Handfasting - A Loba E Uma Nova Promessa escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 4
A Loba e a União Sagrada


Notas iniciais do capítulo

Capítulo FINALMENTE concluído e pronto para ser lido. Espero que os eventuais leitores apreciem.



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"De noite,

Nessas noites mornas e lentas,

Iluminadas pela lua morna e sensual,

Quando as flores se abrem languescentes,

De corolas abertas, carnais,

Como corpos que se entregam

Vou, como uma deusa pagã em desvario,

De narinas dilatadas,

Procurar o excitante odor da tua pele.

A boca sedenta, quer beber-te no ar em brasa...

Ávido o olhar, busco encontrar-te

Nas trevas que m'envolvem...

Vejo-te em cada sombra que se adensa...

Ouço no canto das fontes,

A tua voz, que desconheço...

Tem o langor deste desejo que voa até ti...

Quebro de raiva os ramos que me ferem,

Sôfrega dos teus beijos...

Piso... Mastigo as folhas secas que m'acolhem

Com a ilusão de morder-te a carne ardente...

Depois, caída na realidade da minha solidão,

Clamo por ti...

Berro na noite teu nome d'amor...

Aperto em meus braços a forma do teu corpo

E mergulho meus lábios nessa imagem,

Soltando uivos de prazer e desespero..."

Sonho Pagão by Vera Lúcia Kalaari/Portugal

**********************

– Horo! Não seja louca, está congelando aqui! - exclamou Lawrence, que se mostrava apreensivo em defender a mulher-loba (de hábito, tão friorenta em sua forma humanoide) de si mesma, de sua própria tolice descuidada, ou ao menos assim lhe parecia.

– Erga os braços para a Lua - disse Horo - e recite as seguintes palavras: "Que a Mãe de Tudo me abra as portas do espírito. Que eu possa trilhar a estrada de prata da Lua. Que eu nunca esteja sozinho. Que a Loba Sábia seja minha fiel companheira de vida."

– Mas Horo...

– Faça!

Lawrence fez conforme ela instruiu. Palavra por palavra.

– Agora diga em alto e bom som: "Sábia Loba Horo, eu a conclamo."

De novo, ele obedeceu.

Agora nua da cintura para cima, à exceção do pequeno saquitel de couro pendurado no pescoço, Horo apenas aproximou-se dele e apertou-o estreitamente entre seus braços alvíssimos, fazendo-o sentir todo seu calor. Seu corpo esguio estava tão quente que parecia estar febril pelos padrões humanos. Sou uma inextinguível fogueira em brasa. Ela sabia o quão grande devia ser a surpresa de seu companheiro; embora ele próprio já houvesse desfrutado da tepidez do corpo dela, comparável à de uma criança, em outras ocasiões, ao dormirem abraçados, enrolados na cauda de Horo. Mas mesmo desconsiderando-se a cauda, seu corpo funcionava como um aquecedor natural por conta de um metabolismo acelerado. E esse metabolismo estava mais intenso do que nunca. Ela ofereceu-lhe um sorriso e sem dizer uma palavra, recuou e começou a se desfazer do resto das roupas que ainda usava.

"Todos esses dias na estrada... sem possibilidade de higiene corporal adequada por parte do meu companheiro... desmanchando-me em carinho... Tudo em antecipação desta noite!"

No plano imaterial - no quarto nível do campo de bioenergia - grandes correntes de bioplasma cor-de-rosa saíam de seu campo áurico e fluíam em suaves ondas para tocar o campo áurico de seu companheiro, gerando ação recíproca do mesmo.

"Para iniciar um ritual de acasalamento", Horo disse de si para si, sem o menor pudor. E sua alma de lobo agitou-se dentro dela.

Durante centenas de anos, Horo em sua forma etérea lançara mão de seus poderes de termocinese e atmocinese - manipulando a energia térmica para aquecer ou resfriar o local, controlando correntes de ar a fim de criar chuvas finas para fertilizar a terra - em conjunto com suas habilidades fitogênicas e fitocinéticas, tendo por finalidade fazer crescer as colheitas de Pasloe. Mas seu controle termocinético na forma "humana" era deficiente, pela simples razão de que havia séculos que Horo não usava essa forma física, até conhecer Lawrence. E se não se pratica, esquece-se. Por este motivo, sua forma humaniforme padecia com o frio. Estava na hora de reaprender a empregar corretamente o poder de controlar a temperatura não só do corpo como do ambiente. E para tanto, usando a presente forma humanoide.

– Horo, você não deveria... - Lawrence balbuciou, mas interrompeu-se, completamente hipnotizado, extasiado pela beleza imortal da jovem daimon-loba em toda sua esplendorosa nudez sob a luz do luar. A totalidade de seu corpo esculturalmente esbelto de moça púbere, desde os dedos simétricos dos pés finos e delicados até os resplendentes cabelos cor de cobre que, longos, lisos e impecáveis, debruavam-lhe o rosto de boneca encimado pelo par de fulvas orelhas de aparência lupina com acabamento em pelos brancos e desciam como um manto por sobre os graciosos ombros pálidos em direção à cintura fina, pelas costas até quase tocarem as curvas glúteas, acima das quais sobressaía a flamejante cauda de pelagem castanho-dourada terminada por um penacho de pelos brancos, constituía uma obra-prima de insuperável perfeição da natureza. Lawrence sentiu seu sangue parecer borbulhar nas veias.

"Horo é uma deusa plasmada pelas mãos de Deus."

A beleza de Horo transcendia a qualquer visão mortal. Sua pele de porcelana, magnificamente bela e lindamente aveludada, brilhava perfeita, luminosa, suave e sem mácula, quase translúcida, ao ser banhada pelo luar prateado que inundava a grande clareira. Seus seios medianos e firmes, nem grandes nem pequenos demais, empinados, redondos e quentes, frementes, da cor do marfim, pareciam pêssegos macios e suculentos, dotados de auréolas rosadas e pequenos mamilos intumescidos semelhantes a framboesas. O lindo e perfeito umbigo, qual botão de flor mal aberto, adornava sensualmente seu ventre branco e liso, prenhe de paixões escaldantes, centro irradiante de pura energia animal ligada ao amor à vida, ao sexo oposto e à reprodução. A estreita fenda de sua feminilidade, logo abaixo do púbis, se achava ladeada por um halo de pelos finos, sedosos e arruivados. Seus elegantes quadris curvilíneos eram bem proporcionados à cintura delgada, à curva suave de suas nádegas juvenis, assim como as coxas maravilhosamente torneadas lembrando um par de colunas jônicas de mármore macio, ou alabastro tépido, que se alongavam até quase as pernas, incluindo os joelhos e as panturrilhas, tinham a proporçãocerta e adequada aos critérios exigidos - pela sequência de Fibonacci - para a sua compleição de harmonia total.

E no entanto, nada daquilo era novidade para Lawrence. Ele ainda conservava vívida a lembrança da noite de fim de outono, de lua cheia, quando pela primeira vez se deparara com a intitulada Sábia Loba em toda sua beleza nua e aparência de quinze anos de idade. Desde então ele a vira nua mais de uma dúzia de vezes, porquanto Horo odiava as roupas que era obrigada a vestir, apesar de serem ostentosas e caras, pois as mesmas tinham o único propósito de esconder seu rabo e suas orelhas de lobo que ela tanto amava. Não era apenas o fato de sua inigualável beleza exótica, transterrena, semidivina, sobrepujar de longe a de qualquer mulher humana. Sendo haltija e não humana, além de ter a aparência incrivelmente jovem, qual menina pubescente prorrompendo um misto de sensualidade e doçura, Horo, por sua extrema longevidade, não estava sujeita à degradação física que o corvo da velhice, cruel e inexoravelmente, infligia às filhas dos homens, não importando quão formosas fossem. Pobres mulheres mortais! Impossível para uma fêmea vida-curta, que descende de Adão e Eva, sequer sonhar em competir com uma semideusa da natureza que descende do Lobo Azul e da Loba Dourada, e cuja duração de vida mede-se em séculos e milênios.

