É como se você fosse o meu espelho, meu espelho olhando de volta para mim.

P. O. V Demi

As semanas seguintes foram divertidas, mesmo tendo que dar aulas. Nico e eu éramos péssimos professores, a ponto de acertarmos a bunda de um menininho durante uma demonstração, mas as criancinhas pareciam gostar de nós. Uma filha de Dioniso, com no máximo 11 anos, perguntou se eu e o filho de Hades namorávamos. Respondemos que não, ambos vermelhos. O Nico pareceu até um pouco triste com a negação, o que me levou a longos devaneios durante a madrugada, situações imaginadas sobre o que teria acontecido se eu esquecesse o orgulho e a vingança e aceitasse o pedido de namoro dele. Se haveria flores e carinho ou se teria acabado logo. Se ele seria cortês ou rude. Se me trairia ou seria fiel. Uma porção de “se” depois de muito imaginar, adormeço. Ao acordar, me obrigo a parar de imaginar tanto. Não podemos mudar o passado, no fim das contas. Apenas arcar com as consequências.

Acho que eu estou passando tempo demais com Annabeth.

Fora as aulas, os recados anônimos continuam chegando. Em geral trazem uma música, mas sempre tem bilhetes sensual e irritantemente misteriosos grampeados no rádio. Por vezes me deixando furiosa com tanto anonimato, com arrepios de desejo, mas sempre instigada a descobrir quem se encontrava por baixo daquela maldita barreira de papel.

Eu já havia tentado pegá-lo no flagra, e os resultados eram desastrosos. Ouvira a madeira gemer enquanto saia e corri como louca pela escada até chegar à varandinha, gritando “TE PEGUEI!”. No final, eram Travis e Katie se agarrando. Foi bem constrangedor para nós três.

Em outro caso, eu fiquei esperando numa moita de madrugada, já que o AMS normalmente vem nesse horário. Eu sei disso por que quando eu vejo antes de dormir, não tem nada lá, mas de manhã sempre tem. O resultado? Peguei no sono escondida. Acordei com dores por todo o corpo, picadas dos mais diversos animais, arranhões, gripada e sem respostas.

Várias tentativas fracassadas depois, desisti. Cedo ou tarde ele se revelaria. Não poderíamos passar a vida nesse esconde-esconde ridículo (embora seja emocionantemente romântico, de certo modo). E quanto a mim, só restava esperar.

Estava saindo do chalé, me preparando psicologicamente para mais uma aula. Ontem fora terrível. Um horário tinha sido cancelado pela chuva, então tivemos que dar aula para duas turmas ao mesmo tempo. Meus músculos estavam doloridos, meus ouvidos apitaram por horas, tive uma puta dor de cabeça e minha voz estava mais grave que o normal, graças à rouquidão.

Com a roupa de instrutora, a camisa do acampamento, broche e shorts, eu parecia quase como sempre, indo passear nos campos, plantando e sendo prestativa. Reprimo-me ao sentir tanta nostalgia. Porra Demi, você não tem 60 anos pra pensar em Como antigamente.

Após algum tempo de caminhada, chego ao local das aulas. Nico já está lá, e parece no mesmo estado de cansaço que eu, só que não espirrava. Estou indo tranquilamente até lá, até ouvir meu nome na conversa de Nico com uma menina de uns dez anos. Curiosa, me escondo atrás de umas rochas, que não me impedem de ouvir a conversa e ver suas expressões:

–... você a ama, não é? - A menininha questiona com um sorriso correndo o rosto. Nico olha para baixo, um pouco envergonhado. Esforço-me para prestar atenção na conversa e tentar completar a parte que perdi.

–Amar é uma coisa complicada, Lili, mas eu sou completamente louco por ela. –Ele responde. A menina ri e o abraça.

–Vocês iam ficar fofos! Tipo um príncipe e uma princesa! –ela exclama. Mal consigo conter o riso, imaginando Nico vestido de príncipe, com a cara amarrada, e uma anônima radiante vestida de princesa, acenando. Cinco segundos depois, quero esganar a garota imaginária. O ciúme correndo minhas veias apenas por imaginá-lo com outra garota é de um nível assustador.

–Você acha que tem alguma chance de... Nós? –Nico pergunta meio esperançoso, mas ao mesmo tempo preparado para decepção. Ela deu um sorriso enorme e sussurrou no seu ouvido, alto o suficiente para eu ouvir.

–Eu acho que ela te ama. –Nico sorri como um bobo e suspira de alívio. Isso é natural, 90% das garotas desse acampamento tem um abismo pelo Di Angelo, fato que repudio completamente, principalmente por fazer parte da maioria. Respiro fundo e decido sair de trás da pedra, discretamente se dirigindo à trilha esburacada e familiar.

–Boa tarde crianças. – Digo, dando o melhor sorriso que consigo com o ódio ainda fluindo no corpo. Digo a mim mesma que é ridículo me sentir assim, é apenas uma situação imaginária, e uma consequência de se meter onde não deve.

–Oi pra você também, Demi. – Nico fala, com a voz tão rouca como a minha (embora nele fique sexy, o que não é meu caso). A cena da minha mente volta com tudo ao vê-lo, mas disfarço como posso.

–Você se enquadra na categoria “crianças”, Di Angelo. – respondo. Nico mostra a língua, o que me faz se aproximar dele, prender sua cabeça no braço e esfregar o punho no seu cabelo, um gesto nostálgico de quando éramos irmãos, antes de tanta confusão. – Viu? Dar a língua, que infantil, caçulinha.

