Handfasting - A Loba E Uma Nova Promessa escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 3
A Loba e a Lua de Gelo


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo já se acha devidamente concluído e pronto para leitura; entretanto, mesmo àqueles que leram os 2 anteriores (prólogo incluso), recomendo relê-los ANTES de ler este capítulo, porquanto foram revisados e parcialmente reescritos. No mais, boa leitura!



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– Horo, você lembra da última vez em que ficamos sentados de frente a uma fogueira à noite? - indagou Lawrence, tendo um braço passado possessivamente sobre o ombro de Horo, que tinha a cabeça recostada em seu peito, enquanto sua outra mão enluvada dedilhava com carinho as madeixas cor de mogno da garota loba (ambos enrolados em cobertores que Lawrence apanhara no compartimento de carga da carreta). - Você me contou uma lenda de Yoitsu transmitida através das gerações. A história da menina que se tornou uma loba de cabelos cor de prata e olhos vermelhos.

– E você gostaria que eu lhe contasse outra de nossas histórias - concluiu Horo, com um toque de malícia, o rosto de beleza estonteante iluminado pelo resplendor das chamas que ressaltava ainda mais a vermelhidão-dourada da cabeleira toda cascateante cuja cor lembrava a do cobre sendo fundido.

Ele acenou com a cabeça grisalha. - Por favor. Eu queria saber mais sobre o povo de Yoitsu, sobre a raça de deidades lobos que me presenteou com você, a pessoa que eu amo tanto nessa vida. Isso sem falar que você é uma ótima narradora, e com certeza tem mais histórias maravilhosas para serem contadas. Ao compartilhar essas, histórias, você vai estar ajudando a perpetuar o conhecimento da sua espécie e da sua memória, para que ela não se extinga. Mesmo a sua terra natal não estando mais lá.

As orelhas de Horo moveram-se levemente e ela sorriu. Sabia que o elogio de seu companheiro era sincero.

– Sinto-me feliz por você se interessar em conhecer a cultura na qual nasci e me criei. E você tem razão. Ainda que a minha tribo tenha sido praticamente extinta, ainda que Yoitsu seja hoje uma terra que agoniza em seu leito de morte, enquanto houver alguém para receber e transmitir minhas histórias, a chama dos lobos não se apagará jamais. Nossa herança racial, de que sou depositária, não será esquecida.

Nos últimos meses de sua antiga jornada à procura de Yoitsu, e logo após iniciarem seu namoro, Horo soubera ardilosamente evitar que Lawrence cumprisse seu contrato de levá-la de volta ao lar na Taiga boreal. Ela simplesmente não queria voltar mais, e tinha suas razões para tanto. Não pelo fim do contrato entre ambos, pois haviam se comprometido em fazer um novo pacto, simbolizado pelo anel de noivado. Não, ela mentia para ele e para si mesma. Sabia o quão doloroso seria confrontar aquilo que sua terra natal se tornara - depois da destruição desencadeada por "Irawa Weir Muheddhunde", o terrífico Urso Caçador da Lua, uma deidade etérea materializada grande como uma montanha - com a Yoitsu de ruas de cristal que inda vivia nas memórias de sua infância e mocidade. Mas não era só isso. Voltar reavivaria a faísca dentro de si de sair em busca de seus amigos e irmãos de clã dispersos pelo mundo, arrastando Lawrence junto com ela, impedindo-o de se estabelecer de vez e abrir uma loja. Ela não se achava no direito de sobrecarregá-lo ainda mais com seus desejos egoístas. Ele, porém, insistia em cumprir o contrato até o fim, e, mais para satisfazê-lo do que por vontade própria, Horo afinal concordara em ir ao encontro das neves e florestas de seus ancestrais lobos, acompanhada por Lawrence, ainda que fosse apenas para exorcizar o passado e assim começar uma vida nova.

Ainda envolta pelos braços de Lawrence e recostada contra o peito dele - e enrolada em camadas de cobertores - , Horo mordeu uma tira de carne seca e colocou outra na boca do companheiro. Disse: - Bem? O que você gostaria que eu contasse sobre nossas histórias?