E é toda minha! Motivo de orgulho para Lawrence, a quem Horo escolhera dentre tantos outros, quer fossem humanos ou seres sobrenaturais. Ela não era mais virgem, era sua mulher, cuja virgindade ele tirara e com quem dormira. Mesmo sem estarem casados perante Deus e a Igreja. Ela era sua e ele era dela. Em sua opinião, os "extras" de loba não atrapalhavam nada. Pelo contrário, lhe acrescentavam um encanto especial ao qual ele não podia resistir. Nem sequer incomodava a Lawrence que a forma original de sua amada fosse a de uma loba gigante sobrenatural, dez vezes mais volumosa que um ser humano, com pelo laranja e branco, olhos em brasa, presas do tamanho de lâminas de espadas e que poderia engoli-lo por inteiro com a mesma facilidade com que uma galinha engole uma minhoca.

O sangue de Horo fervia. Seus olhos fulguravam que nem topázios vermelhos à luz fria que o grande e prateado globo da Lua projetava, qual refletor gigantesco e brilhante, aclarando a terra, traçando um rastro luminescente nas águas escuras do lago, águas quentes levemente encrespadas pela brisa invernal. Com súbita força, lembrou-se das palavras de Dean Rubens: "A Lua é um refletor não só da Energia Solar como da Energia dos Planetas de todo o nosso sistema planetário. Ela dá voltas em torno da Terra e regula a Luz Astral que flui entre o Sol e o nosso planeta, imantando-o com suas forças de caráter magnético e formando um círculo de proteção ao seu redor." Com seu olhar atento Horo contemplou o brilho irradiado pelo belo satélite da Terra incidindo sobre a figura longilínea de Lawrence que se encontrava imóvel à sua frente e segurava suas roupas nas mãos, emprestando ao rosto dolicocéfalo coroado de cabelos cinzentos um fulgor lívido, quase cadavérico. Mais do que nunca, ela o tinha dançando na palma de sua mão. Você fede a excitação, Lawrence. Naquele momento ele afigurava-se-lhe tão pateticamente humano, deliciosamente humano, que Horo tinha vontade de abraçá-lo e lambê-lo... ou devorá-lo.

"Como disse antes, você ainda não é um macho alfa. Mas o será dentro em pouco."

Depois de respirar profundamente, enchendo seus pulmões com o ar frio, Horo levantou o corpo desnudo de aproximados 1,60m de altura e 43 kg sobre as pontas dos pés, os braços brancos erguidos ao alto, e bradou poderosamente para a imensa abóbada celeste, estrelada e enluarada:

– Ouçam, Céus Infinitos e Terra! Sejam a Lua e as estrelas testemunhas da dança de acasalamento de Horo, a Sábia Loba, cujos pais Tusholi e Elta de Yoitsu foram adorados como deuses-reis do extremo norte, numa terra de neve eterna!

(Ao ouvir os nomes da mãe e do pai de Horo pela primeira vez, Lawrence não pôde deixar de se assustar. Jamais a garota loba lhe falara de alguém de sua parentela de sangue. Era como se não existissem.)

Afinal, Horo recordou-se das palavras da "estúpida garota da igreja", ou seja, Elsa, são necessárias testemunhas para um contrato ser válido. E um casamento é antes de tudo um contrato. Um contrato que é firmado entre duas pessoas, pelo menos no Ocidente cristão. "E Lawrence é cristão... apesar de tudo."

Lentamente a princípio, depois aumentando o ritmo, ela começou a dançar, girando como os ventos das estepes russas e jogando a cabeça para o lado a cada rodopio, saltando veloz e loucamente qual labareda branca e rubra inextinguível saída do próprio coração do Fogo Cósmico. Gira e gira...! Sua longa cauda chicoteava o ar atrás dela, tal como um gonfalão de guerra desfraldado ao vento, e seu cabelo castanho-mogno açoitava ao redor de sua cabeça num movimento circular sobre si mesma que lembrava flagrantemente o "eterno devir" - o Infinito na Eternidade cíclica figurada no círculo que gira sempre, sem começo nem fim. Seus pés brancos descalços moviam-se com velocidade extraordinária sobre o capim alto, parecendo flutuar no ar como duas pombas brancas. Por eras sem conta os astros celestes não haviam presenciado uma dança como aquela, prenhe de magia e de encanto. Era uma celebração da Vida, de Eros, do Sagrado Feminino corporificado pela Mulher Selvagem, La Loba, avatar da Deusa Mãe-Terra que simboliza a terra fértil que cria e nutre. As estrelas e os planetas, astros luminosos e iluminados, brilharam com intensidade ainda maior, fazendo concorrência com a Lua e parecendo aumentar de tamanho! Era como se aquele rito feérico, aquela dança frenética e rodopiante que Horo dançava provocasse sutis ressonâncias do Cosmos e dos elementos da Natureza. ("O que está em cima é como o que está em baixo, para que se cumpra o milagre da unidade", reza o grande dogma de Hermes Trismegisto, conhecido pela "deusa" passariforme que dissimulava sua verdadeira natureza sob a aparência e o nome humanos de Deanna Rubens.)

O trigo de Pasloe ao qual dera seu chula, sua força espiritual viva, estava quente, e vibrava e pulsava fracamente como um coração dentro do saquitel de couro sobre seu peito. A musicalidade da floresta falava-lhe sem palavras, em um nível subtérreo. Sentia a terra, as plantas e os animais, enfim, todas as coisas vivas como parte de si. "Eu sou a Loba, tudo que cresce da terra me faz parte, não há nada na natureza que eu não conheça", recitou mentalmente ao bailar, em volteios rápidos, leve, fluida, etérea, vaporosa. E a cada vez que rodopiava para confrontar Lawrence ela ululava radiante:

– Auuuooooooooooooooooooo...!

De olhos vidrados, Lawrence acompanhava a dança feérica de Horo, admirava o espetáculo com uma reverência quase religiosa. Não era a primeira vez que a via dançar. Houve aquela ocasião em que Horo e uma jovem moça de uma troupe de artistas de rua oriundos do Norte deram-se as mãos e dançaram e saltaram ao som de uma flauta e um tambor, mais a divertida canção do menestrel, à luz de fogueiras, às do Rio Roam, numa noite de inverno como essa. Obviamente ela não estivera nua daquela vez, se bem que corresse o risco de descuidadamente expor sua cauda no ardor da diversão. Agora, porém, era tudo diferente: Horo dançava exclusivamente para ele. Era a própria encarnação da Grande Deusa Branca das antigas tribos celtas insulares da Britânia natal dele. A Vittra ou Vaettr dos escandinavos. Essa era a verdadeira Horo, a Sábia, revertida às suas matrizes em sintonia com as energias naturais. A Poderosa, a Senhora do Sol, Senhora das Feras, a força criativa fértil, doadora de vida. Todo o restante era supérfluo, transitório, falso, fraudulento como as roupas que ele a obrigava a vestir para ocultar seu verdadeiro ser dos olhares mundanos. Aquela era a Horo alegre, dolorosa, frustrante, animadora, aniquilante que o espírito de Lawrence amava e na qual o corpo dele se saciava como se bebesse a água da vida de uma fonte pura... ou vinho ou hidromel do grande blót do meio do inverno, Yule, no solstício de dezembro.

O entrelaçamento entre os campos áuricos e perispirituais dos dois seres era de tal modo intenso, com muito amor e paixão, que a energia cor-de-rosa rebrilhava com uma boa quantidade de laranja, em ondas cada vez mais rápidas.

