Shalom - As Memórias de John Sigerson escrita por BadWolf


Capítulo 1
Capítulo 1: Sigerson, o jogador de pôquer


Notas iniciais do capítulo

Bem, aqui vai minha primeira fic. Espero que gostem.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/392852/chapter/1

Itália. 12 de Novembro de 1892.


Havia uma cantoria no Imponent, quase insuportável para qualquer pessoa um pouco sofisticada que fosse. Mesmo o balançar do navio não impedia aquele grupo de italianos de fazer sua festa. Mulheres e crianças participavam da roda, enquanto os homens se revezavam entre os instrumentos e a dança propriamente.



De um lado, havia um homem debruçado sobre o barco, de cotovelos apoiados, que parecia alheio àquela bagunça. Não resmungava, mas mantinha sempre seus olhos cinzentos sob o horizonte, como se estivesse perdido em alguma lembrança além do Continente. Carregava na boca um cachimbo ordinário, o chapéu também um pouco rude. O cabelo levemente despenteado e a barba por fazer completavam a aparência simples do sujeito. Nas costas, estava o inseparável violino, com que fazia o dinheiro necessário para a sua subsistência.


–Mr. Sigerson!

Ele virou-se. Era Esther, irmã de um de companheiro “vizinho” de quarto no navio.

–Sim? – disse, com um sotaque norueguês.

–David está lhe chamando para jogar pôquer com uns amigos dele.

Sigerson sorriu. Desde que David, irmão de Esther, perdeu mais do que devia em uma rodada de pôquer consigo, ele agora arranjava adversários por todo o navio. Queria uma revanche. Mal ele sabia que Sigerson ainda iria dar um jeito de devolver o dinheiro. Afinal, não precisava dele. Não tanto quanto os irmãos Katz, que estavam deixando a Itália para tentar vida na França. Assim que colocasse os pés em terra firme, ele daria um jeito de devolver o dinheiro.

Nada disso teria acontecido se David não tivesse se aventurado no pôquer. Ele não era um jogador tão bom para aquela mesa, e a perda não foi tão alta porque Sigerson perdeu de propósito algumas vezes, senão o rapaz não teria dinheiro para pagar e provavelmente acabaria atirado ao mar pelos outros jogadores, não necessariamente por Sigerson, embora ele tivesse estatura para isso, no alto de seus um metro e oitenta de altura.

–Espero não ter de salvar seu irmão outra vez, Miss Katz.

–Quando saí, eu vi que ele estava se saindo bem. O problema é que ele é ganancioso.

–Como todo judeu. Aliás, não é comum ver judeus jogando este tipo de jogo...

Esther paralisou. Como ele sabia que os dois eram judeus?

–Desculpe minha intromissão em vossa vida, Miss Esther. Não é um fato difícil de constatar quando se percebe o sobrenome dos senhores. Katz é um sobrenome de origem judaica, embora não tão comum como Schneider, por exemplo. E também temos os nomes dos senhores: David e Esther. Nomes do Antigo Testamento. E há outro fato que constatei também, sem querer. O comportamento dos senhores na Missa. David ficou estático, como se não soubesse o que fazer, e você fez o sinal da cruz de maneira errada...

–Certo, certo... Nós não somos católicos. – concluiu a moça, nervosa.

–Mas então, por quê estão escondendo sua verdadeira religião?

Ela parou de caminhar pelo convés do navio.

–Será que dá para falar isso mais baixo, por favor?

Sigerson ficou em silêncio, e acenou um banco próximo aos dois. Quando ambos se sentaram, ele curvou-se, levando as mãos ao queixo, pensativo.

–Mr. Sigerson, o senhor é um homem vivido, aventureiro, e entendo que não tenha preconceitos, mas aqui, neste navio em especial...

Ela ficou em silêncio rapidamente, quando um casal passava próximo.

–... Não estamos seguros aqui.

–Seria pelo comandante do navio? Soube que são comandados por um russo.

