A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 20
A força oculta


Notas iniciais do capítulo

Sorah surpreendendo de novo.



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A respiração de todos estava alta. Talvez devido ao ar pesado, ou quem sabe ao medo. Sabe-se que os dentes de Hebel batiam de nervoso sempre que olhava para determinada parte do piso daquela velha fábrica. Não era o único. Usar aquela passagem era realmente horrível. A respiração era quase impossível.

Sabrina tinha mais motivos que os demais para estar nervosa. Bastava olhar para Dart para que seu sangue subisse todo para as bochechas. Desistira de um antigo amor por ele, como se tivesse certeza de que acabaria com o lifing.

- E então… quem é o primeiro? – questionou Hebel.

- Eu vou. – adiantou-se Sorah – Sou uma guardiã agora. Portanto posso ir sozinha, pelo que sei.

Sem nenhuma objeção, Sorah saltou no pequeno declive do chão. Uma luz irrompeu nos fundos da fabrica abandonada e ela logo desaparecera no meio dela. Os olhos foram dos que restaram ao redor puderam ser finalmente abertos quando Sorah se foi.

Sabrina logo imaginou que Dart pularia em seguida, atrás da lifing, mas Hebel foi o próximo a se oferecer para seguir em frente, apesar do temor. Talvez quisesse provar que era corajoso. Somente se lembrou que não podia passar sem uma guardiã ao seu lado quando caiu no chão duro e empoeirado. Nicka foi quem ofereceu ajuda e os dois pularam juntos dessa vez, seguidos pela risonha Mirian, que continuamente ria da queda do humano.

Quando se deu por si, Sabrina estava sozinha com Dart na fábrica escura. Quão curtos foram esses pequenos segundos… apesar disso, a respiração acelerada da humana deram a serem notados pelo lifing. E tudo que podia ser ouvido no silêncio, era a inspiração de Sabrina. Talvez, Dart, com sua audição privilegiada, também pudesse ouvir as batidas aceleradas de seu coração.

Ele olhou para a humana e sorriu, tombando a cabeça para o lado, como se disesse, “vamos?”. Claro que ela teve certeza de que a partir de então, ele podia perfeitamente ouvir seu coração, que se disparou a bater mais rápido. Aparentemente ignorando o fato, Dart lhe estendeu a mão. Um tanto trêmula, Sabrina e o lifing deram as mãos e iniciaram juntos a contagem regressiva para logo depois, saltarem na passagem.

A humana não soube bem explicar o motivo, não saberia ou não teria como responder porque, mas simplesmente lhe pareceu muito mais agradável esta viagem que as demais. Praticamente não a sentiu... Tudo que percebeu foi a mão quente de Dart na sua, e uma leve falta de ar, muito diferente da que sentia viajando para a Ilha Eid. Fora, além de melhor, mais rápida. Não demorou para que percebesse que estava novamente no chão daquele lugar estranho, chamado ilha Eid. No fundo de uma cratera.

Nicka já havia percebido antes dos demais chegarem: Sorah estava estranha naquele lugar. Olhava para os lados curiosa, ou talvez com certo receio. Dart até iría lhe perguntar o motivo assim que percebeu, se também não tivesse começado a agir da mesma forma.

- Há algo de errado? – perguntou Hebel por todos os demais.

- Uma energia muito poderosa tentando se ocultar… - respondeu Dart sem deixar de ter os olhos fixos no nada. – Mas não dá pra saber de onde vem… É uma força inacreditável…

- Vamos para a torre. – mandou Sorah dizendo algo pela primeira vez. Tinha a voz distraída, como se houvessem coisas mais importantes para se pensar do que no que dizer, interrompendo as possibilidades que se formavam na cabeça dos demais.

A lifing olhou para trás uma última vez e caminhou na frente em direção à cede do torneio. Nicka foi a primeira a seguí-la. Os demais ainda tentavam compreender o que estava acontecendo quando se deram conta de que tinham de ir atrás das duas. Apertaram o passo até alcançá-las e o grupo todo andava junto novamente pelo mundo estranho, porém muito mais normal que o de que acabaram de sair. Ao menos, muito mais familiar.

Antes de subirem pelas escadas de madeira, mais gastas que nunca, Dart e Sorah se viraram juntos subitamente para a direção de onde vieram. Em seguida, olharam um para o outro. Hebel havia notado que durante o percurso até ali, estavam distraídos, pensando longe. Mas agora estavam assustando a todos com a própria preocupação.

Sorah se virou para os humanos, tentando sem sucesso esconder o receio no rosto.