E então a deusa loba de corpinho arquejante branco como o marfim, seios rutilantes que pareciam brilhar com iluminação interior e olhos rubros reluzentes ardendo ao luar lançou-se aos pés de Lawrence com um grito selvagem e poderoso que fez os pelos da nuca do jovem humano se arrepiarem instantaneamente. Nua como uma criança recém-nascida, Horo permaneceu ajoelhada e prostrada na relva, com a cauda abaixada e as orelhas caídas para a frente, desprovida de todo orgulho. Ainda sem erguer o rosto para Lawrence, ela falou, em voz baixa e num tom resoluto que exprimia seus mais profundos pensamentos e sentimentos:

– Este corpo pertence àquele a quem já entreguei meu amor e minha alma. E esta noite eu o oferto a ele e somente a ele, perante a branca Lua e as pálidas estrelas. Sou sua fêmea... meu macho alfa!

Aquelas palavras, de igual maneira à dança nupcial seguida de prosternação diante do macho, compunham o ritual de acasalamento do povo de Horo, eram parte integrante do patrimônio espiritual e das tradições dos seus antepassados. O fato de terem sido proferidas no alto-alemão médio em que ela e Lawrence conversavam, brincavam e brigavam no dia a dia, ao invés de na língua que se falava em Yoitsu - uma mistura de velhos dialetos fineses, tártaros e turco-mongóis "temperada" com vocalizações típicas dos lobos e palavras russas e vainakh pelo meio - , ou mesmo, na sagrada linguagem dos Lobos, a Primeira Língua, demonstrava quão muito este comerciante tolo era estimado e amado por esta Sábia Loba.

– Horo? - Ele abaixou-se, tomou as mãos dela entre as suas e ajudou-a a se colocar de pé gentilmente. Via-se que Lawrence a superava em tamanho por cerca de quase vinte centímetros, pois media 1,78m de altura (além de pesar 60 kg). Ele ficou boquiaberto para ela, e suas bochechas ficaram mais vermelhas do que o comum (semelhantes a um par de maçãs). - Horo, não me diga que está pensando em fazer...

Ela levantou o rosto para encará-lo. Seus olhares - âmbar ardente e caloroso contra gelo cinza-azulado - se prenderam pelo espaço de uma batida de coração.

– Ouça-me você - Horo ordenou, peremptória, mas amorosa. - Por fim, tomei a decisão contra a qual lutei, com todas as fibras de minha existência, durante os dois anos em que juntos transitamos pelas estradas do velho mundo. Mas, outra coisa não desejo desde a noite em que você pediu-me em noivado em Souverän, e se acasalou comigo, prometendo-me casamento. Eu sou uma fêmea alfa pela Lei da Alcateia. Seja você o meu macho alfa! Desta noite em diante, todos os dias e noites vindouros até que pare de respirar.

O rosto de Lawrence revelou um desnorteamento genuíno. Falar explicitamente sobre ter relações sexuais sempre foi motivo de embaraço para a moça loba. O ato sexual entre ambos tinha ocorrido - primeiro num quarto particular de uma pousada em Souverän, e afinal num armazém daquela vila isolada do resto do mundo - porque o mascate pouco a pouco aprendera a ler a linguagem corporal de Horo, entender seus sinais, e assim saber o que ela de fato desejava. (A não ser que se levasse em conta o "incidente" de perturbação emocional temporária de Kumerson, o qual Horo preferia esquecer.)

– Hmmm... errr... - Ele queria escolher bem as palavras para não magoar sua amada deusa loba. - Não é que eu não me sinta honrado nem nada, é só que... Horo, eu sou um ser humano, e seres humanos não... Bom, eu não queria fazer isso no meio de uma clareira de árvores, ao relento, que nem bichos... E, além do mais, faz alguns dias que não tomo banho. Não prefere esperar até chegarmos a Laiuse e irmos para uma estalagem? Amor entre quatro paredes é muito melhor, creio eu.

Lawrence afagou os cabelos e as orelhas macias de Horo, que esquivou-se, zangada.

– Mula idiota! Você faz alguma ideia de quantos jovens machos vilkai lutariam com garras e presas pelo privilégio de acasalar com uma Sábia Loba sob a luz da Lua Cheia, desta Lua Cheia em particular, que é quando nossos poderes excepcionais atingem seu auge? Apesar disso, eu escolhi você... VOCÊ, idiota!

– Me perdoe, por favor. - Num ímpeto que surpreendeu Horo, Lawrence a abraçou e apertou em seus braços. O contato com o par de semiesferas firmes e macias, desnudas, contra a parte inferior do seu tórax despertou no jovem mercante um misto de sensações e sentimentos contraditórios, de proteção e erotismo. - Você tem razão, eu sou um tolo e um idiota. Eu errei e peço desculpas. Não conheço seus costumes. E além do mais, não sou muito bom com palavras para expressar meus sentimentos.

– Só a sua ignorância se justificaria como desculpa - retrucou Horo, que abanava alegremente a sua cauda. - Mas o que posso esperar de um macho indolente, lerdo de entendimento, que não me propôs casamento senão apenas após eu ter a sua garganta entre minhas presas?

– Verdade - ele concordou, ainda apertando-a em seus braços. - Não sou nem um pouco romântico. Só sei que eu amo você, Horo de Yoitsu, que você é a coisa mais preciosa do mundo para mim... é a minha pérola de alto valor, e não há nada que eu não vou fazer por você. - Enterrou o rosto nos cabelos dela, beijando-os e aspirando seu odor adocicado e bastante intenso de maçãs maduras. - E também eu quero muito ser seu macho alfa, do jeito que seu povo faz, de conformidade com os seus hábitos e costumes. Hoje à noite, aqui e agora!

Horo ponderou em silêncio. Apesar de bronco, ele realmente era uma alma gentil. Certamente bem mais do que a maioria dos humanos que encontrara em seus 700 anos de vida. Leal e fiel até o extremo de, mesmo espancado, atado e largado na chuva e na lama, preocupar-se em manter seco e limpo o robe dela, Horo, que protegera a todo custo. Ou, quando a mensagem deixada pelo vilkas Myuri para ela a afligira a ponto de fazê-la desejar se enfurnar em uma caverna pelo resto de sua vida, fora ele, Lawrence, quem lhe estendera a mão e a puxara de volta à vida - e a tratara feito uma princesa. O que mais poderia querer uma Loba Sábia renitente que odeia estar sozinha?

"Verdadeiramente você é um ser raro... tão raro quanto eu."

Tivesse ela reencontrado seu povo-lobo, seus irmãos de raça a desprezariam, zombariam dela por amar um reles e sujo ser humano.

Lawrence parecia ter adivinhado seus pensamentos. Disse: - Uma vez você me disse que os mundos em que vivemos são diferentes. Talvez sejam, mas o destino nos colocou na mesma trilha. Por mais tolo que eu seja, não vou desperdiçar a chance de agarrar a bênção que Deus me concedeu, que foi ter encontrado você.

Ela sentiu seus olhos úmidos. "Quase um sábio", pensou, sorrindo mentalmente. Com delicadeza, desvencilhou-se dos braços dele, tomou-lhe a mão (enluvada) entre as suas e encarou-o fixamente - íris contra íris, âmbar vermelho contra azul-acinzentado. Perguntou com muita seriedade: - Você ainda quer estar ao meu lado?

– Sim, eu quero. E quero ter você ao meu lado até o último dia da minha vida.

– Você vai ser fiel comigo e nunca me trair?