–Exatamente. E o senhor conhece o sofrimento que meu povo passa naquele país, o ódio que é cultivado nesta terra. Por isso, todo cuidado é pouco. Eu já ouvi falar dele e sei que ele é um homem hostil. O senhor mostrou-se muito esperto em descobrir nossa verdadeira raiz, mas peço-te agora: por favor, não nos entregue.

Sigerson franziu a sobrancelha. – Jamais faria uma coisa dessas.

–É ótimo ouvir isso. E é bom também encontrar alguém com quem eu possa desabafar. Desde que estou neste navio, só o que tenho a fazer é fingir ser alguém que eu não sou. E meu irmão passa pela mesma coisa, fingindo jogar pôquer, que não é um jogo muito apreciado em nosso meio, enquanto eu me vejo a frequentar a Missa de domingo, comer presunto...

Sigerson riu. – Este foi outro fator que me fez suspeitar. Seu irmão me deu escondido o único pedaço de carne de porco incluído na refeição.

Ambos riram do fato. – Eu também faço isso, mas preciso comer vez ou outra para não levantar essa suspeita. Então, posso contar convosco?

–Sim, é claro que pode, mas... Miss Katz, o que fez causar-lhe tanta cautela? Afinal, vocês dois são passageiros de terceira classe, assim como eu, e não creio que recebam atenção do comandante...

Ela pareceu com pouco jeito de dizer.

–É só uma cautela.

Sigerson observou-a por uns instantes, mas nada disse.

–Certo, senhorita. Pode contar com a minha ajuda. Agora, vamos ver como seu irmão está se saindo.

Eles rapidamente encontraram David sentado à mesa, junto com mais três sujeitos de grossa aparência. Decerto seriam de outros aposentos na terceira classe.

–Olá Sigerson! Pronto para me devolver meu dinheiro, hein? Garanto que desta vez eu lhe deixo sem calças!

–Deveria prestar mais atenção à bebida, senhor David Katz, visto que o linguajar que usa é um tanto impróprio para ser usado na frente de vossa irmã. Mas tudo bem, eu aceito seu desafio.

Rapidamente, foram feitas as apresentações. Estavam ali Francesco, um ex-operário, George, um homem bastante beberrão, constatou Sigerson, e Vlad, que era o que mais parecia hábil nas cartas, e justamente o mais perigoso. Era sempre assim.

O baralho foi rapidamente desembaralhado e as cartas, distribuídas. O jogo começou.

–Então, como está vossa situação, senhor Katz?

–Perdi um pouco. Se eu não recuperar, não terei o dinheiro que eu tinha para me levar à Paris.

–Hunf... Paris é um tanto longe de Marselha para se cogitar a alternativa de ir à pé. – disse Sigerson, olhando fixamente nos olhos de Vlad.

Esther não se conteve com a resposta de seu irmão, e deu-lhe um soco no ombro.

–Eu não acredito, David! Você perdeu o pouco que nos sobrou!

–Para o senhor Vlad, eu pressuponho? – assinalou Sigerson.

–De fato, mas...

–Não importa. Vamos ao jogo.

O céu já estava escurecendo. Ambos tinham consumido uma garrafa de vodca, para aquecer o frio do mar, e a garrafa estava perto do fim àquela altura. Sigerson, que não era apreciador daquele tipo de bebida, consumia moderadamente, enquanto percebia que seus adversários já estavam em um nível bastante alto do álcool e, portanto, sucintos a perder.

Com exceção de Vlad.

Sigerson rapidamente fez a leitura do jogo. Vlad detinha quase toda a riqueza dos outros jogadores, e o álcool estava levando-os para o perigoso caminho de apostar o que não tinha.

O primeiro passo seria perder um pouco, para dar confiança ao brutamontes.

Depois de três rodadas vencendo, Vlad estava em outro espírito.

–Parece, David, que seu amigo aí não era exatamente isto que você estava dizendo... – disse, recolhendo com o braço todas as fichas da mesa.

