A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 21
A Quarta Alma




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- Quer dizer que ele venceu fácil? – surpreendeu-se Mirian.

Os dias seguintes passaram rápido demais para que os notassem. Sorah e Dart haviam ficado na Ilha Eid apenas para assistir a luta de Gaulis, no dia onze de março. Com certa facilidade, o garoto conterrâneo de Sorah venceu, junto a uma parenta, seus adversários. Era Dart quem estava contando aos recém chegados as novidades, Pois Sorah observava a janela absorta em seus próprios pensamentos. Porém, ao ouvir a surpresa na voz de Mirian, virou-se imediatamente e lhe atacou em palavras:

- Ele faz parte dos nobres do reino da noite. Um dia terá o triplo da sua força. Mais respeito ao falar dele. Nesse exato momento, é o irmão mais velho de Gaulis, Hantsu, quem está me substituindo e cuidando das coisas no meu reino.

- Tudo bem, calma... Eu só achei impressionante porque os adversários desse torneio são muito fortes, e ele é muito novo.

- Mesmo aos 40 anos, Gaulis teria vencido. – acrescentou Dart.

- Quer dizer quatro anos humanos…?

- Claro… - respondeu Sorah, como se a pergunta de Hebel fosse idiota. – As pessoas dizem que dez anos lifing equivale a um ano humano mas… isso só conta a partir dos oito anos. Os lifings evoluem muito mais até o que seria quatro anos. Com essa idade, já tem conhecimento, estatura e aparência de oito anos. No entanto, dos cinco até os oito, a evolução desacelera. O lifing não cresce nem tem capacidades mentais aumentadas, a menos que treine. Depois dessa idade se diz que dez anos para os monstros equivalem a um humano.

Os humanos presentes, nem mesmo os nativos daquela terra, sabiam de absolutamente nada disso. Absorviam tudo como se tivessem um caderninho e uma caneta à mão.

- Claro que isso só vale aos lifings mais fortes, com aparência humana, como eu e Sorah. – acrescentou Dart.

Um silêncio tomou conta do lugar nos segundos seguintes. Sorah voltara a estar absorta em seus próprios pensamentos, voltada à pequena janela, que dava no corredor da torre, mas ficava de frente para uma segunda janela, em que se via o lado de fora.

- Tem… alguma coisa de estranho na Íris. – suspirou Sorah.

- O que disse? – perguntou Sabrina, pega de surpresa pelas palavras da lifing, uma vez que já havia se acostumado com o silêncio.

- Aquele dia em que chegamos aqui… Eu e Dart sentimos uma força muito poderosa. Logo em seguida, essa força se transformou na presença de Íris.

Sabrina se lembrou do momento, dias antes, em que isso acontecera. Mas seus pensamentos tiveram de ser interrompidos quando Nicka cortou a conversa.

- Sim, mas, no momento, estou mais preocupada com a quarta alma.

Os presentes se viraram na direção da guardiã pensativa. Assim que tinha a atenção de todos, concluiu seu pensamento:

- Eu estava pensando… Será que não está numa de nós?

Mirian baixou a cabeça alguns graus e calculou ser lógico, para que eles não quisessem contar.

- Faz sentido. Lembram-se que eles disseram precisar eliminar uma das guardiãs? Será que não é pra… retirar essa quarta alma? – Imaginou Hebel.

- Só assim a Lágrima deixaria de se repelir. Tudo bem, mas… em quem de nós está essa tal de quarta alma?

Mirian se levantou irritada com voz serena de Nicka ao dizer aquelas palavras.

- PELO AMOR DE DEUS! ESTAMOS FALANDO DE UMA DE NÓS MORRER PARA TIRAR ESSA MALDITA QUARTA ALMA!

Sabrina sentiu um choque diretamente em seu cérebro, afetando suas células tamanho o susto e o baque que levou ao ouvir a realidade exposta por Mirian.

- E ficar fingindo que não queremos saber quem é também não vai ajudar em nada, Mirian. – retorquiu Nicka. – Serve como proteção. Se eles tentarem matar uma de nós, podemos proteger, se já soubermos quem é.

Sabrina apoiou a cabeça na mão e pensou sozinha, enquanto as duas se encaravam mortalmente. Hebel, Sorah e Dart apenas assistiam.

- Na Sorah não pode estar, porque de acordo com os próprios guerreiros, seria ela quem eliminaria a tal guardiã.

Não havia mais motivos que eliminassem a possibilidade de estar em qualquer uma das outras três. Passaram os outros três minutos pensando, até Sorah fazer uma careta e pôr as mãos atrás da cabeça, escorregar até o chão e fechar o olhos, entediada. Nessa mesma posição, e sem o mínimo de preocupação, quebrou o silêncio:

- Se é pra estar numa das guardiãs, está na Sabrina.

Os demais olharam pra ela imediatamente. Sabrina ainda ficara sem uma única gota de sangue no rosto ao ouvir seu nome. Percebendo, mesmo de olhos fechados que todos a observavam cobrando uma explicação, continuou:

- Ela é a que tem maior ligação com a lágrima dentre nós. É só ela quem pode sentir a presença dos pedaços. Como se uma alma chamasse a outra. Assim como não há motivos para que não sejam as outras, também não há motivos para que sejam. Já Sabrina tem um ótimo e plausível motivo: Sentir a presença das demais almas.

O susto só não foi maior porque foi interrompido pelo som de batidas na porta. Sem mais cerimônia, dois vultos adentraram no aposento que começara a ficar apertado pra tanta gente. Imediatamente o assunto foi cortado com a entrada de dois dos guerreiros, devidamente vestidos com suas capas pretas e máscaras de metal. Assim que confirmaram a presença das guardiãs e dos dois garotos, tiraram as máscaras e revelaram ser Belthor e Íris.

- Só viemos avisar que amanhã será a luta da dupla de Nely. Seria bom que vocês assistissem.

- Então podemos faltar na prova de amanhã? – animou-se Mirian.

- Claro que não. – Respondeu Belthor ríspido. – Poderão vir pra cá assim que saírem da aula. As lutas serão um pouco mais tarde de agora em diante. E logo no outro dia, na terça feira, já é a luta do grupo de Sabrina e Sorah, contra Hebel e Dart.

- As lutas estão muito próximas uma das outras. Já vamos entrar na segunda etapa do torneio. – concluiu Mirian.

- Estou feliz de ainda estar viva… - pensou alto Sabrina.

Ambos os guerreiros ameaçaram ir embora, quando foram interrompidos por Sorah. Sem a máscara para disfarçar o humor, o olhar de desdém e nojo de Belthor ao olhar para ela era mais nítido do que nunca.

- Passaram por aqui esses dias não foi? Vocês dois.