– Mas é claro que sim! - Lawrence riu, pois sabia que não poderia esconder nada dela nem se quisesse. Como alguém que vivia no mundo dos negócios, ufanava-se de que, se pudesse beneficiar-se de qualquer oportunidade para mentir, ele servir-se-ia da mesma sem escrúpulos. Mas nunca tentaria trair uma daimon-loba que sabia quando alguém mentia, pelas mínimas vibrações da voz e as cores da aura. Se não por amor a ela, por medo de encarar suas enormes mandíbulas na forma Lupina, capazes de esmagar e pulverizar ossos. (Ele rejeitara, suavemente mas com firmeza, os avanços de Busana, a Loba Protetora da Floresta Babek, uma fêmea vilkas que tomara uma forma "humana", de uma jovem de rara beleza.)

Ainda segurando a mão dele, Horo recitou em tom solene: - Serei sua fêmea, sua esposa, sua companheira, sua vida. Se for de sua vontade estar em algum lugar distante, eu levarei você nas minhas costas. Se for de sua vontade obter alguma coisa, eu a trarei para você. Se você estiver sob ataque, eu o livrarei dos seus inimigos. Se houver alguma coisa que você queira defender, eu o ajudarei. Enquanto você respirar, enquanto seu coração bater, esta Loba Sábia o acompanhará aonde quer que vá.

Horo retirou do pescoço a pequena bolsa de couro que continha os grãos de trigo com seu chula, sua força vital, e esvaziou-a na palma da mão. Tão quente... usufruindo do calor do meu corpo... meu espírito.

– Por incontáveis anos, tantos quantos os pelos na minha cauda, eu vivi neste trigo, fui prisioneira e escrava dele - disse ela em tom solene e melancólico, mas desprovido de ressentimento em relação ao passado. Estendeu a mão cheia de grãos para Lawrence. - Pegue isto.

Horo deixou cair metade do punhado na palma da mão enluvada de Lawrence. Este olhou intrigado para os grãos dourados de trigo, sem saber o que fazer com os mesmos, e depois olhou para a garota loba que acabara de atirar ao fogo a bolsa vazia.

– Quero que engula-os, Lawrence - disse ela, a ligeira trepidação na voz a denunciar-lhe a alegria nervosa, a emoção de que estava possuída. - Junto comigo.

– Horo!? - Lawrence mal conseguia acreditar nos seus ouvidos. - Trata-se de sua fonte vitalícia, que contém sua essência espiritual. Se alguém comê-lo ou queimá-lo, você desaparecerá, estará praticamente morta, inexistente. Não foi o que você falou?

Ela o silenciou, cobrindo-lhe os lábios com a mão. - Apenas ouça-me. Centenas de anos atrás, eu expandi minha essência etérea para abarcar os trigais de Pasloe, infundindo minha força vital em seu solo. Em preparação para a semeadura na primavera e verão seguintes. Foi assim que passei a viver etericamente dentro do trigo, numa relação de mutualismo destinada a proporcionar uma boa safra de grãos aos agricultores da vila, em cumprimento à promessa feita ao meu jovem amigo. Mas essa promessa de há muito tempo já foi totalmente cumprida, e em virtude de terem sido inventadas novas técnicas para cultivar a terra, os aldeões não mais necessitavam de mim. No entanto, eu estava impedida de deixar a terra, meu espírito selado nos campos da aldeia pelo pacto celebrado com os moradores de Pasloe. Exceto por um pormenor.

– Se tiver um feixe de trigo maior que o da última colheita ao seu alcance, você pode se transportar para ele, de uma forma espiritual, sem ser vista - interrompeu Lawrence, recordando-se da explicação dada por Horo quando se conheceram. - Justamente o feixe que havia no compartimento de carga da minha carroça. Eu só pude te salvar de Pasloe, tirar você de lá para viajar comigo, porque aconteceu de você encontrar essa brecha no pacto que fez com seu amigo e o povo dele, séculos atrás. Até aí eu já sei.

– Então preste atenção e ouça o que ainda não sabe - retrucou Horo, que com a mão vazia agarrou e puxou o lóbulo da orelha do rapaz, forçando-o a se curvar. - Este trigo é o símbolo vivo de um pacto que caducou, e ainda assim, por conter meu chula, eu permaneço ligada a ele pelo contrato, e porque fui capaz de burlar o espírito do contrato mas não a letra do mesmo, cá estou, liberta daqueles campos, porém tendo por "habitat" limitante este punhado de grãos que me acompanha aonde quer que eu vá. A única saída para me libertar... libertar meu chula, é que nós dois comamos compartilhadamente este trigo, esta noite, e, em seguida, nos acasalemos, tendo meus poderes potencializados pela Lua Cheia de Neve, com a Lua maior do que o habitual. Com isso, minha essência, minha força vital, será transferida para dentro de você. Quando, enfim, nos tornarmos "um só corpo e uma só carne", como prega a sua igreja, o ritual de Infusão Etérea estará completo. Então estarei livre do trigo. E assim, pela segunda vez, você será meu salvador.

Horo calou-se, ciente de que a mente de Lawrence precisava de tempo para digerir toda essa informação bombástica. Ela não queria pressioná-lo a tomar uma decisão impensada, em face de um pedido inusitado como aquele, que implicava colocar em jogo a vida da pessoa que ele mais amava: a própria Horo. Ademais, não sabia ou tinha certeza do que aconteceria consigo no momento em que ela e Lawrence comessem todo o trigo, exceto, naturalmente, que seu chula não mais estaria no meio dele. Mas e quanto à sua forma corpórea? Subsistiria ou não? Poderia até não acontecer nada, mas a sensação de medo e insegurança persistia em atormentá-la. "Posso desaparecer ou morrer... Talvez para sempre", ponderou em silêncio. Se estivesse em Pasloe, ainda que o último fardo de trigo a ser colhido - onde Horo residia em forma de espírito - fosse consumido, e seu avatar cessasse de existir fisicamente até a próxima estação de colheita, ela permaneceria vagando no etéreo para voltar a se manifestar no plano físico a cada nova safra do cereal - tal qual a lua minguava e "renascia" periodicamente a cada 28 dias - ; pois, enquanto houvesse cultivo de trigo no vilarejo, a sua deusa padroeira não morreria jamais.

Agora, porém...

"Não posso aguentar mais essa gaiola."

"Loba, liberta-te! Solta-te, liberta-te dos teus fantasmas."

Ela era Horo, a Sábia Loba. Sua missão naquele momento era derrotar o demônio da incerteza e da insegurança - ou passividade anímica - no seu campo de batalha, no vazio do deserto de neve e gelo dos seus pesadelos recorrentes. Movimentando energias para chegar até o fim almejado. "Somos o que acreditamos ser. Nada nos aprisiona mais do que a nossa própria mente. As crenças e os rótulos são as prisões mentais que adquirimos ou construímos para nós mesmos. É este punhado de grãos de cereal que me aprisiona... ou são as minhas dúvidas e temores, o medo de arriscar, abandonar a 'zona de conforto' e cruzar a estreita ponte esticada sobre o mais frio, mais negro abismo da não-existência?"

Foi Lawrence quem rompeu o silêncio. - Horo - ele disse rapidamente e tocou a face dela com a mão enluvada. - Tem certeza que quer fazer isto?

O nervosismo da sua voz não passou despercebido aos ouvidos apurados de Horo, despertando-lhe o instinto protetor.

Ela tomou a mão dele que acariciava seu rosto e beijou a palma enluvada, fechando-a carinhosamente. A expressão serena em seu rosto não denunciava a luta interior pela qual passava, ou sua excitação, ao contrário do leve tremor na ponta da cauda erguida na vertical e ligeiramente encurvada para a frente. Sorriu para ele com sensualidade e autoconfiança, para encorajá-lo, e mergulhou seus olhos de fogo ambarino nos dele, de bruma cinza-azulada. Seus olhos refletiam sua alma portentosa, como que dizendo: "Eu sei... eu ouso... eu quero... e eu me calo." Não havia necessidade de palavras. Não havia volta.