– Horo, por acaso seu povo tem algum tipo de relato da Criação como o da Bíblia? - quis saber Lawrence enquanto mastigava com apetite.

– O que é a Bíblia?

Lawrence ficou surpreso durante um instante, depois repuxou os lábios num sorriso tímido. - Desculpe. É que às vezes eu esqueço que você é a encarnação de um espírito-lobo pagão. A Bíblia é o livro sagrado da cristandade, que a Igreja considera como sendo a palavra revelada de Deus, do único Deus que criou este mundo e tudo o que há nele.

– Fala daquele livro que a garota da igreja... Elsa, deu para o Col? Era uma Bíblia?

– Não, aquilo era um livro de horas, um breviário com trechos bíblicos, orações e salmos em latim. Pois muito bem. Está escrito que, depois de criar em seis dias os Céus e a Terra, as plantas, os astros, os animais das águas e da terra, no sexto dia Deus formou o corpo de Adão, o primeiro homem, com a argila do solo, insuflou-lhe nas narinas o fôlego da vida e o homem se tornou um ser vivente. Depois Deus criou a primeira mulher diretamente de uma das costelas de Adão, e foi o próprio Adão quem lhe deu o nome de Eva. Então Deus ordenou que eles procriassem e enchessem a Terra com seus descendentes, que somos nós, os homens, todos os homens. Os imortais de Yoitsu têm, ou tinham, algum tipo de narrativa parecida com essa?

– Você quer dizer, a genealogia de minha raça?

– Se você coloca nesses termos, sim.

Horo pensou um pouco e respondeu: - Sim, nós temos, porém baseia-se em tradições orais que datam de cinco mil a dez mil gerações atrás, remontando até o que era chamado pelos lobos Anciões de Tempo Antes da Lua. E é claro que não são iguais às suas. Você gostaria de ouvir sobre elas?

– Por favor - ele repetiu.

Horo levantou a cabeça e encarou-o. - Tudo bem! Eu contarei. - Ela exibiu um sorriso lupino e suas presas afiadas brilharam sob o luar azulado. - Todavia, para tudo há um preço a ser pago. Como mercante, você sabe perfeitamente disso.

Lawrence suspirou e sorriu fraco. Mais joguinhos.

– Daquela vez eu tive que prometer deixá-la comprar tantas maçãs quantas você quisesse, ao chegarmos à cidade.

– Como se você não soubesse que daquela vez eu estava brincando quando aceitei sua oferta - Horo retrucou tranquilamente. - Mas desta vez falo sério.

Lawrence tocou com a ponta do dedo indicador da mão direita o nariz delicado e ligeiramente arrebitado da garota loba. - Então, o que vai ser desta vez? Vinho de maçã? Ou algumas rodadas de sidra de pera?

– Por acaso está insinuando que as demandas desta Sábia Loba se resumem em comida e bebida? - redarguiu Horo. Ela sentou-se ereta na relva com as pernas cruzadas e fitou-o intensamente com seus arrebatadores orbes carmesins, magnéticos, atraindo a presa para as mandíbulas do predador, seu sorriso de dentes perolados brilhando à luz fria do luar. - Não, querido, meu "preço" é outro.

– Ei! - Lawrence exclamou ao perceber que de súbito, de algum modo inexplicável, estava com a cabeça deitada no colo de Horo. Sentiu um ligeiro calor nas faces. - Horo?

A moça vilkas riu alegremente.

– Como fez isso? - ele indagou, mais curioso do que perturbado.

– Um truquezinho que aprendi há muito, muuito tempo - ela respondeu, ostentando um sorriso brincalhão nos lábios de coral. - Sabe, o primeiro jovem macho humano com quem brinquei assim ficou ainda mais encabulado que você, as bochechas vermelhas como um par de maçãs polacas colhidas no final do outono.