Os demais sabiam que ela se referia ao dia em que sentiu uma força muito grande que em seguida se transformou na presença de Íris.

Belthor olhou preocupado. Íris checou que expressão formara-se em seu rosto.

- Não. – negou Belthor – Já disse que temos muitos assuntos na escola para nos darmos ao luxo de visitar a Ilha Eid quando bem entendemos.

Após alguns segundos de silêncio, Belthor recolocou a máscara e fez sinal à Íris para também o fazê-lo. Disseram que tinham assuntos importantes para tratar no mundo de Sabrina e Mirian, e ainda ordenaram que ficassem na Ilha Eid por mais algumas horas, o que lhes pareceu muito suspeito.

Assim que se foram, Hebel propôs que fossem atrás deles. Qualquer assunto que não fosse, de acordo com Belthor, do interesse dos jovens, na verdade interessava e muito. Podia significar a vida de uma das guardiãs.

Sem muito pensar, deram um tempo e saíram da masmorra, onde o ar parecia muito mais leve. Foram em direção à cratera, com todo o cuidado de verificar se os guerreiros ainda não estavam a caminho.

Muito mais acostumados com a viagem, saltaram um atrás do outro, sem receios. Já podiam parar em pé, muito melhor do que das primeiras vezes, quando acabavam caídos no meio do pó de uma fábrica abandonada.

Não esperaram uns pelos outros. Assim que tinham a visão das máquinas enferrujadas e do caminhão sem rodas, corriam em direção ao buraco iluminado pela luz do sol lá fora. Juntaram-se um ao lado do outro, espiando a rua da casa de Lia. Hebel foi o último a chegar com Nicka. Ambos reclamaram de não os esperarem, mas foram calados imediatamente pelos amigos, pedindo que fizessem silêncio. Belthor e Íris ainda não haviam entrado na casa de Lia, apesar de já estarem no portão, olhando para os lados, para ver se não estavam sendo seguidos. Assim que a porta se abriu, ambos entraram, tomando o cuidado de checar a rua uma última vez.

Sabrina fez sinal de que podiam sair e pediu que a seguissem. Correram em fila, meio abaixados, para não serem vistos por ninguém. O que era bastante estranho, um grupo de seis jovens correndo na rua um atrás do outro, tropeçando dos próprios pés.

Encostaram-se ao portão, mais abaixados que nunca. Não era possível ouvir nada dali, uma vez que o jardim que separava a rua da casa era grande demais. Sorah já estava do lado de dentro antes que qualquer um pudesse notar. Dart foi o próximo a pular de uma só vez o portão de uns dois metros sem fazer um único som. Sabrina e os demais ainda tiveram de escalar, tomando o máximo de cuidado para não fazer barulho.

Passada essa barreira, encostaram-se à parede logo abaixo à janela, atrás dos arbustos que cercavam o jardim. Nem as pessoas da rua, nem quem estavam na casa podia vê-los ali. A não ser por um pé de Hebel que acabava escapando e passava pelos arbustos. Sabrina ouviu a voz de Íris e subiu um pouco para espiar lá dentro, querendo saber se todos os guerreiros estavam na sala. Teve resposta afirmativa, assim que quase foi vista por Lia, movimentando-se nervosa perto do sofá e Belthor sentado na poltrona, de braços cruzados e cara emburrada.

- Se a Íris ver que agente seguiu eles vai ficar furiosa. – sussurrou Mirian.

- Eu pensei que o Belthor fosse o irritado… - comentou Nicka.

Esforçaram-se para ouvir melhor o que se passava lá dentro. Estavam praticamente gritando. Tornou-se fácil ouvi-los.

- É um absurdo! – exclamou Belthor – Não podemos contar algo desse nível pra elas! Como reagiriam? Não saberiam o que fazer!

- Elas são novas, mas tem maturidade! – discordou Lia – O que acha que elas vão fazer? Uma rebelião?

- ELAS VÃO SE REVOLTAR! Estamos colocando a vida de uma pessoa na mão de crianças! – retrucou Belthor.

- ESTAMOS COLOCANDO A VIDA DO MUNDO INTEIRO NA MÃO DESSAS CRIANÇAS!  - contrapôs Lia. – Você mesmo tinha apenas seis anos quando iniciou o treinamento para ser guerreiro de Yume. Aos quatorze recebeu toda essa responsabilidade, apesar de todos acharem que éramos muito jovens. Aos dezesseis presenciou a morte de oito dos companheiros que passaram metade da vida ao seu lado, que sofreram tudo o que você sofreu. Além da maior das derrotas. Nós todos éramos muito jovens quando vimos Yume explodir para que nós três vivêssemos. Belthor, idade não é nada.

- Vão querer matá-la... – insistiu Belthor, com a voz menos autoritária – Vão querer tirar a quarta alma a força. Ou pior! Aquela lifing pode contar a alguém e esse alguém vir matá-la.

- Eu não me importo com nada disso. – cortou Íris, com a voz bem baixa.

- Íris, não pense em tentar nada! Eu não vou deixar que aconteça nada de mal!

- Encare, Belthor. A morte é necessária. – sua voz tornou-se esganiçada.

- NUNCA! – discordou. – Se for necessário, tiro minha própria vida!

- Não seja tolo! – gritou Lia – Belthor, é mais que sem tempo de contar logo a elas.

Fez silêncio por alguns segundos.

- Como quiserem. Mas não me responsabilizo por nada.

Os jovens escondidos sobre a janela engoliram um seco. Imediatamente se levantaram e pularam o portão de uma vez só, sem se importar com barulho nenhum. Atravessaram a rua em fila, tal como chegaram, porém correndo. Passaram pelo buraco da fábrica temendo serem vistos. Sorah jurou ter ouvido o portão sendo aberto e acelerou um pouco mais, o que incentivou os demais, pois ela e Dart, ambos monstros com velocidade avantajada estavam consideravelmente na frente.

Pularam no portal como se pulassem num rio, desaparecendo rapidamente. Deixaram para trás apenas o silêncio da fábrica abandonada.

Mas a correria ainda não havia terminado. Assim que chegaram à lha Eid, continuaram correndo em direção à torre do torneio, onde Belthor provavelmente as procuraria. Levaram dois ou três minutos para percorrer a distância que normalmente levariam uns quinze pelo menos. Chegaram a ouvir o som do portal sendo usado e aumentaram a velocidade. O maior sacrifício foi subir as escadas da masmorra, que pareciam não terminar nunca. Pararam todos no quarto de Mirian e Nicka, o primeiro pertencente a eles. Fecharam a porta e respiram fundo. Estavam suados e arfando. Encostaram-se à parede de pedra e escorregaram até o chão, agradecendo por terem conseguido chegar em tempo. Não demorou nem quatro minutos, alguém bateu à porta, em seguida abriu sem cerimônia.