Lawrence entendeu e sorriu discretamente com o canto dos lábios. Horo, a Sábia, estava resoluta, nada poderia dissuadi-la.

Ele abaixou a cabeça e ambos encostaram suas frontes uma na outra. Em seguida, esfregaram seus narizes um no outro, "beijando-se" de forma carinhosa. Como um casal de vilkai. Enfim, beijaram-se na boca apaixonadamente (como humanos e europeus).

"Eu renuncio ao título de Deusa da Colheita... de deusa de qualquer coisa... para todo o sempre."

Sem mais delongas, Horo engoliu as sementes de trigo - pela última vez - , no que foi imitada por Lawrence.

Cerca de dois anos antes, ao ver Horo ingerir os grãos da casca de trigo para transformar-se - então apenas parcialmente - , Lawrence especulara sobre como seria sentir o gosto amargo do cereal cru alastrando-se pela boca. Bem, agora não precisava especular; ele sabia como era. Aaarghhh!!! Que horrível!... Simultaneamente, porém, uma calidez deliciosa como jamais experimentara na vida se expandiu por sua cavidade bucal, à medida que deglutia, descendo pela garganta e chegando ao estômago e derramando-se em uma onda de prazer por todo o seu corpo. "Será a energia vital de Horo, que estou sentindo dentro de mim?", questionou mentalmente. Olhou para a garota loba e viu que ela segurava o estômago com as duas mãos, olhos semicerrados, gemendo baixinho. Foi quando um som como um chiado horripilante que ia ficando mais alto e mais nítido invadiu seus ouvidos.

"A Loba está vindo!", Lawrence exclamou inconscientemente.

Não importava quantas vezes visse aquilo, sempre seria um choque perturbador, uma subversão da realidade a metamorfose de uma menina nua aparentemente frágil em uma Loba de 20 pés de altura por 40 pés de comprimento do focinho à cauda, num abrir e fechar de olhos. À sua revelia, Lawrence sentiu os pelos da nuca eriçarem-se, e a pele arrepiar por debaixo das camadas de roupas, ao ficar cara a cara (por assim dizer) com a bocarra imensa e provida de afiadíssimas presas semelhantes a sabres, que abria-se tal qual uma voragem negra e profunda prestes a tragá-lo. Nuvens de vapor branco exalavam do interior da bocarra escancarada, provenientes do hálito quente da Loba com o ar frio. Parecia um dragão bafejando fumaça, um monstro mitológico do tipo retratado nas esculturas de proa das antigas embarcações vikings do século XI, nas iluminuras e nos brasões de numerosas famílias da nobreza europeia.

Horo lambeu a face de Lawrence com sua enorme língua rosada e quente, o que o fez sorrir. E então a voz da Loba, suave mas poderosa, ecoou por entre o cérebro de seu companheiro (quando na forma Lupina, Horo falava por telepatia com os humanos):

Tire suas roupas.

A despeito do frio, Lawrence obedeceu sem pestanejar. Ele já havia despido o casaco, o colete e as luvas quando Horo, tendo revertido para a forma humanoide de garota com a cauda e orelhas lupinas, estendeu as mãos e começou a desabotoar-lhe a camisa e depois desceu-a pelos ombros não muito largos. A luz da fogueira e o luar quase refletiam e iluminavam a pele de Lawrence, menos alva que a de Horo, e as mãos dela rodearam os ombros arredondados e fortes, delineando as linhas do peito de largura mediana, tórax bem formado, com pilosidade relativamente abundante e esparsa (Lawrence era forte, ela avaliou mentalmente, e apesar de magro tinha seus músculos definidos - muito diferente do biotipo dos homens que já vira tantas vezes arar os campos, cujos corpos calejados ou queimados de sol exibiam músculos rijos e salientes, e não raro envelheciam prematuramente). Horo ajudou-o a tirar as botas e em seguida praticamente arrancou as calças dele (Lawrence recordou-se com um arrepio da primeira vez em que tiveram relações sexuais, na pousada mais cara do lado sul de Kerube: mais do que desvirginar uma excitadíssima Horo, ele fora quase estuprado por ela!). Estando ambos igualmente nus, ela puxou-o para o chão relvado, colocou seu corpo em cima dele, e o abraçou o mais apertado que podia. Sua cauda balançava para frente e para trás, seus macios lábios rosa-coral roçaram o lóbulo da orelha de seu amante humano e deixaram escapar um sussurro que mais parecia um suspiro:

– Seja gentil comigo, sim?

Ele sorriu embevecido.

– Mas é claro, Horo. Sempre.

E ruborizado acrescentou:

– Se não faz caso do bom e velho cheiro de suor humano...

– Tolo!

Ela cobriu-lhe a boca com a sua e o beijou com tamanho ardor e sedução que ele, ao envolver os braços em torno dela, ternamente alisando-lhe a nuca e as costas nuas, deixando as mãos explorarem cada pedaço de pele exposta, já não sabia de mais nada, exceto que era urgente unir-se àquele delicado corpo de menina púbere com seus "extras" de loba - retrato vivo da Mulher Selvagem, elo de ligação entre os reinos animal e humano - ali naquele leito de grama com as paredes de coníferas à sua volta, sob a unção do prateado luar e das distantes estrelas - testemunhas mudas daquele conjunctio oppositorum, daquela união alquímica entre o Homem e a Natureza.

O "coito do Rei (branco) e da Rainha (vermelha)".

De repente, para surpresa de Lawrence, a daimon-loba virou-se sobre si mesma, ficou de quatro e empinou seu gracioso traseiro para cima, balançando de um lado para outro. De modo sugestivamente provocante, a cauda chicoteava o ar, roçando e fazendo cócegas no nariz do companheiro perplexo. Horo tinha o rosto virado para ele, o encarando com um belíssimo sorriso lupino. A Lua Cheia traz à tona e exibe perante a consciência tudo aquilo que estava oculto: ideias, fantasias e em particular emoções inconscientes ou reprimidas, que pelejam para serem reconhecidas e libertadas.

– H-Horo - Ele engasgou e engoliu em seco.

– Eu o ofendo? - ela indagou, orelhas caídas para a frente, receosa de que ele, filho de uma cultura patriarcal com forte base religiosa como a da Europa medieval cristã, só poderia repreendê-la por assumir sua natureza de Loba, sua feminilidade indomável, insubmissa, sensualmente livre e instintiva. "Porque sou a encarnação de um animal, da estirpe dos lauku dvasios, como dizem os bárbaros do norte." (Orgulhava-se de ser parte da natureza, livre, pura e bela como os animais. Porém, na tradição judaico-cristã a natureza representava algo perigoso que precisava ser dominado, subjugado - pelo homem.)

No entanto, ele apenas sorriu - não o "sorriso de mercador", falso, dissimulado, que ela já vira nele, mas sincero, puro e lindo como o de uma criança, do imo de seu coração - e disse: - Por que me ofenderia? Você é uma Loba, não é? Minha Princesa Loba. Lógico que eu não espero que você aja feito uma mulher humana o tempo todo. Apenas quero que você continue a existir.

Também Horo sorriu, um sorriso de verdadeira felicidade. "De novo, ele é quase sábio." - Eu hei de continuar, graças a você. Meu macho alfa. Esta noite será a noite da união dos lobos, e esta clareira será a nossa câmara nupcial.

Timidamente, ele colocou as mãos nos quadris dela. Respirou fundo, aspirando o aroma de almíscar, mui ativo e penetrante, que emanava daquele corpinho branco.

Ela, a Horo dos cabelos marrom-dourado-avermelhados como Sol citrino, deixou-se apresar por ele, Lawrence dos cabelos prateados como mercúrio, para nele verter seu chula.

Ele prendeu-a em seus braços e, qual receptáculo frio, acolheu dentro de si o fogo - o princípio energético vital - dela. Conjunctio oppositorum, a união dos opostos.

