergunto-me ainda mais o que realmente eles pretendem fazer ali, mas o pensamento me foge quando vejo Milene na janela do trem atenta à paisagem. O trem agora passava por uma ponte suspensa sobre um mar de cor acinzentada. Nunca vi tanta água junta em um local só, e acho que Milene também não, então ficamos observando o mar como uma criança observa seu pai trabalhando nas minas do Distrito 1, como eu observava minha mãe lapidando as joias ou então como o pessoal da capital está nos observando neste exato momento.

Chegamos à estação e ela está lotada. Pessoas de cabelos dos mais diferentes tamanhos, cores e cortes. Alguns com tons de pele que eu não sabia que existiam. Eles nos observam pela janela do trem como se fossemos algum tipo de animal estranho que jamais fora visto na vida. Realmente naquele momento me senti como um.

Lea chega ao nosso vagão no momento em que o trem abre as portas e nos acompanha até sairmos da estação. Passamos por uma multidão de pessoas eufóricas e chegamos a um enorme prédio luxuoso.

– Ah, enfim chegamos! - diz Lea num tom de entusiasmo.

– É aqui que iremos ficar? - pergunta Milene

– Sim querida, é aqui que ficarão até amanhã cedo. - então Lea bagunça a franja de Milene com as mãos, o que a deixa um tanto irritada, mas me faz rir.

Entramos no hotel que ser aparentava ser maior por dentro. Luxuosas poltronas de tecido marrom, tapetes enormes bordados a mão e a madeira mais brilhante que se pode encontrar. Lea nos leva ao elevador do hotel e subimos até o primeiro andar. Cada andar no hotel pertence à dupla de tributos de cada distrito, e já que somos do Distrito 1, ficamos no primeiro andar.

– Podemos mesmo ficar por aqui? - pergunto intrigado.

– Claro que sim. Ambos têm um quarto aonde encontrarão roupas limpas, então se aprecem e tomem um banho, pois teremos um jantar hoje à noite.

Milene sobe as escadas e eu sigo logo atrás. No meu quarto há uma enorme cama com um edredom amarelo e almofadas de cetim. Ao lado da cama uma cômoda aonde uma variedade de roupas se encontram. Visto uma camiseta azul e uma bermuda preta depois do banho e desço para o tal jantar. Chegando à sala de jantar vejo um enorme lustre com esmeraldas cravadas e à mesa encontro Lea e Milene sentadas, mas também existe um homem junto a elas.

– Com licença. - digo ao sentar.

– Esse é o nosso garoto, Lea? - diz o homem

– Sim, é ele mesmo. Formidável, não acha? Conseguimos dois tributos de ótima idade e aparência. Acho que você poderá fazer ótimas coisas com os dois - diz confiante.

Ele aparentava ser um homem jovem. Tinha os cabelos negros como os de Lea, e a pele branca pálida com uma barbicha azulada bem chamativa. Vestia-se com um sobretudo roxo, calças escuras de um tecido grosso e brilhante e uma botina de velcro.

– Espera um pouco. O que pretendem fazer conosco? - pergunta Milene exaltada.

– Calma pequena, nós não iremos fazer nada de mal com vocês, pelo contrário. Irei ajudá-los. - diz o homem sorrindo.

– De que maneira? - pergunto.

– Bom... Vocês terão que aguardar até amanhã cedo para saber. - ele sorri enquanto admira o nada com uma expressão suspeita e isso me traz desconforto.

Naquele jantar não falamos sobre os jogos ou sobre algo relacionado a eles, apenas falamos sobre nós, sobre como a gente iria trabalhar juntos dali para frente. Nessa conversa descobri que o homem de barbicha azul é chamado de Lee, e que ele é irmão de Lea, o que não me surpreende muito, pois já tinha os achado parecido. A conversa durou até o jantar findar, então subimos para nossos quartos.

Não tive uma noite de sono das melhores. Passei o tempo todo entre cochilos e despertares até hoje de manhã e isso me deixa de mau humor. Desço as escadas e encontro Milene tomando seu café da manhã no sofá. Nenhum sinal de Lea ou de Lee.

– Viu algum deles hoje? – pergunto.

Milene faz um gesto com a cabeça apontando para as escadas, então vejo Lea descendo as escadas.

– Precisamos ir imediatamente, hoje é o grande dia! – Lea está com um vestido cor de laranja e um pequeno chapéu na lateral da cabeça. Seus cílios agora estão verdes como os seus lábios estavam na manhã da colheita, e um cachecol de um tecido leve estão envolto em seu pescoço, caindo sobre seu ombro direito.

– Aonde iremos? – diz Milene.

– Temos que encontrar Lee. Hoje teremos o desfile com todos os tributos! – ela sorri e junta suas mãos ao rosto.

Saímos tão rápido do hotel que nem tive tempo de tomar café da manhã. Fomos o prédio da presidência, aonde iria acontecer o desfile. Chegando lá, algumas pessoas da Capital levaram a mim e à Milene para salas separadas, aonde nos deram banho, perfumaram e tiraram alguns pelos aqui e ali. Uma das piores sensações até o momento. Pior até do que ficar pelado diante de pessoas que eu jamais verei novamente e ainda deixar me darem banho. Depois de ser limpo e perfumado por pessoas estranhas, visto meu roupão e vou para à sala ao lado e encontro Lee mexendo em um manequim.

– Se sente mais leve? – pergunta ele sem ao menos olhar para mim.

– Me sinto violado. – respondo. Ele ri.

– Só preciso fazer mais alguns ajustes... Pronto. Consegui. – ele dá um sorriso enorme enquanto admira a roupa se afastando do manequim.

A roupa é realmente muito bonita. Um macacão preto e um sapato da mesma cor com uma jaqueta de cor esmeralda, cheia de pequenos furos e com gola alta. Realmente, ele fez um ótimo trabalho.

– Wow! Então era isso que você estava planejando? – pergunto.

– Sim, minha primeira peça para o desfile e ficou magnífica. Mas ainda tenho que dar o toque final – diz ele segurando um pequeno recipiente de vidro – Então ande logo, tire este roupão e se vista.

– Realmente ficar pelado por aqui não é um problema. – digo enquanto visto a peça.

– Ande logo. Ainda tenho que vestir a lindinha – diz ele se referindo a Milene.

Depois de vestir a peça por completo me senti realmente bonito. Ela se encaixava perfeitamente e era super confortável, nunca teria algo do tipo no Distrito 1. Depois de uns ajustes, Lee se aproxima de mim com o pequeno recipiente que contem um líquido gelatinoso de cor esverdeada. Ele cobre toda a minha jaqueta com o líquido e então percebo que os furos foram todos preenchidos pela gosma verde.

– Agora, a melhor parte! – Lee despeja sobre a jaqueta um pó que estava dentro de seu bolso. O líquido que era gosmento começa a endurecer e cristalizar. Os grãos do pó vão crescendo junto à gosma e ficando ainda mais duros e cristalizados. Em instantes fico coberto por uma casca dura de cor esmeralda que encobre desde a parte abaixo do meu tórax até a gola da minha jaqueta. É uma sensação magnífica. Tornei-me algo precioso.