- O que Belthor disse sobre vir pra cá?

- Disse que não estaria aqui. – lembrou-se Sabrina –Que tinham compromisso com a escola.

Sorah pareceu murmurar alguma coisa, mas logo voltou-se para Dart e para os demais logo depois de confirmar algo em seu rosto.

- Depois de sentir o grande poder, senti também a energia de Belthor. Não sua força, mas sua presença. Como se tentasse ocultá-la da mesma maneira que o outro poder. Logo depois, este poder desapareceu, e se tornou apenas uma presença, tal como a de Belthor.

- E o que isso significa? – perguntou Hebel, sem conseguir relacionar os fatos.

- A presença era de Íris.

- Então… o que devemos fazer agora?

- Treinar pra luta de amanhã. É o melhor que se tem a fazer no momento. Depois investigamos isso.

 

Tal como se a luta fosse contra Nacknar e Nely Ferius, Nicka e Mirian treinaram até tarde da noite. Era a primeira luta das mesmas no torneio e estavam se esforçando ao máximo para vencer com o mínimo de dificuldade. Contra Ogun e Nagun, ambos do reino de fogo. Era impressionante como a grande maioria dos participantes era deste reino.

A noite passou rápido, uma vez que foram acordados muito cedo pelo conhecido som da multidão entrando e se acomodando nas arquibancadas. Este barulho todo, mais do que nunca, fez o estômago de Nicka e Mirian dar uma cambalhota. Muito maior do que quando Mirian se lembrava de que tinha de entregar um trabalho não feito naquele dia.

Não fazia muito sol. As nuvens escuras indicavam que mais tarde chovesse. E alguns trovões já eram ouvidos, misturados ao som da multidão.

As humanas estavam muito ansiosas, apertavam as mãos que suavam frio. Olhavam pela janela o número crescente de lifings entrando. Afinal, eram uma dupla de seres da raça que esses monstros mais odeiam. O que poderia se esperar? Que torceriam para o grupo oposto. Que as vaiariam, que implorariam para que o adversário as matasse. Isso era muito lógico, mas nenhuma delas queria pensar no assunto. Foi só quando Sabrina abriu a porta, um tanto preocupada que elas realmente começaram a se preocupar. Nicka ainda tinha bastante experiência em luta contra lifings, mas Mirian nunca enfrentou um sozinha.

- Estão bem? – perguntou Sabrina, receosa – A luta já vai começar, é melhor se apressarem.

- Sabemos disso… - avisou Mirian de cabeça baixa – Torça por nós.

- Isso é meio óbvio… mas tudo bem, vamos logo antes que não haja mais lugares.

Sabrina teria dado a mão à Mirian para descerem as escadas se elas não fosse demasiado estreitas. A humanas só não estava mais nervosa que sua amiga. Nicka a lembrou de que os outros haviam ganho, que não havia com o que se preocupar. Deveriam lutar com toda força, para poder enfrentar Nely e vencê-lo de uma vez.

Com as espadas recentemente ganhas em punho, as duas lutadoras entraram no estádio quando todos os demais monstros já estavam acomodados, inclusive seus amigos. O coração parecia se encher do ruído que todos os lifings faziam, vaiando-as, principalmente quando seus adversários entraram, logo atrás delas.

Tinham a pele escamosa, de um vermelho escuro. Sabrina não pode deixar de notar, que todos os cidadãos do reino de fogo tinham a pele um tanto alaranjada, alguns, como este adversário de Mirian e Nicka, tinham a pele completamente vermelha. E as escamas, grossas e brilhantes, também eram uma característica a ser notada nos indivíduos daquela parte do território lifing. Já os que vieram do reino pertencente à Sorah, têm a pele clara, ainda mais que a de da própria rainha. Gaulis por exemplo, tinha as veias azuis claramente expostas sob a pele quase transparente. Apenas Sorah, que praticamente não havia visto o próprio reino era um pouco mais corada. Dart era o mais normal dali. A explicação mais lógica encontrada era que, uma vez que no reino de fogo, o sol é muito forte, a pele tem que ter as escamas para protegê-los, além de terem a cor característica. Já na parte do território onde a noite predomina, a de Sorah, os habitantes quase não são expostos ao sol, ou são muito pouco. Logo, sua pele é sensível e clara. A não ser a da rainha, que não estando sobre essa influencia, ainda possuía pele mais escura, porém considerada pálida. Dart, rei do território Antigo, é mais normal por seu reino possuir características similares ao dos humanos.