Durante uma hora inteira fizeram amor, na sua forma mais romântica, mais doce, pura e intensa. De forma lenta, sincronizada e ritmada, em meio a sorrisos e risadas, ambos se interpenetraram e fundiram num bailado de energias, todas as células dos seus corpos vibrando e dançando a dança conjunta do masculino e feminino que unia a matéria e o espírito. No frio congelante da meia-noite, a preciosa energia vital que fluía de Horo para Lawrence - como se ela fosse o "Sol", a fonte de todo o poder, e ele a "Lua" - fazia daquele momento lindo e inesquecível um aquecer de coração. Eles dois sabiam que o que estava acontecendo era algo quase inefável. Nessa hora, Lawrence sentiu-se como se alguém jogasse um manto quente e macio em cima dele; e Horo existiu em toda sua plenitude, como até então jamais existira. Uma só carne, um só espírito.

Seus corpos engolfados por uma maré de sensualidade quase mística que transcendia os níveis físico, etérico, emocional e mental, estavam tão em sintonia que explodiram em êxtase e gozo simultaneamente. Horo e Lawrence consumaram seu ato de amor, e no calor do orgasmo - onde se anulam as diferenças de espécie e de raça - gritaram o nome um do outro quando seus líquidos se misturaram.

O ritual de Infusão Etérea estava consumado!

"Eu estou viva!", Horo exclamou mentalmente, tendo os braços de Lawrence em volta da sua cintura e lágrimas de felicidade nos seus olhos. Aquele momento mágico marcava o definitivo fim do antigo pacto - ela já não estava ligada ao trigo, que fora de todo consumido - e o começo de um novo ciclo de vida. "É como a realização de um sonho... um sonho por qual esperei milhares de luas."

Ofegantes, quentes e felizes, os dois amantes separaram-se e quedaram-se na relva verde-amarelada, à luz simultânea da vermelhidão das chamas da fogueira agonizante e do clarão alvacento do luar que entrecortava o negrume do manto noturno.

– Estamos unidos - ela murmurou para ele, docemente sorrindo com cada músculo do rosto macio e corado. Estendeu a mão e entrelaçou seus dedos aos dele.

Como nas vezes anteriores quando Horo e Lawrence entregaram-se ao ato de amarem-se, intensamente - dois corpos nus interligados num só - , no êxtase do gozo e do prazer mútuo, as entranhas dela receberam o sêmen dele. A diferença era que, desta vez, também ele, Lawrence, fora impregnado com o repositório da energia vital e mágica da própria Horo, sua henki pessoal. Doravante, o corpo dele era para ela seu "depósito" de força vital compartilhada, ao qual estava ligada por um elo indissolúvel. Num certo sentido bastante real, Horo poderia dizer com orgulho que eles estavam mais próximos do que qualquer casal.

Lawrence apalpou os cabelos cinzentos bagunçados e depois olhou para o próprio corpo, como se esperasse ver uma longa cauda fofa pendente do cóccix, ou topar com orelhas triangulares e peludas no alto da cabeça.

– Quer dizer então que agora você... hã, sua energia espiritual vital, reside em mim, reside em meu corpo, assim como residia no trigo antes que o comêssemos?

– Resumidamente, sim. Há muito tempo que o povo de Yoitsu sabe que o chula, ou henki, enfim, a própria essência do corpo etérico pode ser transferida, permanente ou temporariamente, de uma pessoa para outra, ou para um animal, ou até para uma árvore ou uma pedra. Era assim que os kams - os xamãs lobos do meu kin - criavam "depósitos" de força vital fora do corpo, nos quais se abasteciam quando necessário. Eu, como Loba Sábia, sou uma kam... Mas se eu fosse uma bruxa, como as que sua Igreja caça, então eu poderia chamar você de "meu familiar".

Horo sorriu maliciosamente, o puxando para si e envolvendo seus braços em torno dele. Seu corpo, mesmo humaniforme, irradiava um calor confortável, como o produzido por um fogo de lenha (seu "fogo interior", bioenergia ou palovana). Ela aproximou seus lábios do ouvido de Lawrence e sussurrou.

– O que quer dizer isso que você soprou no meu ouvido? - ele se surpreendeu.

– Meu verdadeiro nome - ela esclareceu - , o que me foi dado por Tusholi, aquela que me deu à luz, no momento em que nasci. Todos os haltijat, de todas as raças, possuímos um nome secreto e sagrado que ninguém mais pode conhecer. Acima de tudo porque esses nomes poderiam ser usados como armas contra nós.

– Armas? - ele repetiu assustado com a magnitude da revelação de Horo. Estaria ela gracejando de novo?

– Sim, armas. Porque se você conhece o väki, o nome secreto e inefável de um haltija, que é a própria essência espiritual do mesmo, então você passa a ter domínio sobre ele. O väki é o que controla a real aparência de quem o possui. Se eu o pronunciar, regresso à minha original forma de Loba, assim dispensando a necessidade de ingerir grãos de trigo cru ou sangue fresco. - Ela calou-se ao ver a expressão de incredulidade no rosto do companheiro, depois acrescentou: - Horo, Holo, Holohka, Holoh da Cauda de Trigo e outras tantas variantes sobre o mesmo nome. Apenas sons que identificam meus atributos, mas não minha essência. Que é o meu único e verdadeiro väki. É meu mais caro segredo, que acabo de compartilhar com você. Porque você é a pessoa mais importante para mim.

Lawrence fechou os olhos e franziu o cenho, tentando assimilar a súbita torrente de informação. E o que vinha a ser "haltia", "haltija"? Seria outro nome para daimon?

– É demais... Estou aturdido! Parece que estou te conhecendo pela primeira vez...

– O meu verdadeiro nome é algo que nunca digo para os outros. A menos que confie total e plenamente na pessoa. Myuri o conhecia, e eu conhecia o dele. Mas eu jamais confiara antes num vida-curta a ponto de contar qual é o meu väki, com uma única exceção: um amigo...

– Aquele sujeito, o "tolo" de Pasloe, que pediu pra você cuidar dos campos - deduziu acertadamente Lawrence. - Seu primeiro amigo entre os seres humanos.

– Sim. E agora você... meu marido. - Suas lágrimas corriam-lhe ainda mais intensas pelo semblante macio, que, não obstante, era de pura felicidade. Não importava quão altiva, quão orgulhosa ela era, porquanto ao estar com aquele humano - aquele mercante tolo - , a Sábia Loba de Yoitsu não passava de uma moçoila frágil - e disso não se envergonhava.

– Tudo que posso dizer é que me sinto honrado com tamanha confiança - ele retrucou, ruborizando-se. Horo o chamara de marido. Ela tinha vivido no mundo humano por um tempo equivalente a inúmeras vidas humanas, mais do que o suficiente para entender o significado daquela palavra. Tomou o rosto de Horo entre as mãos e beijou seus olhos e com a ponta da língua lambeu as lágrimas que ainda escorriam.

– O Céu Azul e a Terra Dourada sorriram para nós. - Ela riu deliciada enquanto ele lambia as lágrimas de sua face como uma ovelha ávida por sal. (Sua memória reportou-se à estadia de ambos em Rubinheigen, após a aventura bem sucedida do contrabando de ouro: ao sentir o gosto do sal da lágrima de Horo, ele lambeu-a sem parar, fazendo-a rir por causa das cócegas, o que o inspirou a contar para ela e Nora, durante o jantar na taverna, a história da compulsão das ovelhas para lamber qualquer coisa salgada sendo usada como método de tortura.)

Ela colocou seus braços em volta dele, confortando-o com seu calor.