Sigerson nada disse. Tinha um trunfo na manga.

–Eu aposto convosco uma partida decisiva. Tudo ou nada. Coloco na mesa o que tenho de mais valioso, e você tudo o que ganhou até agora. O vencedor leva tudo.

Vlad alisava a barba espessa e ruiva que cobria metade de seu rosto, e deixou escapar um sorriso, com seus dentes amarelados.

–Certo. Tudo ou nada, então. Mas o que você poderia ter de tão valioso aí?

Sigerson sorriu, e tirou de seu bolso do colete um objeto, e o pôs sobre a mesa. Era um relógio de ouro suíço, com um soberano pendurado em sua corrente.

–Isso tem um valor monetário alto, e acredite, ainda maior sentimentalmente para mim. – ele disse, com pesar. – Deu muita sorte pra mim, esse souvenir. Vamos ver.

As cartas foram dispostas na mesa, e a partida acelerou por toda a noite. Tanto David, quando Esther, Francesco e Georges, que aquela altura já tinham abandonado o jogo, ficaram assistindo os dois jogando.

–Royal. – decretou Sigerson, apresentando um jogo melhor que o de Vlad. –Fim de jogo, amigo.

Sigerson pôs a mão sobre a pequena fortuna de Vlad, que imediatamente prendeu-a com sua grossa mão de camponês encrenqueiro.

–Quero uma segunda rodada.

–Impossível, cavalheiro. Jogo é jogo.

Vlad levantou-se, furioso, e segurou Sigerson pelo colarinho.

–E o que você irá fazer se eu não te entregar dinheiro algum? – ele perguntou, quase erguendo Sigerson do chão, se não fosse por sua altura. Esther e os demais rapazes se afastaram da mesa, e algumas fichas desabaram.

Imediatamente, Sigerson pôs uma mão sobre o ombro de Vlad, pressionando-o em um ponto sensível que fez Vlad queixar-se de dor e soltá-lo imediatamente. Furioso, Vlad parecia possesso de raiva. Sacou, então, um canivete suíço, e começou a ameaçar uma briga.

–Pare com isso, Vladmir! Não vale a pena!

–Eu não vou dar dinheiro a algum a você, seu porco fedido!

–O senhor é um homem sem palavra! – exclamou Sigerson.

Esther tentou apartar a briga.

–Parem vocês dois! Sigerson, não o provoque mais! Podemos resolver isso...

Vlad empurrou Esther, e sem querer, acabou ferindo-a levemente no braço com o canivete. Ao ver o sangue manchando a manga da camisa da moça, Sigerson ficou indignado, e partiu para cima de Vlad, mesmo não estando armado. Começou-se uma pancadaria. Preocupado, David foi acudir sua irmã.

–Você precisa sair daqui, minha irmã! Vamos para o quarto, para cuidar desse ferimento.

–Faça alguma coisa, David! Ajude o Mr. Sigerson!

David parecia resoluto em ajudar.

–Er, Esther... É meio complicado, e...

–O que você é, afinal? Seja homem e ajude o Mr. Sigerson!

–Mas essa é uma briga entre os dois! O que posso fazer?

Antes que pudesse interceder mais, Esther olhou para o cenário da briga e viu Vlad, já imobilizado e caído no chão, e Sigerson, com poucos ferimentos, arrumando-se. Estava claro que tinha vencido o brutamonte, que tinha mais de dois metros de altura e os ombros largos de um camponês. Mesmo Sigerson sendo um homem considerado alto, e no entanto magro, ele aparentemente teria poucas chances com um sujeito daquele tipo.

–Boxe. – foi o que apenas disse.

–Você está ferido, senhor. – foi o que constatou Esther, ao ver sangue escorrendo do canto de seu lábio.

–Você também está. – ele disse, calmamente. – David, é melhor sairmos daqui logo. Daqui a pouco, algum guarda vai aparecer e se alguém nos ver, estaremos encrencados... Oh não! Lá vem eles! Rápido, rápido!