Ambos os adversários eram bem parecidos, e vestiam armaduras inteiras de metal, sem tecido algum. Levavam um bastão de pelo menos uns quinze quilos pra mais, com pregos afiadíssimos, na mão esquerda, porém, apoiados no ombro, devido o peso. Não tinham cabelo, apenas escamas no todo da cabeça. Na cintura, estava preso um tipo de algema. Olhavam de forma agressiva. Eram os primeiros adversários sem um típico sorriso ameaçador no rosto. Talvez os demais achassem ridículo terem de provar serem mais fortes que uma humana, mas estes ou levavam a sério, ou simplesmente odiava a presença de alguém daquela raça em sua frente.

Não importava quem começasse, ambos pareciam ter a mesma força. Talvez fossem até gêmeos. O que não mudava nada. Por isso, Nicka subiu primeiro no tatame, para encorajar Mirian.

A Juíza mandou que os dois lutadores se aproximassem e fez o mesmo discurso de sempre. Enquanto isso, alguns metros dali, Hebel era o único a reconhecer aqueles dois homens. As algemas penduradas eram a maior prova daquilo: eram guardas responsáveis por capturar escravos humanos e levá-los ao reino de fogo. Lembrara-se perfeitamente de quando sua família toda fora capturada. Uma cena que se cravara em sua memória e nunca mais saiu. Apenas o deixaram ali, pois além de pequeno, também era fraco demais para os serviços. Se Nicka ou Mirian perdesse, certamente seriam levadas. Até tentara avisá-las, porém seus gritos foram abafados pela multidão, e nem mesmo Sabrina que estava ao seu lado o escutou.

Nicka sabia batalhar bem. Treinara muito tempo com Flertis e esta era sua primeira chance de provar que dera resultado tudo o que passou. Empunhando a espada, encarou o lifing de pelo menos uns dois metros e pouco e começou a rodeá-lo, assim que a Juíza mandou-os iniciarem a luta, procurando um ponto fraco. Porém, apesar de parecer muito pesado, o bastão com pregos parecia poder acertá-la a qualquer momento, devido à força do monstro. Mesmo que ele o deixasse apoiado no ombro tamanho o peso, os braços daquele lifing davam a entender que quando quisesse, ousaria de muita agilidade para acertar um inimigo com o bastão.

Mirian soltou um grito sobreposto pelos berros da multidão quando Nicka teve de usar mais do que habilidade para fugir de um ataque surpreendentemente rápido e repentino.

Sem se importar muito, ou ao menos mudar a expressão agressiva do rosto, o monstro colocou o bastão de volta sobre o ombro e virou-se para a humana que quase acertara.

- É uma mulher, mas vai servir… - comentou consigo mesmo – Eu pensava em matá-la para não perder tempo, mas isso seria desperdício. Vou levá-la como escrava ao Reino de Fogo.

As palavras, alguma forma, deram à Nicka a sensação de repugnância. Milhares de humanos, separados de suas famílias, trabalhando sob condições insuportáveis. Sob o Sol forte de um lugar onde a água é escassa. Sem ganhar nada por isso. Como se viver não fosse uma opção. A chance de se libertar e reencontrar parentes é praticamente inexistente. Esperança acaba se tornado uma palavra a qual não sabem o significado. Nicka não tinha reconhecido, mas agora identificara os dois como guardas do reino de fogo, com a missão de procurar escravos humanos fortes para suportar mais tempo vivo sob condições extremas. O torneio era um ótimo lugar para encontrar esses tipos.

- Vou derrotá-lo por isso!

- Por eu querer te levar? – riu o monstro – Não seja tola… isso não muda o resultado de uma luta.

- Forte é aquele que tem um motivo para não ser fraco! – gritou Nicka, fazendo surgir cipós de seus dedos. Seus olhos brilharam, tal como a esmeralda de sua espada.

Sabrina se levantou de onde estava e esticou o pescoço para ver melhor o que ocorria com sua amiga. Todos no estádio pareciam ter se esticado para ver o que estava acontecendo. Os cabelos de Nicka estavam agitados, como se uma forte ventania a envolvesse.

O lifing ergueu a face e preparou o bastão. Assim que os cipós da humana foram lançados como um chicote, o coração de todos nas arquibancadas pareceu dar um pulo. Os momentos passaram-se tão devagar que quase se podia ver os movimentos das armas de ambos os lutadores. O que levou a criar uma ansiedade incomum para saber o que havia acontecido.

O bastão foi envolto pelos cipós antes que chegassem a atingir o monstro. Com um puxo mais forte, eles foram facilmente rompidos e voltaram para a mão de sua dona.

- Acontece que eu também tenho motivos para ser forte. – avisou o guarda.