– Sabe, Horo, não consigo deixar de pensar na ironia da situação - comentou Lawrence, também abraçando a companheira. - Por causa de um compromisso firmado com um tolo que se tornou seu amigo, você se deixou prender aos trigais do vilarejo dele, por vários séculos. Esse foi seu maior erro, se me perdoa a franqueza. Agora, pra se livrar de vez daquele compromisso, você se deixa prender a outro tolo, este tolo... trocando o trigo de Pasloe pelo meu corpo como recipiente para sua força vital. Não será outro erro?

– O que posso dizer? Talvez eu tenha uma queda incurável por machos tolos - Horo retorquiu com malícia velada. (Lógico que nem ela nem Lawrence conheciam algo acerca de Guilgul, reencarnação, e Tikun, leis universais de causa e efeito, relativamente a correção ou reparo de dívidas contraídas em vidas passadas.)

Ela acabara de dar a seu companheiro suas melhores armas. Seu poder vital e seu nome espiritual. Sem necessidade. Fora um ato de amor puro, uma forma de se ligar a ele. Menos do que um casamento, mais do que um acasalamento. E não se arrependia disso.

Sem dizer uma palavra, Horo permitiu que seu companheiro deslizasse a mão por suas costas nuas, em uma longa e lenta carícia, até a curva de suas nádegas (evitando a cauda).

– Fale comigo abertamente e sem rodeios - ele pediu-lhe. - Você dizia que enquanto vivesse o trigo não iria apodrecer nem secar. Mas e quanto a mim? - Sua voz tremeu ligeiramente. - Suponho que não terei tal privilégio, afinal eu sou um ser humano e não uma planta.

– Infelizmente é assim - confirmou Horo com voz átona. - Entretanto, eu posso usar minha energia vital para prolongar a sua vida... Não para sempre, mas de modo análogo ao empregado para produzir uma safra, posso usar o meu poder para estender um pouco mais os seus anos de vida, além de preservar a sua saúde física e mental.

– Sou grato por mim mesmo e meu corpo - replicou Lawrence. - Mas e quanto a você? Se é verdadeira essa história de que você habita vitalmente unida a mim... O que acontecerá com você... sua vida, se e quando eu me for? Não me refiro apenas a morrer de causas naturais. Há os acidentes de percurso, inevitáveis em nossa jornada, há os salteadores de estrada, os mercenários, a peste e só Deus sabe mais o quê.

As orelhas de Horo movera-se suavemente ao captarem as nuances e inflexões na voz de Lawrence. Mais uma vez, constatou que ele colocava a preocupação com ela, Horo, à frente da preocupação consigo próprio. E isso a fizera sentir-se acanhada, envergonhada. Como ele podia ser tão altruísta em relação a ela, que sempre fora uma criatura egocêntrica? Maldito tolo que despertava nela uma vontade imensa de protegê-lo, protegê-lo de sua própria terrível boa índole!

Horo estreitou o abraço em torno dele naquele momento.

– A quebra do recipiente cancela o pacto que firmamos esta noite, de igual modo a que a morte de um dos cônjuges anula o casamento perante a sua Igreja. Se e quando isso acontecer, a porção de minha força vital que ora reside em você reverterá para mim. Serei o que era antes de cometer o erro, como você observou, de vincular meu espírito, meu henki, aos campos daquela vila. Livre de laços absolutamente!

"No fim, mais uma vez estarei sozinha..."

Horo empurrou o pensamento para o fundo de sua mente. Ela pressionou ainda mais seu corpo de encontro ao de Lawrence e repousou sua cabeça sobre o peito dele, ostensivamente para aquecê-lo. Lawrence afagou-lhe os cabelos levemente, com uma das mãos, e com a outra puxou as cobertas sobre os corpos dos dois.

– Fico contente em saber que você não corre perigo - disse ele com seu sorriso bobo nos lábios, e os sentidos ultra-aguçados de Horo atestaram que falava a verdade. Isso a fez se sentir aliviada e relaxar. Delicadamente, ela o envolveu pelos pés com a cauda longa e cheia. O sorriso de Lawrence se ampliou.

– Se vou ser seu macho alfa...

– Você o é - corrigiu Horo.

– Certo, então. Se sou seu macho alfa, devo ter o direito de pegar na sua cauda. Eu, somente eu e ninguém mais.

– Oh? - fez Horo, fingindo uma expressão de inocência. Ato contínuo, recolheu a cauda que estava enrolada em volta dos pés dele. Mas logo em seguida abriu seu notório sorriso malevolente. - Com que então quer agarrar a cauda abençoada? Tente, se puder... pequeno macho!

Lawrence estendeu a mão, mas agarrou apenas o ar.

–Seu tolo! - Horo gargalhou de leve, fazendo a cauda longa e felpuda esquivar-se da mão de Lawrence, sempre que ele tentava em vão tocá-la. Desde quando se tornara tão atrevido? Ela ria por dentro e por fora. Seios, ventre, ancas, tudo embalado em uma pele cremosa de perfeição ímpar entre as peles humanas, ao alcance da mão, e o pobre tolo fazia questão de agarrar a cauda... apenas porque ela, Horo, negava-lhe a permissão de tocar aquela parte de sua anatomia. "Um típico macho manipulável. É prazeroso provocá-lo."

Ademais, o forte cheiro de suor emanado do corpo do jovem macho humano não deixava de constituir um poderoso afrodisíaco que excitava seus instintos lupinos a um patamar ainda mais elevado.

– Ahahaha, machos são estúpidos e você, bufão, é o mais estúpido.

Horo desvencilhou-se dos braços de Lawrence e se levantou. Atirou as cobertas sobre o corpo dele, rindo debochada. De braços abertos, dançou diante dele, a cabeça fulva cumeada pelo par de orelhas de lobo movimentava-se em meneios sensuais, acompanhando o longo apêndice felpudo que, ereto, balançava provocante como uma flâmula enrijecida de cor alaranjada ou marrom-avermelhada, dependendo da incidência da luz da lua ou da fogueira, e branca na extremidade. Ela agora já não tiritava nem espirrava de frio.

– E a cauda da felicidade disse ao bufão pretensioso: "Estou aqui, venha pegar-me."

Resmungando e praguejando, Lawrence levantou-se enrolado nos cobertores, com o corpo ainda quente do contato com a pele macia da mulher-lobo e abriu as mãos na direção dela, tentando agarrar sua cauda. Com um grito e uma risada ela saltou para trás e correu para o lago, zombando dele por cima dos ombros perolados, incitando-o a segui-la.

– Não vai conseguir escapar de mim - ele gritou meio zangado, meio chistoso. Esqueceu-se do frio, esqueceu-se de que estava nu, e foi no encalço da vilkas. A ridícula perseguição terminou nas quentes águas sulfurosas do lago, tornadas negras pelo cair da noite qual espelho de obsidiana de grandes dimensões. Lawrence viu-se envolto pela massa de cabelos cor de âmbar dançando à sua volta, tingindo de citrino flamejante a água cor de azeviche onde a lua e as estrelas salpicavam reflexos prateados. Macios braços alvos entrelaçavam-se ao redor do seu tórax robusto e nu, revestido de fina pilosidade escura. E uma boca cor de coral unia-se à sua, de lábios finos e pálidos. Ah, que sabor indescritível tinha aquele beijo, o beijo de uma daimon virtualmente imortal! Simplesmente divino... Suas mãos exploraram o corpo dela. Tão humana e tão sobrenatural a um só tempo! Atrevidamente, ela introduziu uma das pernas entre as dele e principiou um movimento lânguido, lascivo, desencadeando uma reação instintiva em Lawrence.