Entraram todos os três guerreiros, logo fazendo caras estranhas ao vê-los caídos, cansados e suados.

- Nossa… o que aconteceu com vocês…? – perguntou Lia.

- Nós estávamos só… - Nicka respirou um pouco para continuar – treinando.

- Ótimo. – congratulou Belthor.

Íris deu um passo à frente, apertando as mãos.

- Guardiãs… precisamos falar com vocês. É sobre a quarta alma.

Lia fez o mesmo, ignorando a face de protesto que fez Belthor.

- Vocês sabem perfeitamente, creio eu, que as três partes da Lágrima se repelem devido à ausência de uma quarta alma. E que esta alma está no corpo de uma pessoa. Nós achávamos que não estavam preparadas para manter esse segredo, então preferimos não contar até hoje em quem está. Bom…

- Está em mim, não está? – cortou Sabrina. – É por isso que eu sinto a presença dela.

Os três guerreiros olharam para Sabrina, um pouco assustados.

- Quem te disse uma coisa dessas? – perguntou Íris.

- Nós ligamos os fatos. – respondeu Nicka.

- Não. – negou Lia imediatamente – Não está em Sabrina, nem em nenhuma de vocês. Como poderia ser, uma vez que nasceram séculos depois da morte de Yume e da lágrima ser formada? A ligação de Sabrina com a Lágrima é diferente. Nós dizemos que ela é como uma filha desta jóia, pois foi encontrada junto a ela, no local onde havíamos guardado a Lágrima. Um lugar absolutamente secreto, impossível de se penetrar. Não havia como um bebê ir parar lá. No entanto, encontramos Sabrina com a Lágrima na mão determinado dia naquele mesmo lugar.

Sabrina sentiu o coração pesar, sem que ninguém soubesse. Será que haviam calculado que esta informação poderia feri-la por dentro? Provavelmente não desconfiaram que a certeza absoluta de que não tinha nem nunca teve um pai e uma mãe iría doer tanto.

Belthor tomou a palavra.

- Sorah e Dart sentiram uma presença muito forte dias atrás. Pensaram ser Íris. E estavam certos.

- Eu estou com a quarta alma. – declarou Íris, de cabeça baixa.

- O plano de Yume era fazer com que a harmonia continuasse sendo mantida e criou a Lágrima. No entanto, um objeto é alvo fácil para qualquer um. Quem possuísse a pedra adquiriria seu poder. Então não uniu a principal das almas e colocou esta no corpo de Íris. Assim, as almas se repeliriam e jamais ofereceriam risco se caísse em mãos erradas. Porém, a harmonia só se manteria por determinado tempo com as almas separadas. Para isso Yume criou vocês, para muito além de apenas proteger a Lágrima simplesmente em sua forma atual. Yume queria que vocês… tirassem a alma de Íris e a unissem às demais. E só então teriam o trabalho de proteger essas almas.

Os corações das guardiãs, exceto por Sorah, ficaram apertados. O trabalho delas naquele mundo era matar uma amiga. Poderia ser pior?

- Como Yume pode… como ela pode querer a morte de alguém? – perguntou-se Nicka.

- Yume sabia muito bem o que e porque estava fazendo. – defendeu Íris – Eu não me importo se tiver de morrer por isso.

Belthor aproximou-se de modo ríspido e dirigiu-se a qualquer um que quisesse ouvir.

- Não está nos planos que nenhum de nós morra!

Mirian baixou a cabeça triste. Havia convivido com “Viviane” por bastante tempo. O suficiente para estar agora, com os olhos cheios de lágrimas.

- Então… como nós…?

- Ainda não sabemos. – respondeu Lia, adivinhando a pergunta – Antes de pensarmos em qualquer coisa, devemos nos preocupar com Zigor.

Sabrina sentiu um frio na barriga. Lembrou-se de que semanas atrás, assistira parte de uma notícia no jornal, falando sobre uma série de assassinados.

- O que tem ele? Está matando pessoas? – perguntou, aflita.

- Sim, mas além deste problema, Zigor está muito próximo de nós. Mesmo ocultando nossa força, ele deu um jeito de nos rastrear. – respondeu Íris – Se conseguir chegar até um de nós, vai voltar para a Ilha Eid, pegar as partes da Lágrima, que mesmo sem a alma que está em mim é mais que suficiente para aumentar seu poder, e transformar o mundo num caos. Quem sabe até libertar Thorus. E se isso ocorrer…

- Não haverá mundo para haver caos. – completou Lia.

- É bom que as lutas tenham sido adiantadas. – comentou Belthor, cruzando os braços – Não temos tempo. Devem derrotar Nely o mais breve possível e vencer logo este torneio. Assim que isso terminar, as partes da Lágrima estarão seguras. Damos um jeito de derrotar Zigor e depois pensamos no que fazer com relação a Íris. Certo?

Nicka ia tomar a iniciativa de perguntar sobre a guardiã que deveria ser eliminada, mas não teve coragem. As demais ou simplesmente não pensaram nisso, ou também não conseguiram dizer.

- Durmam cedo – aconselhou Lia – pois amanhã vão pra escola. Em seguida virão pra cá e assistirão a luta de Nely. Sorah e Dart não precisam ir à aula. Sendo lifings, realmente não precisam de conhecimentos humanos. Sendo assim, amanhã podem vir cedo pra cá, para o caso de não dar tempo dos demais assistirem a luta.

Todos os jovens afirmaram com a cabeça. Os guerreiros vestiram suas respectivas máscaras e fizeram sinal aos outros para que voltassem com eles ao mundo de Sabrina e Mirian. Ainda tentando digerir o que ouviram, se levantaram apoiando-se nas paredes de pedra da masmorra. A idéia de que no dia seguinte veriam novamente Nely e Nacknar ainda não lhes tinha vindo à mente. E no caso de Sabrina, ainda não lhe tinha ocorrido que o dia de lutar contra Dart se aproximava rapidamente. Faria Sorah lutar com ele para proteger Hebel? E se não… teria coragem de enfrentá-lo, usar sua força contra ele? Sorah jamais a perdoaria se fracassasse por um sentimento julgado aos olhos da lifing, inútil. Mas estas preocupações não lhe vieram à cabeça naquele momento. Havia outras pessoas correndo risco de morrer antes que sua luta chegasse.

 

                                               ***

 

 

Lia passou pelo quarto de visitas onde Mirian e Sabrina estudavam incansavelmente para a prova do dia seguinte. Agradeceu por não estarem muito chocadas com o que ouviram naquele dia.

Entrou no quarto, onde viu Sorah deitada de olhos fechados, com a cabeça apoiada nas mãos. Na cama do lado aposto, Dart estava sentado, encostado na parede, olhando o que os demais faziam. Esses demais eram Sabrina, Mirian e Nicka. Hebel estava mais preocupado em ouvir o som conseqüente de suas batidas seguidas na tela da velha televisão. Nicka, por sua vez, estava realmente tentando entender o assunto da prova, sem muito sucesso.