– Hmm... Não estou interessado nesse tipo de história - ele retrucou suavemente.

– Ele era um menino de dez anos de idade - disse ela. - Que viajava com uma menina de doze, por quem nutria grande afeição.

– Klaus e Ariette?

– Isso mesmo. Mais de cinco séculos antes de você nascer.

– Horo, eu...

– Quieto!

Em seguida, com ambos os braços em concha para aparar a cabeça de Lawrence, Horo espalmou suas mãos sobre os maxilares estreitos e o queixo pontudo do rosto oval; e gentilmente moveu-lhe a cabeça em seus braços, ao mesmo tempo que o volumoso e felpudo rabo de lobo moveu-se para cobrir seus joelhos. Então ela tornou a pousar a cabeça dele em seu regaço revestido com a pelagem densa e macia de sua cauda, e cobriu-lhe o corpo com a manta de lã.

– Você está confortável assim? - perguntou Horo no tom mais carinhoso que podia.

– Eu estou muito confortável... Obrigado, Horo - respondeu Lawrence, sorrindo meio bobo, deitado com a cabeça no colo de sua amada Loba e apreciando a maciez da pelagem da cauda que lhe servia de travesseiro. Sentia aquele sutil aroma agridoce irresistível que, tal qual a cauda e as orelhas lupídeas, era uma das marcas registradas dela. - Se bem que, caso eu tenha entendido correto, você está me tratando igual a uma criança.

– Já lhe disse antes que, do meu ponto de vista, você ainda é uma criança. - Com um dos seus dedos ela delineou os contornos dos lábios dele. - Vocês, humanos, são todos crianças em comparação comigo.

– Por que isso agora?

– Desde que nos conhecemos, você cuida de mim. Chegou a minha vez de cuidar de você. É minha vontade retribuir à altura todo seu carinho, atenção e dedicação para comigo.

– Desse jeito vou acabar ficando mal-acostumado.

– Correrei o risco.

– Lembro-me que uma certa pessoa disse os homens é que devem ser gentis.

Horo delineou o queixo barbado de Lawrence com a ponta do dedo indicador, sentindo a aspereza da barba rala. (Vieram-lhe à mente suas próprias palavras, ditas ao menino Klaus naquela noite tão longínqua: "Você pode apenas ser gentil com outrem quando se sente um bocado culpado.")

– Eu estava errada - ela retrucou laconicamente. - Você não sabe o quão difícil é para uma Loba orgulhosa admitir tal coisa em voz alta.

Lawrence deu uma risadinha. - Nunca pensei que viveria o bastante para ouvir isso.

Horo o silenciou colocando o dedo indicador nos lábios dele, e disse: - Você quer ou não quer que eu narre a história de minha raça?

– Desculpe. Sou todo ouvidos.

– Primeiro, dê-me sua palavra de que você responderá a qualquer pergunta sobre seu passado. É este o meu preço.

Lawrence suspirou e viu sua respiração se tornar a típica fumaça branca existente nas noites frias.

– Tudo bem. Dou minha palavra como mercante viajante.

E, tal como da última vez, a daimon-loba olhou para a fogueira e por uns instantes fechou os olhos. Tornando a abri-los, ficou a contemplar a mágica dança das chamas. Quando falou, sua voz soou harmoniosa e hipnotizante como o som divino da lira de prata de Apolo.

– Milhões, milhões e milhões de sóis atrás, no Tempo Antes da Lua, quando o Sol era jovem e apenas deidades de forma animal perambulavam pela Terra recém-nascida, e a Lua ainda não brilhava no céu noturno, um Lobo Azul que vivia nas estrelas lançou-se das alturas celestes através da escuridão fria e baixou a esta Terra. Aqui embaixo ele conheceu uma Loba Dourada que havia saído das entranhas da terra. E o grande Lobo Azul Celeste amou a Loba Dourada e acasalou com ela. Foram cinco dias e cinco noites de prazeres, distrações e alegrias em isolamento - ou, para certos xamãs, catorze dias e catorze noites - , durante os quais se amaram o primeiro Lobo e sua fêmea, sob a proteção do Céu Azul e da Terra Dourada que os haviam gerado.