- Então estamos num impasse. Que vença o que tiver motivos mais nobres! –gritou Nicka, correndo em volta do monstro para mudar o ângulo de onde arremessaria os cipós.

O monstro simplesmente riu e aceitou o desafio, certo de que a humana compensaria o esforço. Porém, era uma rebelde em potencial. Não aceitaria facilmente ser presa à algemas e precisaria de guardas especiais para vigiá-la. Apesar de tudo, era raro encontrar mulheres jovens e fortes como ela. Se bem que Ogun estava muito mais interessado em simplesmente lutar do que concluir o objetivo pelo qual está ali. Queria mesmo conhecer o poder da humana e aceitá-la como desafio para sua própria força.

Ogun seguiu-a com os olhos até ela lançar os cipós em sua direção. Novamente se defendeu com o bastão, desta vez apenas socando-os com força fazendo-os em alguns pedaços. O comprimento restante sumiu de volta nas mãos de Nicka, que os reconstruía sempre que podia.

A humana continuava correndo em volta do monstro sem parar, atirando os cipós sempre que via alguma possível brecha. Já Ogun, apenas girava sem sair do lugar, para acompanhar os movimentos de sua adversária, com o bastão no ombro. O que lhe dava a falsa impressão de vulnerabilidade.

- Pode atacar o quanto quiser, humana. Assim que eu me cansar disso, você vai cair. – alertou o monstro.

Apesar de seus olhos terem demonstrado um pouco de susto, Nicka continuava com a mesma estratégia que não mostrava dar algum resultado.

Numa última tentativa, da mesma forma que das outras vezes, os cipós de Nicka enrolara-se no bastão de Ogun. O lifing, provavelmente cansado dos ataques, como havia avisado, puxou a humana em sua direção e usou o punho desproporcionalmente grande para acertá-la. Porém, Nicka soltou os cipós da própria mão para não chegar até ele, caindo no chão. Apesar de ter ficado próxima o suficiente para que um pedaço de pedra do tatame voasse em seu rosto com o atrito do punho de Ogun, ela não foi atingida. Mas pouco abaixo de seu olho direito havia um corte profundo feito pela pedra que a acertara.

A dor a fez levar à mão ao rosto imediatamente. Mas logo a ignorou, apenas para não dar esse gosto ao monstro. Levantou-se e pôs se em posição de ataque novamente.

- Sem dúvida é uma humana muito forte. – comentou Ogun analisando-a enquanto colocava o bastão de volta sobre o ombro. – Mas ainda assim, é só uma humana.

- Cale-se! – Nicka estava realmente furiosa ao mandá-lo parar de dizer aquilo de sua espécie.

Lançou novamente seus cipós, com um plano melhor em mente.

Ele os defendeu, como fazia sempre. Eles se enrolaram no bastão e logo foram cortados. Mas já era tarde demais para que Ogun notasse que o plano não era atingi-lo, mas prendê-lo. Enquanto ele se preocupava em destruir os fios que vinham na direção de seus olhos, Nicka já lançava outros, na direção de suas pernas. Rapidamente envoltas, foi fácil que o monstro perdesse o equilíbrio, principalmente carregando o bastão. Ele agitou os braços o quanto pode para não cair, mas foi inútil. Logo seu pesado corpo chocou-se contra o chão.

Com sua espada nas mãos, Nicka correu até o lifing e apontou a lâmina para o espaço entre seus olhos a poucos centímetros de encostar-se a sua pele escamosa.

Na mais estranha situação, Ogun riu. Antes que Nicka pudesse perguntar o motivo, ele lhe respondeu:

- É ótima a sensação quando pensamos que a luta já acabou, não é? Principalmente quando somos nós quem ganhamos.

- Como pode ver, as coisas mudam em poucos segundos. – concordou Nicka.

- Ah, mas eu não estava me referindo a mim… estava me referindo a você, jovem humana. E então? Como é pensar que ganhou só porque tem um a espada apontada para o rosto do seu adversário?

- Bem melhor do que a sensação que você vai ter quando essa espada chegar no seu cérebro.

Ogun riu profundamente até se cansar, dando-se o direito de irritar ainda mais Nicka. Assim que não viu mais graça naquelas palavras, a humana não viu mais nada além do tatame e uma forte dor na cabeça.

Pouquíssimas pessoas puderam ver exatamente o que havia acontecido. Muito menos quando Ogun deu uma rasteira em sua adversária e pôs se de pé. Chutou sem muita força a cabeça da jovem e pisou sobre suas costas, para impedi-la de se levantar.