Era uma noite quente. Belthor e Íris, agora agindo como Roberto e Viviane, já haviam saído da casa. As janelas estavam abertas, deixando entrar o vento quente que de vez em quando fazia as folhas de exercícios usados por Sabrina e Mirian para estudo, voarem pelo quarto. Ainda assim, suavam um pouco, uma vez que estas correntes eram cada vez mais raras.

Os presentes voltaram-se a Lia assim que entrou. Ela fez sinal que não queria nada e observou o quarto. Sorah ainda vestia a armadura prateada e Dart a dourada. Ambos de roupas pretas por baixo. Lia imaginou o calor que deviam estar passando.

- Sabrina, - chamou Lia – Por que você não empresta umas roupas de dormir para as meninas? Qualquer dia podemos comprar alguma coisa pra eles.

Sabrina afirmou com a cabeça e se levantou num pulo. Correu até seu quarto, seguida pelos olhares dos que estavam no aposento. Logo voltou carregando algumas roupas. Colocou tudo em cima da cama de Nicka e começou a revirá-las, até tirar uma camisola branca de algodão, com o rosto de algum desenho animado na frente. Levantou-a à frente da cabeça, vendo o tamanho. Pôs à frente de Nicka e fechou um dos olhos, calculando sua altura. Decidiu-se que serviria e entregou a ela, pedindo que se trocasse no banheiro.

Puxou uma outra do meio do monte. Era salmão, de um tecido diferente. Algo parecido com seda. Encostou-o nos ombros de Mirian e viu que lhe serviria, apesar de ficar um pouco curta. Entregou a ela e disse para se trocar em seu quarto.

O grande problema era mesmo Sorah. Além de certamente virar uma luta fazê-la vestir algo feminino, não havia nada de Sabrina que lhe servisse. A lifing era bem mais alta e até um pouco mais magra. Enquanto a humana media pouco mais de um metro e sessenta e cinco centímetros Sorah já beirava um metro e oitenta e poucos. À parte Dart, com quase dois metros. Ambos os monstros eram os mais altos do grupo.

Quanto ao peso, Sorah não passava de sessenta e sete, ou um pouco mais. Sabrina não estava muito atrás, equivalentemente. Mantinha-se a pouco menos de cinqüenta quilos à alguns meses. Mas é preciso considerar a altura de ambas. E outras medidas que eram maiores em Sorah, como busto. Isso fazia com que qualquer roupa da humana ficasse curta, larga na parte de baixo, apertada na parte de cima.

Sabrina achou que seria engraçado ver como ela ficava com essas roupas.

Estendeu uma camisola do mesmo tecido que a de Mirian, porém um pouco maior e vermelha. A lifing olhou com repugnância e recusou imediatamente.

- Está calor. – bradou Sabrina – Você não vai sair na rua com isso, é só pra dormir.

A esta altura, Nicka já estava voltando para o quarto de visitas, com a camisola meio camisetão. Sorah olhou pra ela, voltou a mirar a que Sabrina lhe oferecia, cruzou os braços e recusou mais uma vez.

- Anda logo! – mandou Sabrina – Ninguém vai rir de você! Nós estamos por acaso rindo da Nicka?

Esta humana, que estava olhando para baixo para observar suas novas vestes, ergueu a cabeça imediatamente ao ouvir seu nome.

Sorah franziu o cenho e pegou a camisola. Esticou à frente dos olhos. Era muito pequena para si. Colocou junto ao corpo. Ficaria um tanto acima do joelho. A lifing reproduziu a expressão de repugnância, enquanto Sabrina segurava o riso. Tinha roupas maiores, mas queria vê-la envergonhada.

- Nem está tão pequena assim… - arriscou Sabrina.

Lia apenas observava. Viu Sorah olhar para Dart. Em seguida voltou-se a camisola. Sorriu e concordou. Sabrina não entendeu muito bem, mas não se preocupou muito com isso. A lifing entrou no banheiro. No espaço de tempo em que se trocava, Mirian saiu do quarto e ouviu de Sabrina o que estava tentando fazer.

Lia, por algum motivo, pegou uma das suas próprias vestes de dormir, que certamente serviriam à Sorah e ficou esperando que esta saísse. Hebel e Dart não estavam muito preocupados, por tanto, só saíram do quarto de visitas quando notaram que a lifing estava demorando demais.

Sorah saiu no mesmo instante em que os garotos chegaram. A atenção dos dois foi imediatamente desviada para ela, como dois imãs. Sabrina quis rir, mas ao ver os olhos de Dart brilhando, não conseguiu forçar uma risada. A camisola lhe caiu como uma veste insinuante demais. Suas formas, mais claras e perfeitas que nunca, impediam que os garotos parassem de olhar para ela. Anos e anos de uma ginástica forçada se refletiam em seu corpo.

Furiosa, Sabrina pegou a veste que Lia já lhe estendia e jogou em Sorah.

- Pega, essa fica melhor.

Virou-se e voltou para o quarto, ignorando o riso incontido de Mirian.

 

Protegidos apenas por lençóis finos, todos os jovens naquele aposento dormiram como nunca, tentando ignorar as vozes que ecoavam em suas cabeças, repetindo tudo o que ouviram horas antes. Apesar desse incômodo, o sono era tanto, que superou a preocupação de encontrar Nely no dia seguinte.

 

***

 

 

O sol esticou-se com preguiça pouco depois do despertador disparar e Sabrina ter acordado os demais. Era estranho repetir a mesma rotina que um ano atrás, deixara de fazer. Levantar-se, queixar-se do cachorro, do cabelo, se trocar, escovar os dentes… a única diferença é que agora, tinha ainda cinco visitas a mais. Sorah e Dart ainda podiam se poupar de alguma dessas coisas. Não iam para a escola, simplesmente vestiam suas vestes tradicionais. Seus dentes não requeriam nenhuma higiene. Eram brilhantes até demais mesmo sem escová-los. E seus cabelos eram lisos, sempre com o mesmo penteado. Sorah com eles jogados sobre o olho direito, enquanto que Dart mantinha-o curto e a franja desarrumada. Não havia muita coisa para tomar tempo arrumando-os. Mesmo assim todos esperaram para saírem juntos, mesmo que o grupo fosse se dividir na saída.

Tomaram café apressados em chegar logo na escola, como se o horário de saída dependesse da entrada. Sorah e Dart dirigiram-se para a Fábrica Abandonada, atravessando a rua. Sabrina e os demais entraram na Van de Lia e seguiram para a escola.