Enquanto falava, Horo afagava distraidamente os cabelos cinza curtos de Lawrence. Suas íris cristalinas refletiam o vermelho, o laranja e o amarelo das labaredas dançantes da fogueira diante deles. (A alguns passos dali, Klaus, o cavalo, dormia de pé.)

– No entanto, a felicidade do primeiro casal lupino durou pouco. A última e a mais perigosa das deidades animais, o Urso Atroz Celestial, despertara de seu sono invernal de mil anos. Rugindo de ira e ameaça com fogo, vento e trovões, ele atacou o Lobo Azul e a Loba Dourada que fugiram para salvar suas vidas. Nossos pais primevos passaram as águas imensas, mas seu eterno inimigo não conhecia o cansaço, nem a piedade, perseguiu-os por toda a redondeza da Terra até que, por fim, vieram ter às terras do extremo norte, onde os verões são curtos e os invernos longos. Eles encontraram o deus ou daimon que protegia as florestas da taiga, o Veado Vermelho, que acolheu e escondeu o extenuado casal de Lobos. Foi numa gruta que a Loba Dourada, então prenhe, trouxe ao mundo sua ninhada de sete filhotes que deram origem aos sete clãs primordiais, os sete clãs fundadores de Yoitsu. Destes, cinco eram lobos como seus pais: o Lobo Branco, o Lobo Cinza, o Lobo Negro, a Loba Ruiva e a Loba da Cauda de Trigo. Estranhamente, um par de gêmeos, um menino e uma menina, nasceram com aparência humana,mas tinham presas, orelhas e cauda de lobo. Ainda assim, todavia, todos eles possuíam aquela centelha divina que deu a todos nós, vilkai, a toda nossa raça, uma vida anormalmente prolongada, relativamente imortal.

Ela concluiu seu relato, mantendo a expressão serena no rosto lindo.

– Com o passar das eras, os filhos do Lobo Azul Celeste e da Loba Dourada foram pareando entre si e gerando seus próprios filhos, que logo povoaram a terra de Yoitsu e foram cuidar de inúmeras outras terras e territórios. Exceto o Lobo Negro, que ficou sem uma parceira de sua própria espécie e, por esta razão, ele se acasalou com a Corça Branca, filha do Veado Vermelho. Dessa união interespécies surgiram os primeiros seres humanos, criaturas mortais de vida breve. Assim contam os Lobos Anciões. Assim contam os povos da tundra e da taiga, onde, mesmo à noite, é quase tão brilhante como o dia.

(Falava da aurora boreal luzindo por cima da brancura ofuscante da neve e do gelo.)

Horo baixou os olhos para Lawrence, sua mão delicada lhe acariciava a cabeça lentamente, entrelaçando seus dedos nos cabelos grisalhos do jovem companheiro humano.

– Então? O que achou da nossa história?

Com a cabeça confortavelmente deitada no colo de Horo (que mantinha a cauda ajeitada sobre os joelhos para criar uma espécie de travesseiro), Lawrence esboçou um sorriso bobo.

– Horo, eu simplesmente não tenho palavras pra dizer o quanto estou impressionado. É uma história linda, sim. Eu nunca tinha ouvido nada igual. Se bem que já tinha escutado falar que os pagãos da Pomerânia, da Ploânia e da Lituânia acreditam que seus deuses criaram o primeiro homem e a primeira mulher a partir de dois troncos de árvores: de um freixo, Askr, e de um olmo, Embla, respectivamente.

– E você? Acredita realmente que descende de uma mulher tirada da costela de um homem feito de barro por um Deus invisível que criou este mundo em seis dias?

Lawrence riu sem jeito, ainda deitado no colo dela.

– Sua pergunta é capciosa, sabia? A Igreja proclama que o relato bíblico da Criação é a palavra revelada de Deus ao homem ipsis litteris, ao pé da letra.