Nicka fez força para abrir os olhos, pois a dor era muita. Já não tinha forças para tentar escapar dali e o monstro provavelmente sabia disso, pois tirou seu peso de cima dela e a virou, para que olhasse diretamente em seus olhos. Ergueu o bastão no ar, preparando-se para acertá-la com os milhares de pregos que certamente perfurariam seu crânio, causando morte imediata. Não haviam maneiras de sair dali. Nem de parar o ataque. Muito menos de sobreviver.

De onde estavam, seus amigos se levantaram e tiveram de se conter para não ir até lá. Sabrina já estava saindo da arquibancada quando foi parada por Dart.

- Não vai ajudar desclassificando-a. E muito menos chegará a tempo.

Sabrina teve seus olhos tomados por lágrimas e voltou a face até ela, tal como todos.

O estádio todo era um grande caos. Uma maioria esmagadora de lifings gritava não pelo nome de Ogun, muito menos pelo de Nicka. Mas simplesmente gritavam em coro “SANGUE! SANGUE! SANGUE! SANGUE!”

Mirian fechou os olhos e tampou o rosto, já tendo lágrimas escorrendo e tomando seu rosto. Nicka fazia o mesmo, apenas para não ver os pregos se aproximando de seu crânio. Um trovão demasiado forte sobrepôs o som da multidão. Viera logo após um raio que iluminou o estádio escuro devido à falta de Sol.

 

Um baque seco. Um grito. Silêncio no estádio. Sabrina descobriu os olhos. Mirian apenas abriu algumas brechas entre os dedos.

Ogun havia soltado o bastão no chão, desistindo de matar Nicka. Esta, gritara pois certamente tinha-se como morta. Apenas quando abriu os olhos e viu o monstro que antes estava a ponto de matá-la dando-lhe a mão para que se levantasse foi que teve certeza do que havia acontecido.

- Por que você…?

- Minha missão é levar escravos ao meu reino. – explicou Ogun – Mas levar uma humana que tem tanto para se fortalecer é injusto. Então te mataria para não ter que levá-la. Mas… isso seria uma idiotice. Eu odeio humanos porque eles são fracos. Para mim só servem mesmo para trabalhar. Você não é tão forte hoje, mas vai se tornar um dia. Portanto, é incompreensível que eu te mate. Deve ter um motivo para estar aqui. Eu venci, mas espero que os seus sejam mais nobres que os meus. Tenha-se como vencedora.

A essa altura, os monstros estavam rugindo irritados. O estádio parecia estar a ponto de se autodestruir. O barulho era insuportável.

Ogun caminhou até a Juíza e falou algo com ela, que mais ninguém pode ouvir. Mas pode compreender com os próximos atos da mesma. Ela foi até Nicka e ergueu seu punho direito, anunciando como vencedora. O lifing saiu do tatame de cabeça baixa, sem se importar com mais nada. Mirian entendeu que ele havia desistido e foi agradecer.

- Sua amiga está salva. Mas e quanto à você? – foi a única coisa que ele disse.

Um pouco mais a frente, Ogun passou por seu parceiro de time, Nagun. Que parecia estar mais nervoso do que todos na arquibancada. Falava tão alto que foi possível para Mirian ouvir suas broncas, mesmo que bem abafadas.

- Ela era a humana mais forte que encontramos até agora e você à deixa ir? O que você tem na cabeça, seu idiota?

- Uma coisa que você não tem, Nagun… cérebro.

- EU vou até lá e prender aquela humana. E não me diga para não fazê-lo.

- Eu não disse absolutamente nada. Vá em frente.

Nagun caminhou apressado até o tatame, muito diferente do estado em que se encontrava Mirian – no momento ajudando Nicka a sair do ringue o mais devagar possível para adiar a luta. E só acabou indo até o centro do tatame quando a juíza lhe mandou que o fizesse.

Durante o período que o discurso das regras foi feito como de costume, um garoa fina se iniciou. Ao término deste, a chuva já havia se intensificado um pouco.

Mirian sentia a água cair sobre sua cabeça e encharcar seu cabelo castanho. Longos e tensos segundo se passaram em silêncio, somente ao som da chuva. Ninguém podia ver direito o que estava acontecendo no centro do tatame pois a chuva forte prejudicava a visão. Um raio iluminou o local por curtos décimos de segundos e foi seguido por um fortíssimo trovão. Graças à distância, ninguém notou que algo mudara no rosto de Mirian. Estava mais séria que de costume, e o cabelo encharcado cobria seus olhos baixos. Seus punhos se fecharam com força nos últimos instantes em que a paz reinou no tatame. Ao anunciar o início da luta, os uivos de fúria voltaram a fazer parte daquele cenário novamente, junto ao ataque explosivo de Nagun que, tamanha a velocidade, fez a água que já se acumulara ali se erguer numa parede fina atrás de si.