O trajeto curto, repleto de estudantes que caminhavam até o colégio, foi percorrido em silêncio. Mirian estava com o livro de História aberto, tentando estudar um pouco mais. Sabrina sabia a matéria décor. Nicka pegaria as respostas telepaticamente com Mirian. Mesmo que tivesse estudado muito, não sabia muita coisa. Hebel, como todos concordaram, era caso perdido. Mas acabaria colando da mesma forma que Nicka.

Plena segunda-feira. Todos os estudantes com a maior cara de fim-de-semana. Ninguém muito interessado em estudar. Apesar disso, toda a sétima série fazia o mesmo que Mirian: aproveitava os últimos minutos para ler o livro de História. A prova de Roberto, como todos sabiam, não necessitava decorar absolutamente nada, no entanto, um geral em tudo, era preciso saber. E esse tudo, na maioria das vezes, era realmente muita coisa. Os alunos da oitava série também pareciam ter prova naquele dia, porém, de Matemática. O que fez com que todos os alunos da classe de Sabrina e da oitava estivessem ou nas muretas, ou em suas respectivas classes, sentados, com o livro aberto. Menos a própria. E um certo garoto que certamente não achava necessário estudar mais do que já estudara. Tinha cabelos castanhos e lisos, mal penteados, olhos verdes, mãos sempre no bolso e roupas largas, cara de sono e um grupo de meninas ao redor. Garotas que deixou de lado para cumprimentar Sabrina.

-Bom dia. – desejou Lucas.

Mirian puxou Hebel e Nicka até a classe, para deixar os dois sozinhos. Sabrina sentiu o rosto corar.

- Bom dia. – retribuiu.

- Parece que sua classe também tem prova hoje. – o garoto olhou ao redor, com a voz arrastada, de quem mal acordou ainda.

- É. – afirmou. – A oitava vai ter de Matemática, não é? A minha é de História. Só tenho de matemática na quarta-feira. Mas nem adianta estudar, eu sempre acabo indo mal.

Lucas sorriu, vendo uma oportunidade passar na frente de seus olhos.

- Se quiser, eu vou à sua casa pra te ajudar. Eu não sou o melhor nessa matéria, mas já vi a sétima série e acho que posso servir de alguma coisa.

Sabrina sentiu-se mal. As palavras do garoto davam a entender que ele ainda via uma chance entre os dois.

- Olha, Lucas… eu já te disse que nós…

- Eu sei… mas… sem compromisso nenhum. Sou só um amigo querendo ajudar. – sorriu, escondendo uma face de tristeza por baixo.

Contrariada, forçou um sorriso e concordou. Porém, logo em seguida, lembrou-se que naquele dia, iría até a Ilha Eid, assistir a luta de Nely e Nacknar. No dia seguinte, ela mesma lutaria contra o grupo de Hebel e Dart.

- Me desculpe mesmo, Lucas, mas tenho compromissos hoje e amanhã. Não vai dar mesmo.

- Tudo bem então. – aceitou, de cabeça baixa.

Sentindo-se mal por deixá-lo daquele jeito, Sabrina pensou numa solução. O sinal bateu ao mesmo tempo em que lhe dizia isso:

- Mesmo assim, você pode vir qualquer dia desses. Não é a última prova de Matemática do ano.

 

                                     ***

 

“Quem foi mesmo o cara que construiu aquela coisa grande de pedra? Como era o nome dele mesmo? Será que Nely vai ver agente nas arquibancadas? E quanto a Nacknar? Será que estou forte o suficiente para enfrentá-lo? Mas não vou enfrentá-lo hoje, só assistir a luta dele… Ai, para de desviar a concentração da prova! Droga, assim não vou conseguir passar da primeira questão… Vamos lá, Sabrina, concentração. Qual era o nome do cara que iniciou a revolução francesa? O que ele pensava? Como é que eu vou saber? A vida era dele, não minha… Qual era o movimento que antecedeu a revolução francesa? Ai… estava na página quarenta e cinco, eu sei que sei… Mas… amanhã tem a luta entre eu e Dart… o que eu vou fazer?”.

 

O sinal de saída tocou cerca de cinco minutos após Sabrina ter terminado a antepenúltima questão. Estava tentando se concentrar na penúltima, porém, havia muitas preocupações em sua cabeça que simplesmente não a deixavam em paz. Normalmente, iría muito bem na prova de História. Era realmente boa nesta matéria. No entanto, foi impossível se sair como quis. Sua sorte era a intimidade com Roberto, ou Belthor. Poderia tranqüilamente lhe explicar que estava nervosa demais com todos aqueles acontecimentos seguidos e não conseguiu terminar a prova. Quem sabe lhe dê um desconto, ou lhe deixe terminá-la.

Quanto a Mirian, pela cara, também não tinha ido muito bem. Havia lhe pedido respostas por telepatia, mas como nem Sabrina sabia, provavelmente deixara de responder o exercício. Conseqüentemente, Hebel e Nicka também tinham tirado nota baixa.

Assim que os alunos começaram a sair da sala, sob pressão de Roberto para que entregassem suas provas quase sempre inacabadas, Sabrina e Mirian, seguidas por Hebel e Nicka, foram falar com o professor.

- Já deveriam saber que não misturo a escola com outros assuntos. – retrucou ele quando as duas lhe pediram para terminar ou refazer a prova – Se foram mal, a culpa não é minha e eu vou agir como se não soubesse do que acontece com vocês do portão da fábrica abandonada pra lá. Assim como qualquer outro professor fará.

- Mas Belthor…!

- Aqui dentro eu sou Roberto e nada de mas! Agora saiam logo e vamos para a Ilha Eid. – encerrou o professor, colocando as provas na pasta.

Assim que ele se retirou, Sabrina fez uma careta por trás e xingou baixo. O seguiram logo depois, os outros três humanos num riso abafado.

 

                                               ***

 

Corriam o mais rápido que podiam, para chegarem a tempo de verem a luta de Nely e Nacknar. Já estavam atrasados e o combate provavelmente tinha começado.

Já no corredor, tentando desviar dos alunos mais altos que barravam a passagem para a saída, os quatros foram parados por José, o professor de Ciências, sem que Roberto notasse. Ele carregava três folhas de papel na mão direita.

- Com licença, garotas… e garoto. – interrompeu o professor, com seu tom de voz baixo e ranzinza. – Será que podem entregar essas lições para a Mariana? Ela saiu sem esperar eu entregar. Acho que ainda está por aí… - falava lento, despreocupado. Como se tivesse tempo pra tudo e tudo fosse muito chato. – Todo caso, também queria que entregassem para o Carlos, ele só chegou na segunda aula, não é…?

Nicka estava se irritando com o tom de voz tranqüilo. Estavam atrasados e o professor lhes empacava.