"Ele é tão ingênuo", Horo riu em pensamento. "Ingênuo demais para uma haltija como eu." E, contudo, seu faro sobrenaturalmente acima da capacidade humana cheirava em Lawrence seus antigos feitos sexuais, dos quais, aliás, ele nunca se gabava (o olfato embotado da maioria dos humanos, em particular os chamados "civilizados", parecia incapaz de reconhecer que alguns odores são permanentes, não importa o quanto se lave). Era irônico - e para ela, irritante - pensar que, com toda a sua bazófia, sua conversa sobre a ingenuidade de Lawrence, na realidade ele tinha muito mais experiência do que ela. Setecentos anos e um cognome de Sábia, e no entanto jamais tivera intimidade com um homem, nem soubera sobre isso coisa alguma, até Lawrence entrar na sua vida. "Bom, pelo menos ele nunca tripudiou sobre mim", ela suspirou mentalmente enquanto beijava os lábios de seu parceiro e deixava as mãos dele percorrerem suas curvas por debaixo d'água.

Horo caiu na gargalhada quando Lawrence tentou agarrar sua cauda abanando preguiçosamente dentro d'água, livrou-se dele com um torcer de corpo e - para espanto do humano - nadou rápida para longe. Aquelas quentes águas rasas traziam-lhe à lembrança uma cena análoga, de muitíssimo tempo atrás. Naquela época, uma Horo mais jovem banhava-se e nadava com frequência nas águas aquecidas das fontes termais de Nyohhira, a localidade ao extremo Norte - no noroeste da Rússia - famosa por suas fontes hidrotermais. Outrora - mais de seiscentos anos atrás - , quando a intolerância da Igreja ainda não havia envenenado as terras pagãs da Carélia e uma criatura como Horo podia circular à vontade pelas aldeias e banhos públicos, ostentando abertamente cauda e orelhas lupinas.

Nyohhira! Horo não esperava, mas o sentimento de nostalgia bateu forte em seu íntimo. Ela se perguntava o que teria acontecido com aquele lugar. E então, de repente, uma ideia ousada começou a ganhar forma em sua mente. Nadou um pouco e voltou para a margem. Lawrence, que se banhava em silêncio, virou-se para encará-la. Horo praticamente podia ouvir o sangue correndo mais rápido nas veias dele.

– Como você está se sentindo agora? - perguntou Lawrence, ansioso. - Está com cara de quem enfrentou a face da morte pra renascer em seguida.

– Talvez seja exatamente isso - respondeu Horo, sacudindo vigorosamente a cauda e respingando gotas de água na direção de Lawrence. - Sinto-me uma nova criatura e feliz com minha decisão.

– Parece que algumas coisas não mudam nunca - comentou Lawrence, repuxando os lábios para cima, ao ter sua face alvejada pela miríade de gotas de água. - Trata-se de uma pelagem fina de alta qualidade, mesmo encharcada.

"Um galanteador barato, eis o que você é", Horo retrucou mentalmente. E, fazendo uma expressão desdenhosa para o amado, disse: - Quando chegarmos à próxima cidade, dar-lhe-ei permissão para pentear minha cauda. Doravante, será sua prerrogativa executar tal tarefa.

– Hm. Eu me recordo da vez em que penteei sua cauda naquela estalagem em Walk. Você quase morreu de cócegas, pelo menos no início.

– Recordo-me muito bem. - "De como a sensação de tortura deu lugar à de prazer." - Também me recordo perfeitamente de quando você segurou meu rabo, sem permissão, ao fazermos amor... Foi na noite em que me deu isto. - Ela exibiu o anel de noivado de ouro com brilhante no dedo anular da mão esquerda (cuja veia, acreditava-se no Antigo Egito, conduz diretamente ao coração).

– Está bem, princesa, juro solenemente que da próxima vez serei mais cuidadoso - disse Lawrence saindo do lago em direção a ela. - Brrr. Está congelando fora! - Apanhou o cobertor de lã para proteger o corpo do frio. - Venha, Horo, se enrole neste cobertor junto comigo antes que pegue uma pneumonia. Você sabe que essa sua forma é muito frágil e...

No mesmo instante, ele começou a espirrar repetidas vezes.

A menina-loba soltou uma gargalhada cristalina e sensual.

– Venha, agora vamos voltar para nosso acampamento antes que você contraia pneumonia. - Ela colou seu corpo ao dele. Os dois se cobriram com o cobertor da cabeça aos pés e fizeram o caminho de retorno para o pequeno acampamento, com a carroça e o cavalo dormindo de pé ao lado. O fogo já se extinguira por completo, deixando apenas uma curva de fumaça que subia dos galhos queimados.

Nem ela nem ele perceberam que seus movimentos estavam sendo vigiados por um par de olhos espectrais e penetrantes - nem humanos, nem animais.


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Notas finais do capítulo

Este capítulo acabou ficando maior do que eu pretendia, porém (graças a Deus) menor do que eu cheguei a recear. E o próximo deverá ser ainda menor.
Em tempo: o ritual da "Infusão Etérea" foi a única desculpa que consegui bolar pra justificar o descarte do punhadinho de trigo como sustentáculo da forma material (avatar) de Horo. Afinal, pelo deduzido da leitura do decantado Epílogo do Volume 17, ela já não mais possuía os grãos de trigo à altura da construção da pousada e casa de banhos em Nyohhira, e, não obstante, continuava viva e podia se transformar em loba gigante sem precisar dos mesmos. Então, a menos que Horo houvesse mentido para Lawrence acerca da necessidade do trigo para subsistir, a certa altura (entre os volumes 16 e 17 da light-novel) ela deve ter podido se livrar da dependência do cereal. Aliás, o próprio Isuna Hasekura nunca se deu ao trabalho de explicar ou justificar tamanha incógnita, nem qualquer fanwriter que eu conheça.
Por sinal, no xamanismo turco-mongol e dos povos fínicos, é usual a prática de ritos de transferência (ou "transfusões") de energia espiritual ou força vital, não só de e para seres vivos, mas até para objetos inanimados (talismãs).
"Vainakh" é a denominação nativa do grupo étnico que inclui os povos originários do Cáucaso Norte da Rússia, como os chechenos e inguches. Modernamente, são muçulmanos, porém seus ancestrais (séc.s XV e XVI) adoravam deuses de forma humana e animal, em particular deuses-lobos. Mesmo hoje em dia, o lobo é um ícone todo especial para os chechenos e os inguches, representando as mais nobres qualidades para tais povos, como a coragem, a honra e a lealdade.
Tusholi e Elta, respectivamente os nomes dados (por mim) à mãe e ao pai de Horo, são nomes de antigas deidades da natureza da mitologia vainakh.
"Haltija" (ou "haltia") é o nome dado aos "espíritos" dos bosques entre os finlandeses (vale lembrar que, nesta versão "alternativa", as regiões florestais de Yoitsu abrangem partes da Finlândia e da Rússia).
Para a caracterização dos ritos de acasalamento de Horo e Lawrence, figurados como "as núpcias alquímicas da rainha vermelha (enxofre) e do rei branco (mercúrio)", usei o simbolismo das cores ligadas à alquimia: o vermelho, o branco-prateado, o amarelo-citrino e o negro. Assim, Horo, a "rainha" (o "Sol"), tem cabelos fulvos (rubedo), e Lawrence, o "rei" (a "Lua"), tem cabelos prateados (albedo). Adicione-se a isto o amarelo do trigo (citrinitas) e o negro do céu noturno (nigredo). Ainda, a relva e o pinheiro simbolizam - para o paganismo europeu - a imortalidade e o renascimento.
"Guilgal" e "tikun", do hebraico cabalístico, são conceitos da tradição mística judaica denominada de "Kabbalah" ("receber"), que desvenda e explica o sentido mais interior, espiritual e místico do Tanach (frequentemente referido pelos cristãos como "Bíblia hebraica", "Escrituras Hebraicas" ou "Antigo Testamento"), bem como do Talmud (literatura rabínica tradicional que originalmente era trasmitida oralmente).