Sabrina prendeu a respiração e apertou o pano de sua calça com força. Porém, Sorah que estava ao seu lado, estava de mãos e pernas cruzadas, apoiada no banco de trás, sem o mínimo de preocupação. Dart também não parecia muito preocupado.

- Esse Nagun – sussurrou Sorah, que fez Sabrina se esforçar para ouvi-la – vai morrer em poucos segundo. – a lifing baixou os olhos, como se estivesse se preparando para dormir – É um idiota.

Sabrina se surpreendeu e voltou a olhar para o tatame, ainda que não conseguisse ver muita coisa.

Mirian levantou levemente os olhos quase castanhos na direção do monstro para analisar seus movimentos. Sorriu de forma ousada e permaneceu imóvel no mesmo local enquanto o monstro de aproximava rapidamente com o punho que segurava o mesmo bastão de Ogum, levantado pronto para acertá-la.

Sabrina pôs a mão na boca e soltou um grito agudo. Hebel levantou-se de onde estava e quase caiu sobre as arquibancadas seguintes, abaixo dele. Apenas Sorah e Dart permaneceram quietos. O lifing havia acertado em cheio o corpo de Mirian com o bastão cheio de pregos.

 

A imagem estava tão embaçada que tudo que podia ser visto – Sabrina agradeceu por isso – era uma grande quantidade de um liquido esparramando contra o chão. Hebel não podia acreditar nisso. Nicka soltou um grito de onde estava. Via Mirian morta em sua mente.

Nagun riu alguns segundos, de olhos fechados, após ter acabado de ouvir o som do que tinha certeza ser sangue caindo no chão e até molhando seus pés, enquanto o estádio fez silêncio, para tentar ver o que havia acontecido.

- Eu esperava que fosse mais rápida e que desviaria do meu golpe. Queria muito levá-la ao Reino de Fogo mas… parece que você teria sido inútil. Huma…

Suas palavras foram imediatamente contidas quando o lifing sentiu algo fazendo pressão em seus grossos calcanhares. Olhou para trás, mas teve que baixar a cabeça para poder ver Mirian, inteira, agarrando suas pernas.

- Mas como você…?

Mirian sorriu sem dizer nada e levantou-se. Sabrina sentiu uma felicidade e um alívio enorme tomarem conta de si, apesar de não ter entendido muito bem como era possível que Mirian ainda estivesse viva, se a viu sendo atingida.

Sem hesitar, Nagun virou-se com grande velocidade e atingiu a humana novamente com o bastão, na mais pura raiva. Só então todos puderam entender, ao ver o corpo sólido de Mirian transformar-se em água pura e esparramar contra o chão já molhado pela chuva, como ela escapara do golpe.

Sabrina deu um soco no ar de comemoração e teve de se conter para não gritar o nome da amiga.

 Mirian se recompôs alguns metros dali e ficou olhando, sem o mínimo de preocupação, a face irritada de Nagun, como um cachorro ganindo por um osso que lhe foi roubado. O mais estranho, era que a espada que recentemente havia ganho, derretia-se e também virava água, junto da humana.

- Ora, sua… - ameaçou o lifing.

No entanto, seus movimentos foram paralisados. Nagun simplesmente não conseguia sair do lugar, não importava a força que fizesse. Mirian não pareceu se surpreender. Havia quatro vultos humanóides sem face, feitos de água, abraçando os braços e pernas do lifing, o que tornava qualquer esforço de se soltar, inútil. Àquela altura, os lifings do estádio já voltavam a fazer o mesmo barulho ensurdecedor por si só. A chuva e os trovões constantes apenas pioravam a audição além da visão.

Mirian mirou a espada na face de Nagun, ameaçadoramente. Sorah franziu a testa. Queria impedi-la de matar por algum motivo. Talvez para que não passasse pelo mesmo trauma que passou e que inevitavelmente, Sabrina também viveu recentemente. No entanto, poupar o monstro seria possibilitar que outros humanos fossem levados como escravos. Mirian murmurou algumas palavras enquanto mantinha a ponta da espada à dois centímetros do nariz do lifing imobilizado.

- Desista. – mandou Mirian – Você sabe que não tem escolha.