- Desculpe, José. Não temos tempo…

- Ah, vocês são jovens… têm todo tempo do mundo. – balbuciou em tom de acusação.

Para sorte deles, Roberto finalmente notou que não estavam mais o seguindo e voltou. Disse a José que precisava falar com eles urgente a respeito da prova e os tirou dali a tempo.

Seguiram correndo para a saída, onde Viviane e Lia já esperavam na Van, se perguntando por que estavam demorando tanto. Entraram no carro. Lia deu a partida e seguiram rapidamente à fábrica abandonada.

Sabrina pensava em Dart enquanto seguiam. Não se importou com a velocidade alta em que estavam indo. Sorah estava sozinha com ele. Apesar de ambos terem negado qualquer ligação, não podia deixar de sentir ciúmes.

Nicka por sua vez, admirava a selva de pedra em que fora parar. Crescera em ambiente fechado, na maior parte do tempo longe das florestas, mas tudo era muito diferente. O ar, as pessoas, as roupas, as casas. Tudo parecia ser de outro planeta. As imagens passavam rápido pelo vidro enquanto Lia aumentava a velocidade.

Hebel estava achando engraçado o modo com que nas curvas era empurrado para cima dos demais. Fazia algazarra dentro do carro, enquanto as demais só queria pensar um pouco no que fariam em seguida. Mirian era a única que brincava com ele, inclinando-se mais do que faria nas curvas, para pressioná-lo contra a porta da Van. Ele, quando a curva o favorecia, fazia o mesmo. E logo ambos estavam rindo a toa, empurrando um ao outro. Parecia duas crianças superdesenvolvidas.

Belthor, sentado no banco da frente parecia o mais tenso de todos. Nenhuma novidade. Íris estava sentada ao seu lado, sorridente e às vezes, rindo ao ver a brincadeira de Mirian e Hebel pelo espelho retrovisor. E Lia parecia interessada apenas na estrada, uma vez que a velocidade em que corriam era mais propícia a acidentes.

Em menos de cinco minutos chegaram na rua da casa de Lia e Sabrina. Ao mesmo tempo, na rua onde se localizava a fábrica abandonada. Os adultos desceram correndo, já partindo em direção à entrada da fábrica. Os jovens estavam meio perdidos, então deram algumas voltas em torno de si mesmos até visualizarem seu destino. Correram atrás dos três guerreiros que já atravessavam a entrada e pularam logo atrás deles, sem se importarem muito com o que passariam pelo portal. Esse efeito já era quase inexistente em todos. Estavam muito acostumados para se importarem.

Sequer pararam para respirar quando chegaram à Ilha Eid. Continuaram correndo. Pelo caminho já podiam ouvir os gritos da multidão no estádio. Sempre muito barulhenta, parecia que estavam muito mais perto do local do que realmente estavam. Demoraram mais uns sete minutos para chegar na entrada do estádio.

Entraram devagar. Os jovens aparentava estar cansados pois arfavam um pouco apesar de não terem chegado a suar. Já os guerreiros estavam da mesma forma de quando começaram a correr.

Olharam para os lados procurando por Sorah e Dart nas arquibancadas. Estavam na segunda fileira de baixo para cima, do lado esquerdo. A lifing com os braços cruzados e ele com as mãos no bolso. As mesmas caras inexpressíveis.

A luta parecia ainda não ter começado, pois os lutadores não estavam no tatame. Os monstros que assistiam pareciam furiosos, implorando por uma batalha e conseqüentemente, uma morte.

Subiram até onde Sorah e Dart estavam. Belthor fez uma cara feia ao ver a lifing. Certamente desejava que ela tivesse, por um milagre, morrido. Por algum motivo, ele a odiava muito mais do que odiava simplesmente os demais lifings.

- Ainda não começou? – perguntou Lia, sentando-se por perto.

- Não. – respondeu Sorah, ríspida.

Sabrina olhou para o tatame e viu, ao redor, os quatro lutadores. Nacknar vestindo as roupas de guerreiro de Yume, sem a máscara. Mesmo coberto por inteiro, Sabrina ainda podia ver claramente em sua memória a enorme ferida em deterioração que havia em seu peito. Se ainda se deixasse levar por pensamentos, veria as larvas e o cheiro insuportável que exalava.

Já Nely, corpulento, usava uma capa roxa escura, sobre calças e jaquetas negras. Ambos os guerreiros permaneciam observando incansavelmente os outros dois lutadores. Praticamente imóveis, não pareciam se importar nem um pouco com o barulho ensurdecedor que a multidão de lifings fazia, implorando por uma luta.

- E por que ainda não começou? – quis saber Nicka.

- Há pouco tempo, Nely estava observando o estádio. – começou Dart sem mexer muito os lábios – Sendo ele o organizador do torneio, pode adiar uma luta o quanto quiser, principalmente a sua. Certamente está esperando alguém chegar, pois parecia estar procurando algo pelo estádio.

Sabrina voltou-se à figura imóvel de Nely e teve a impressão de vê-lo mexer um pouco a cabeça para o lado. Em seguida, ele virou o pescoço. Parecia estar procurando alguém, como Dart dissera. Logo, virou o corpo todo. Uma sensação estranha atravessou o corpo de Sabrina quando, por uma fração de segundos, Nely olhou diretamente em seus olhos e sorriu malignamente. Em seguida voltou-se à juíza e lhe falou alguma coisa que certamente, ninguém além dos dois ouviu no meio de todo o barulho que ali se estabelecia.

Os adversário dos dois permanecia parado de braços cruzados certos de sua vitória. Usando vestes compridas, mais parecidas com vestidos ou roupas de mago. Um deles moreno, carregava um arco e flecha. O outro, loiro, usava uma espada fina como de esgrima, presa no cinto. Enquanto isso, Nely e Nacknar não usavam arma alguma. Provavelmente não precisavam de uma.

A juíza, após receber a informação, aceitou-a com um movimento de cabeça e deu sinal para os primeiros lutadores subirem no tatame.

Como já era esperado, Nacknar fora o primeiro a dar um passo à frente. O lutador com o arco e flecha recebeu algum tipo de dica diretamente de seu parceiro e pareceu aceitá-la. Olhou para seu adversário, o encarou e deu um passo a frente.

Sobre o tatame, frente a frente, com apenas a juíza entre eles, os dois se encaravam com ódio mortal. Com os punhos cerrados, ameaçavam se socar ali mesmo. Nade de novo. Assim que fora dado o sinal para começarem Nacknar fechou os olhos e sorriu.

E debaixo dos olhos de todos, sumiu.

O rapaz com arco e flecha era apenas o mais confuso das pessoas que estavam naquele local. Olhava para os lados, como se sentisse a presença de seu adversário em todo lugar, no chão, no ar, ao seu redor.