–Eu ainda sou mais velho que você. – ele contrapõe quando se livra. Enquanto ajeita o cabelo, nota as crianças rindo, e eu fazendo companhia a elas. – Que todos vocês, pirralhos.

–Nossa, foi mal vovô Di Angelo. – um filho de Hermes, Finn eu acho, diz levantando as mãos em rendição. Pega um galho da terra e estende em sua direção. – Aqui sua bengala.

–Seus pestinhas! – Nico fica corcunda, fazendo voz de velho. – Eu tenho 87 anos!

–Ahn? - alguns semideuses novatos perguntam.

–É uma história complicada. – Explico o livrando da situação. Puxo seu corpo de volta à posição correta pelos ombros, e bato em suas costas. – E você tem 86 anos, Nicolito.

–87 daqui a pouco. E não me chame de Nicolito.

–Continua sendo 86 Nicolito. – Faço questão de ressaltar o Nicolito, o que faz o mesmo revirar os olhos. – Vamos começar a aula. Estão prontas, crianças?

–ESTAMOS CAPITÃ! – Todas respondem em coro, o que me faz rir. Todos nós amamos Bob Esponja, e a culpa é minha e de Nico. No segundo dia não havíamos planejado nada, então ficamos assistindo a fita de Travis. Roubar o filho do Deus dos Ladrões, só pros fortes.

–Eu não ouvi direito! – Nico complementa, se juntando à brincadeira.

–ESTAMOS CAPITÃO! – Os pirralhos contrapõem, e meus ouvidos doem. Filhos da puta.

–ENTÃO PEGUEM SUAS ESPADAS PARA A AULA, OU PREFEREM SER COMIDOS VIVOS? – Nico grita, fazendo meus ouvidos doerem de novo. Por isso que é o filho do capeta.

As crianças resmungam em insatisfação.

–Você, Nico di Angelo, é oficialmente o maior estraga prazeres do acampamento. – Digo enquanto as crianças pegam as espadas almofadadas e vestem as armaduras.

–Esqueceu-se de “mais gato e gostoso do mundo inteiro”, Flora. – Ele complementa, me fazendo revirar os olhos e o empurrar de leve.

–Vamos ver se continua tão convencido quando espetar sua bunda. E não me chame de Flora, Nicolito.

–Não me chame de Nicolito, Flora.

–E eu repito: vou espetar a sua bunda. E depois chutar. –respondo, transformando a flor em espada e pendurando-a nos ombros.

–Chata. – Ele dá a língua de novo, o que acaba com o clima de pseudodiscussão de irmãos.

–Vamos logo dar essa merda de aula. – A conversa é encerrada, pois as crianças chegam.

...

Algumas horas depois, eu e Nico estávamos no seu chalé, tremendo de cansaço. Não, não estávamos transando até o sol raiar, apenas nos jogamos nas camas de lá, pois era o chalé mais próximo.

O que acontecera? ALGUM FILHO DE ARES DESGRAÇADO NA TERCEIRA AULA SURRUPIOU UMA ESPADA DE VERDADE E COMEÇOU A ENFRENTAR AS CRIANÇAS. Até percebermos o que o pirralho encrenqueiro estava fazendo, várias dos alunos estavam feridos. Não teria sido problema desarmá-lo, mas era rápido, energético e bom para a idade. Infelizmente, ele adorava acertar as canelas e impossibilitar suas, por falta de palavra melhor, vítimas de andar (crianças são muito frescas). Resumindo, além dos cortes da espada do moleque e toda a corrida atrás dele, tivemos que carregar todas as 20 crianças até a Casa Grande. Resumindo, estávamos mais doloridos que o normal, vermelhos e arfando.

–Meus... Deuses... - Nico fala após quinze minutos, a voz entrecortada. –Parece que todo dia fica pior.

Confirmo com a cabeça, sentindo meus músculos latejando. Perco a conta de quanto tempo ficamos ali, só observo o sol se por numa vista agradável. Eu adoro essa vista. Todos amam o nascer do sol, mas eu gostava de como o fim dele trazia a noite, silenciosa e sutil. E o fato de que só então aparecem as estrelas, tão distantes, mas um milhão de vezes mais brilhantes que o sol. Basta ter coragem de segui-las.

Já ouvi comentários de que mudei tudo em mim só pra conquistar o Nico. Mas depois de um tempo pensando, no fundo eu era assim, ou pelo menos uma parte de mim sempre foi. Só tive que mostrá-la ao mundo. E acho que eu gosto dela.

Desperto do meu devaneio e olho para o lado, fitando um Di Angelo terminantemente adormecido. Rio, abafando a gargalhado no travesseiro. Tão típico!

Levanto e, num impulso nostálgico, sento em sua cama e coloco a cabeça de Nico no meu colo. Um fio de baba escorre, caindo no meu short, mas não ligo. Devagar e com os dedos, penteio seu cabelo embaraçado com os dedos, acariciando seu couro cabeludo.

E não há outro lugar onde eu preferiria estar. Ou outra coisa que eu preferiria fazer. Porque ele sabe o que eu sinto, e eu sei o que ele sente. Na maior parte das vocês.

Nesse momento, não somos apenas pessoas. Somos janelas e, principalmente, espelhos um do outro.