Nagun ganiu olhando diretamente nos olhos de Mirian e tentou uma última vez se libertar. Mas o esforço continuava sendo puramente inútil. Baixou a cabeça e disse algo num murmúrio simplesmente inaudível. A Juíza se aproximou e pediu que repetisse. Mas ele não aumentou o volume da voz suficientemente para que suas palavras fossem claras, misturadas às vaias e aos trovões. Novamente, a Juíza mandou-o repetir.

- EU DESISTO! – gritou Nagun.

Mirian podia sentir as veias no pescoço do lifing pulsando de raiva enquanto guardava sua espada. Nagun deu um soco no chão forte o bastante para quebrá-lo sob seu punho, que começou a sangrar. Fora do tatame, Ogun balançava a cabeça negativamente. Cruzou os braços e caminhou em direção à saída do estádio, sob total vaias.

Sabrina e Hebel desceram num pulo das arquibancadas e correram até Nicka e Mirian. Já Sorah e Dart, saíram sem muito se preocupar em ver se estavam bem. Um seguindo o outro, deixam o estádio junto aos monstros que também já iam embora.

Sabrina, afobada, não sabia quem abraçar primeiro. Levantou Nicka e pediu a Hebel que ajudasse Mirian a descer do tatame. Se bem que ela não estava nem um pouco machucada para precisar de ajuda. Deu-lhes os parabéns e as encaminhou à saída. Nicka não disse nada, muito menos agradeceu os cumprimentos de Sabrina. Não estava tão mal para não conseguir falar. Na verdade, já podia até caminhar sozinha. Sua face era inexpressiva. Baixou os olhos e se livrou de Sabrina, para correr em direção à saída. Só parou quando bateu a porta do quarto atrás de si.

- O que deu nela? – Assustou-se Hebel, tentando ver se Nicka parara na saída para esperá-los.

- Como é que eu vou saber? – Retrucou Sabrina.

Mirian disse-lhes que iría procurar pela amiga e correu na mesma direção que ela. Deixou Sabrina e Hebel a olharem um para o outro. Gritaram um tanto atrasados para que os esperassem e também correram para a torre.

 

- ME DEIXE EM PAZ!

- Nicka, nós vencemos! O que aconteceu com você? – perguntou Mirian.

Nicka tinha o rosto coberto por lágrimas. Sentia vergonha de si mesma, queria morrer, voltar no tempo, consertar tudo o que tinha feito de errado.

- VOCÊ venceu! Eu não! Eu perdi! Será que você não viu? Foi humilhante! – atacou Nicka.

Mirian sentiu algo atingir-lhe no momento em que compreendeu a tristeza da amiga. Baixou os olhos e não sabia o que dizer.

- Eu treinei minha vida inteira! – Berrou Nicka, nervosa - Orgulhei Flertis e tudo o que eu fazia era consciente de que não podia perder! O que ele diria se tivesse assistido a luta? – suas lágrimas já escorriam sem controle algum – Você treinou menos de um ano e venceu sem um único arranhão! E tem quatro anos a menos que eu!

Mirian sentia-se culpada pela dor da amiga. A chuva ainda caía lá fora violentamente. Os raios iluminavam o quarto por segundos. As lágrimas refletiam o brilho momentâneo. Nicka se sentia fraca e impotente. E nada que a amiga disesse mudaria isso.

A maçaneta da porta se virou lentamente. Ambas as humanas presentes no aposento se viraram para ver quem entraria. A porta se abriu e Sorah ficou ali parada na soleira, olhando para as duas. Atrás dela, Sabrina, Hebel e mais próximo Dart, com os olhos sempre inexpressíveis.

- Fez uma ótima luta… - elogiou Sorah sem muito sentimento na voz. Talvez tivesse até um som de ironia aos ouvidos humanos.

Essas palavras fizeram o coração de Nicka esmoler. Até Sorah, uma lifing, veio elogiar a vitória perfeita de Mirian. Porém, ela caminhou pelo quarto, impedindo os demais de entrarem, passou por Mirian e pôs a mão no ombro de Nicka.

-… Nicka. – completou.

A humana tomou expressão perplexa, diante da lifing que permanecia sem nenhum sentimento expresso no rosto.

- Mas eu… perdi… - indagou Nicka.

Sorah fez sinal para que os demais saíssem e as deixaram a sós logo em seguida. Foram para o quarto de Hebel e Dart.

Uma última lágrima escorreu pela face de Nicka e pingou na mão da lifing, que permanecia com esta no ombro da humana.

Sorah mirou a lágrima que corria pelas costas de sua mão, desviando os olhos da humana. Levou a mão a poucos centímetros dos olhos e começou a falar, sem tirar os olhos da lágrima.