Os olhos de Sorah moviam-se rápido. A impressão que Mirian teve ao olhar diretamente para ela, era de que estava tendo uma convulsão.

- O que está havendo com você, Sorah? – desesperou-se Mirian.

Ao ouvir o nome de Sorah, Dart foi o primeiro a olhar para ela. Logo entendeu o que se passava.

- Ela está seguindo o adversário de Nacknar com os olhos. Mas está usando de toda sua habilidade para isso. Não vai te responder. Seus cinco sentidos estão agora focalizados na visão. Ele está usando de velocidade para parecer que é invisível.

Mirian espantou-se com a naturalidade com que o lifing dizia aquilo. Sabrina, que virara-se pouco tempo depois, distraíra-se ao visualizar os olhos de Sorah, ainda se movendo tão rápido que suas pupilas âmbares praticamente sumiam. Assustou-se quando eles pararam de se mexer repentinamente. Cerca de um segundo depois, o lugar onde estava tremeu. Voltou a visão ao tatame e viu Nacknar ainda com uma das pernas levantadas e seu adversário no meio do que restou do muro onde se chocou ao levar o chute de Nacknar.

- Está morto! – gritou a juíza, apontando para o vencedor.

- Como... um lifing de aparência humana... com essa energia, com esse poder... – dizia Dart pausadamente devido a seu espanto – pode morrer com um único chute... de um humano!?

Tinha como ser mais forte que aquilo?

Nely subiu no tatame rindo com o silêncio que se fez no estádio. Os monstros, assim como Sabrina, Hebel, Nicka e Mirian ainda não haviam compreendido bem o que se passara ali. Já os guerreiros de Yume, por sua vez, não pareciam muito surpresos. Apenas estavam nervosos, pois aquele que hoje está contra eles, um dia fora seu parceiro.

Hebel ficou imaginando se Belthor, Mia e Íris seriam tão fortes quanto eles, afinal, foram treinados da mesma forma, não foram? A única diferença é de que Nacknar está morto e anda pelo mundo dos vivos como um zumbi.

Quando finalmente se deu conta do término da luta, a multidão voltou com o barulho ensurdecedor, gritando o nome de Nely. Este, por sua vez, agradeceu com os braços abertos e um sorriso maligno na face. Admirava o quanto os lifings desejavam ver uma morte, a ponto de torcerem por um humano só porque ele parecia mais forte.

O espadachim companheiro do arqueiro que havia acabado de morrer olhou para o corpo inerte entre os escombros e baixou os olhos. Em seguida mirou Nely.

- Ele era meu irmão! – urrou o rapaz.

- Não se preocupe, logo estará ao lado dele. – respondeu Nely.

A juíza deu o sinal para subirem no tatame. Os dois lutadores se encaravam. Nely com um sorriso mórbido de ansiedade em matar. O outro com ódio mortal em vingar o irmão.

Assim que foi dado o sinal de inicio da luta, o espadachim atacou ferozmente. Velocidade altíssima. Alguns dos espectadores não puderam ver mais que um borrão. Mas Nely não se incluía nisso.

Os monstros soltaram um urro ainda maior ao ver aquele que possuía maioria absoluta de torcedores a favor fincar a espada em Nely. Sabrina moveu-se na cadeira incrédula. Nicka comemorou instantaneamente. Hebel ergueu a cabeça para ver melhor. Não acreditava naquilo. Sorah e Dart não moveram um músculo. Muito menos os guerreiros.

O corpo de Nely arqueou para frente apoiando-se na espada. O rapaz a largou e Nely caiu pesadamente contra o chão, inerte, tendo a arma fincada até o cabo contra seu corpo. A juíza preparava-se para dar a vitória ao rapaz, que já comemorava com a torcida.

- Está morto! – declarou a juíza após checar.

- Nely morreu? – perguntou Sabrina a qualquer um dos guerreiros disposto a responder.

- Esse é o problema. – respondeu Belthor tenso. – Ele já estava morto.

Preste a dar a vitória ao rapaz eufórico, já preparado para lutar contra Nacknar e consagrar sua espetacular vitória, a juíza ouviu um riso mórbido vindo do corpo inerte de Nely. Caiu no chão ao vê-lo se levantando ainda com e espada fincada em seu peito enquanto ria.

O rapaz olhou para trás incrédulo, tal como cada um dos presentes no local. Seus olhos foram tomados de medo ao vê-lo retirar a espada sem uma única gota de sangue.

Rindo, Nely Férius lançou a espada de onde estava e esta perfurou o crânio do rapaz sem a mínima chance de defesa. Um jorro de sangue foi seguido pelos urros da platéia que só agora voltavam a si. O que mais importava era o sangue.

O ex-guerreiro olhou novamente nos olhos de Sabrina, tal como no início da luta e sorriu maleficamente. Em seguida a juíza Fi o consagrou vitorioso e anunciou que eles estavam classificados para a segunda etapa do torneio.

- Vamos embora daqui. – mandou Belthor.

A idéia não era má. Ficava mais difícil sair quando os monstros saíam juntos.

 

                                               ***

 

- Próxima luta… Sorah e Sabrina contra Dart e Hebel. O que acha disso? – perguntou Íris a Belthor.

Mia serviu-lhes vinho enquanto conversavam. Uma velha garrafa de formato épico, certamente vindo da Ilha Eid. Os três presentes tinham preferência por esta bebida em especial.

Após se servir de um gole do liquido escuro que seria facilmente confundido com sangue a primeira vista por um lifing como Sorah, e logo ignorado após checar seu cheiro, Belthor inspirou fundo e pensou numa resposta. Mia puxou uma cadeira e pôs um pouco do vinho em seu copo, sem provar. Íris ainda esperava pela resposta. Estavam apenas estes três na casa onde Sabrina vivera com a suposta Lia por quase quatorze anos.

- Sorah não vai permitir que Sabrina enfrente Dart.

- Isso é óbvio. – reclamou Mia.

- Me refiro a luta em si. – corrigiu Íris. – Sabrina contra Hebel…

- Não acho que ela esteja pronta para lutar contra um aliado. Muito menos aquele garoto. Ela é muito mais forte que ele, isso é claro. O que me preocupa é que talvez ela ainda não saiba usar toda força que já tem.

- Chegará a final aquele que for o mais forte. – lembrou Mia após tomar um gole do vinho. – Se a dupla de Dart e Hebel o for, não importa desde que vençamos Nacknar e Nely, certo?

- Sorah não vai permitir que Dart seja melhor que ela. – alegou Belthor. – Aquela lifing não aceita que ninguém seja mais forte que a própria. Acho que esta luta em especial vai ser interessante. O lifing pode usar com precisão mais força do que ela, porém se ela chegar ao mesmo estágio que ele, será mais forte.