Os três correram pelo navio, a procura de um lugar para se esconder. No entanto, quando Sigerson e Esther estavam prestes a entrar em um esconderijo, um bote salva-vidas, David hesitou.

–Preciso pegar meu dinheiro!

–Não dá mais tempo, David! Vamos embora!

–Vai dar tempo sim! Eu é que não posso ir para a França sem dinheiro!

David, no entanto, não os obedeceu, e voltou correndo para a mesa e pegou todo o dinheiro, colocando-o em um saco utilizado para guardar o jogo. Quando estava prestes a correr de volta para o esconderijo, ele foi avistado por um guarda.

–Ei, você! – um apito começou a ressoar pelo navio.

–Oh não, David! – Esther começou a se desesperar ao ver seu irmão tentar correr dos guardas.

–Mas que droga! Porque ele tinha que voltar? Agora a guarda do navio já o pegou.

O tempo se passou, e Sigerson cronometrou que tinha se passado quase duas horas, e nada de David. O navio, no entanto, estava passando por calmaria, o que era um mal sinal.

–Está tudo muito quieto... – ele sussurrou, quase inaudível. Esther concordou com a cabeça. Com a lona sobre suas cabeças, eles eram incapazes de saber o que estava se passando.

–Acho que podemos ir...

–Não podemos ir para os nossos quartos, serão o primeiro lugar que irão nos procurar.

–Mas então, o que faremos?

–Amanhã estaremos na França. Precisamos ficar escondidos até lá.

–Preciso saber o que aconteceu com meu irmão.

–Shiu, Miss Katz. Quando o navio estiver aportado em Marselha, tudo será mais fácil. Precisamos esperar aqui.

As horas se passaram lentamente, e Sigerson, no entanto, permaneceu alerta. A sensação de ser descoberto e consequentemente preso, ou sabe-se lá o que mais poderia seguir-se era enervante, e ao mesmo tempo, prazerosa. Fez-lhe lembrar de tempos passados, quando esta sensação era provocada por sua profissão. Poucos homens, ele sabia, tinham esse privilégio.

Ele acabou sendo levado por seus devaneios até aquele dia sombrio, talvez o mais sombrio de sua vida, na Suíça. Ele era capaz de ouvir o som das Cataratas de Reichenbach, semelhante a um rugido, e o cheiro das colinas das quais passou, e que o conduziu até o seu apogeu, e quase á sua queda, junto com seu maior inimigo. Cinco golpes, ele lembrava. Cinco golpes de bartitsu, e o Napoleão do Crime sucumbiu, sendo atirado contra a Fúria da Natureza, para sempre.

E havia também outra lembrança dolorosa: Watson. Ele se lembrava de seu nome sendo gritado de maneira desesperada por aquela voz, que lhe era tão amigável e familiar. Ele assistiu a tudo, impotente por uma única tentativa de se safar e trucidar seus inimigos como tanto mereciam. Seu ofício tinha trago uma dezena, e ele não tinha tempo para combate-los, e agora, sendo dado como morto, tinha a oportunidade para isso. Mas aqueles gritos, ecoando pelo abismo...

“Holmes! Holmes! Holmes!”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mas que confusão, já no primeiro capítulo!! Rs.
Esther Katz já se mostrou um problemão para o nosso Holmes. Será que ele aguenta esse rojão? Parece que esses anos no Tibete não o deixou muito enferrujado, rs.

Deem sua opinião. Sejam sinceros, opinem. Não deixe a história morrer, galera. Postagens dependem de reviews.

OBS: Bem antes de ocorrer o nazismo, os judeus já eram perseguidos pelos czares na Rússia, isso já no séc. XIX. Havia muitas restrições ao povo judeu por lá, mas darei maiores detalhes conforme a história avança.

Thanks.
BadWolf



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Shalom - As Memórias de John Sigerson" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.