- Está chorando porque perdeu, não é?

Nicka pensou um pouco na resposta e balançou o rosto afirmativamente, nervosa. Outra lágrima ameaçou escorrer de seus olhos vermelhos. Sorah riu, equilibrando a gota na mão.

- Não tinha como você vencer naquelas condições. – avisou a lifing, sem sentimentos na voz - Mesmo assim, você o fez.

- Do que está falando? Eu perdi!

- É você que diz isso. – retorquiu Sorah rapidamente.

Nicka ainda não via porque Sorah ainda brincava com a gota em sua mão, mas lhe respondeu, nervosa e segurando-se para não voltar a chorar.

- Você não viu? Ele ia me matar! Se quisesse teria me matado.

- Isso faz diferença? Você também tinha a espada mirando o rosto dele segundos antes.

- Mas ele reverteu a situação! – gritou Nicka, descontrolando-se. – Você viu perfeitamente!

Sorah riu.

- Nicka, nota-se que você, apesar de ter treinado a vida toda, é muito inexperiente. Essa é uma das nossas diferenças. Eu nunca quis orgulhar meus mestres. Nunca me fortaleci para outras pessoas ficarem felizes por mim. Tudo que fiz foi o que eu achei certo. Eu nunca fui a queridinha do professor. Já você… Flertis te impedia de enfrentar lifings pois tinha medo de perdê-la. Quando eu fui treinada por ele, o maldito lutava ele mesmo contra mim, usando toda sua força. Para me matar se tivesse sorte. Isso só me tornou muito mais forte. – Nicka ouvia tudo como uma espada sendo fincada em sua cabeça – Quanto a você ter a espada mirada no rosto dele… É claro que ele reverteria. Numa luta em que se tem os poderes praticamente igualados aos do adversário, na primeira oportunidade, deve-se vencer a luta, e não pedir para que desista. É isso que define um vencedor de um perdedor nesses casos. Se você tivesse pelo menos o deixado inconsciente quando teve chance, teria vencido. Ele sabia perfeitamente disso.

Nicka recomeçou a chorar, ignorando completamente que Sorah ainda não a olhava de frente, mas permanecia equilibrando a lágrima na mão.

- Mas Mirian venceu sem um único arranhão! – desesperou-se a humana.

- Qual é seu elemento?

Nicka não compreendeu o sentido da pergunta.

- Perguntei qual é seu elemento.

- Te-terra. – respondeu hesitante.

- De que era feito o tatame?

- O QUE UMA COISA TEM A VER COM A OUTRA? – gritou Nicka.

- Apenas me responda. – Pediu Sorah, sem se importar com a alteração na voz de Nicka.

- Não sei… Pedra, eu acho…

- Blocos de pedra e ossos compactados. Se fosse feito apenas de pedra, você teria vencido. É claro, se soubesse como aproveitar a oportunidade.

Nicka entendia cada vez menos o que Sorah estava dizendo. Começara a ficar nervosa.

- O que você quer dizer com isso?

- Mirian só venceu porque começou a chover e seu elemento é água. Seus poderes aumentaram, até mesmo sua velocidade aumentou. Sua capacidade de raciocínio estavam elevados demais para que perdesse. Acha mesmo que aquela idiota pensaria em se transformar em água no meio da luta se não estivesse um tanto mais forte e inteligente que é? Óbvio que não. Teria começado a chorar e implorar pela vida antes de pensar em qualquer estratégia. E o monstro, idiota, só possuía ataques físicos. Só podia atacar corpos, mas não líquidos ou qualquer outra coisa. Claro que eu poderia destruir Mirian mesmo que ela se transformasse em água. E quem sabe até você. Tudo depende do seu elemento.

- Do meu… elemento…?

Sorah caminhou até ela, equilibrando a lágrima nas costas da mão e lhe esticou para que visse o que faria a seguir.

- Se eu usar magia sem inteligência, o resultado é péssimo.

Sorah demorou três segundos para transformar a pequena lágrima em gelo, porém, ela logo voltou ao estado liquido.

- Porém, se eu conhecer minhas capacidades e raciocinar durante a luta, o resultado é perfeito.

Desta vez, a lifing estendeu a outra mão em cima da lágrima e fechou os olhos. Nada aconteceu. Em seguida, passou dois dedos alguns centímetros acima da gota, que automaticamente se transformou num lindo cristal de gelo em forma de lágrima, que não se derreteu nem mesmo quando Sorah o jogou na mão de Nicka, ainda pasma.

- O que você fez…?

- Magia de verdade.


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