- Não seja irônico, é claro que Sorah não chega ao mesmo estágio que Dart! – acusou Íris. – O que me preocupa é que mesmo assim ela jamais o deixaria vencer.

- Exatamente por isso será interessante.

 

                                                        ***

 

- De quem foi a idéia imbecil de adiantar as lutas!? – xingou Sabrina andando de um lado para o outro nervosa.

- Provavelmente do organizador do torneio. – respondeu Sorah, serena como sempre.

- Pois me diga o nome desse idiota que eu quero ter uma conversa com ele!

- Nely Férius.

- Mas claro que pode esperar não é? Pra que incomodá-lo agora? – disfarçou Sabrina.

Sorah riu do temor da humana com relação a ele.

- É melhor começar a esquecer esse seu medo. Vamos enfrentá-lo em breve, humana. É melhor dar tudo de si contra Hebel amanhã.

Sorah já havia se decidido lutar contra Dart. Parecia feliz com isso. Estava de bom humor. Sorah de bom humor? Não era a toa que chovia forte lá fora. O cheiro de chuva invadia o quarto da torre. Ainda não era noite, mas graças à grande quantidade de nuvens, o Sol fora completamente encoberto e mesmo às quatro da tarde, a impressão era de pelo menos oito.

- Não quer que eu lute contra Dart? – insistiu a humana.

- Pra quê? Pra ser morta por ele? Não pretendo perder essa luta por nada, humana. E se você não vencer Hebel, depois que eu derrotar Dart, serei eu quem lutará com ele. E não costumo poupar humanos.

Era essa a chantagem. Sabrina já esperava por uma. Não era má idéia. Precisava mesmo de um estímulo para lutar contra, mais que um aliado, um amigo. Ou o derrota, ou Sorah o mata. Muito tranqüilizante.

- Por que está tão ansiosa em lutar contra Dart? – questionou Sabrina após alguns minutos de silêncio.

- Não quero vencê-lo pelo simples motivo de me classificar nesse torneio. Quem sabe em outra ocasião eu me preocupasse com isso. Mas amanhã, se eu vencer, serei mais forte que ele.

- Isso não seria lógico?

- Na verdade nós estamos empatados. Nunca o venci duas vezes seguidas nem ele a mim. A última luta quem venceu fui eu.

- Vocês já tinham lutado antes?

Sorah riu e virou-se para o lado. Sentou-se na rede e deitou com a cabeça apoiada nas mãos.

Sabrina ainda esperou alguns segundos por uma resposta, até se convencer de que ela não viria.

- Eu vou… ver como Mirian e Nicka estão.

Sorah não disse nada. Logo, a humana virou-se e puxou a maçaneta. Ainda deu uma última olhada numa Sorah pensativa e fechou a porta atrás de si. Desceu degrau por degrau pensando no dia seguinte. Fora dispensada da aula para preparar-se psicologicamente. Por que até os guerreiros achavam que não poderia vencer? Por até ela achava que não poderia vencer?

Quando menos notou já estava na porta referente ao quarto de Nicka e Mirian. Bateu três vezes e entrou. Ao ver as amigas, seu rosto se encheu de sorriso. E todos esses pensamentos se afastaram dela.

 

                                                        ***

 

- Então… quem vai lutar com quem? – perguntou Hebel ao companheiro de luta.

- Se você quiser pode lutar com Sorah. Claro, se quiser morrer. Existe também uma grande probabilidade de eu acabar matando Sabrina e…

- Tudo bem! Já entendi, eu luto contra Sabrina e você contra Sorah. – afirmou Hebel.

Se não fosse pela chuva forte de fora, o silêncio teria tomado conta do aposento por pelo menos dois minutos. Era por esse motivo que Hebel odiava ficar naquele quarto e volta e meia fugia para o das meninas. Era extremamente chato ficar ali.

- Devo ganhar? – perguntou Hebel após pensar sobre o assunto.

Dart pareceu achar a pergunta ridícula.

- Claro que deve. Não pretendo as deixar prosseguirem só porque são aliadas nossas!

- Mas elas são guardiãs… - explicou-se Hebel.

- E só por isso têm que prosseguir? Se nós formos mais fortes é melhor para a vida delas que sejamos nós quem enfrentemos Nacknar e Nely na final. Humano, é melhor você vencer Sabrina. Caso contrário, quando eu vencer Sorah, serei eu quem irá enfrentá-la…

 

                                               ***

 

A noite foi tão curta quanto quando fazia lição atrasada aos domingos. No entanto, ainda preferia que a ocasião fosse esta. Sua luta abriria a segunda etapa do torneio. E enfrentaria um amigo. Como saber quem deve seguir em frente? Para Sorah tudo parecia tão claro… estava ansiosa por aquele dia. Por que não podia se sentir como ela?

Contando com esta e com a final, faltavam apenas três lutas suas para o término do torneio. Claro, se conseguissem chegar ao fim. Sorah não podia nem ao menos ouvir a palavra “se”. Mesmo nunca tendo vencido, apesar de já ter participado dezenas de vezes, estava convencida de que seria diferente desta vez.

Foi acordada pelo som dos monstros que já estavam no estádio impacientes pelo início da luta. “De quem foi a brilhante idéia de colocar os quartos tão próximos do estádio?”.

Sorah não estava no local. Imaginou estar atrasada. Nesse momento um relógio faz muita falta.

Dormira tão mal que só podia ser isso mesmo. Sorah deve estar furiosa a esta altura.

Vestiu-se correndo, tropeçando nas próprias roupas. Pegou sua espada e desceu as escadas sem se preocupar em tomar cuidado para não cair. Encontrou Nicka no meio do caminho.

- Sorah já está lá fora?! – perguntou Sabrina desesperada, já imaginando que a lifing mandara Nicka chamá-la.

- Acalme-se! Não devia estar preocupada. Quem está atrasada é ela!

- O que quer dizer?

- Sorah sumiu. Ninguém a viu desde ontem. Eu já tinha ido ao seu quarto pra ver se vocês estavam prontas, mas só vi você dormindo. Estava indo até lá de novo pra ver se ela já chegou.

- Se ela sumiu… como fica a luta?

- Basta que você lute primeiro pra dar tempo dela chegar. Caso ela não chegue Dart e Hebel vencem, mesmo que você vença Hebel. Não leu as regras do torneio não?

- Pra quê vou ler se você já as decorou?

- Melhor descermos pra pegar bons lugares. Ainda é cedo, nem todos os monstros chegaram.

Hebel apareceu atrás de Nicka e ficou paralisado ao ver Sabrina. Desviou o olhar e passou a mirar os próprios pés. Não disse nada. Logo se virou de costas e desceu as escadas. Sabrina também não disse nada nem avisou Nicka, que nem o vira.

  A partir dali eram inimigos.


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