Horo beliscou-lhe as bochechas como se ele fosse um menino pequeno ("Lawrence é tão adorável com as bochechas vermelhas e irritadinhas!", ela pensou).

– Ora, ora... Nós dois sabemos que você não é um crente nos dogmas da Igreja, Kraft Lawrence. Caso contrário, não estaria aqui comodamente deitado com a cabeça nos joelhos de uma vilkas pagã a quem pediu em casamento.

Tendo sido encurralado, Lawrence suspirou. - Esperado da Sábia Loba Horo... Você é uma perseguidora implacável! - E calou-se, a seguir.

Foi quando sentiu a mão delicada e quente de Horo carinhosamente bagunçar seus cabelos. Ela baixou o rosto e murmurou em tom de brincadeira, perto do ouvido dele:

– Por acaso o lobo comeu sua língua?

Ele bufou levemente. A respiração escapou de sua boca formando uma fina fumaça branca que desfez-se no ar.

– Pra falar a verdade, eu já nem sei mais no que acreditar. Desde pequeno recebi uma educação cristã básica, crendo que o Deus cristão existe e que tudo que está escrito na Bíblia Sagrada é verdade... apesar de nunca tê-la lido de fato. Mas como piepowder eu já viajei por quase todo o continente, conheci pessoas diferentes e todo tipo de crenças e rituais, vi coisas que sequer deveriam existir pelos ensinamentos da Igreja. Meu São Félix Arozury, eu conheci você, Horo...! Claro que eu sei que nem você nem seu povo são deuses ou demônios, ou qualquer coisa parecida. Foram os bárbaros do extremo norte do continente que os confundiram com deuses pagãos, por serem impotentes contra vocês. Só o que sei é que acredito em Deus, que existe um princípio criador, regulador do Universo. O Universo é por demais ordenado e metódico para ser fruto do acaso, ou das lutas dos múltiplos deuses. No mais... - Ele empurrou para fora o lábio inferior. - Que os Teólogos e os Naturalistas fiquem debatendo per omnia saecula saeculorum se viemos todos de Adão e Eva, no Jardim do Éden, ou se os primeiros seres humanos foram formados dentro de animais semelhantes a peixes que nasceram do lodo marinho, e expelidos quando cresceram demais. Francamente, eu não me importo com isso. Não sou mais que um comerciante comum... um comerciante tolo, como você gosta de me lembrar.

Ela o beliscou mais forte. - Resposta errada - disse num cálido tom de censura.

Com as bochechas vermelhas e ardendo, Lawrence esforçou-se por levantar a cabeça. - Então o quê? Acreditamos porque não sabemos, e chamamos a isso "fé". Se soubéssemos não acreditaríamos. Seu próprio povo acredita que descende de um casal de lobos elementais e que os seres humanos são fruto da união entre um lobo sobrenatural e uma corça.

Horo riu divertida. - Onde sua mente tem estado? Eu nunca disse semelhante coisa! - Aos seus olhos ele parecia um sabujo idiota perseguindo uma pista falsa.

Ela gentilmente tocou-lhe a cabeça, e uma sensação de formigamento no pescoço fez Lawrence relaxar. Como por encanto, toda a força de seu pescoço desvaneceu-se, e ele deixou a cabeça quedar-se de novo no colo de Horo, que sorriu vitoriosa.

– Considere-se honrado - disse ela, puxando o cobertor sobre ambos. - Estar nessa posição é um privilégio com o qual muitos sonharam nos últimos quinhentos anos.

Deu-lhe alguns tapinhas afetuosos na cabeça e disse: - Lawrence, meu querido tolo, você é uma boa pessoa, mas ainda lhe falta experiência. Histórias sobre a criação não são para serem acreditadas. São para serem meditadas.

– Eu não entendi.

Horo rolou os olhos. Aparentemente, Lawrence era incapaz de assimilar a nova noção dada por ela. "Humanos... Humpf! Mesmo se lhes tirarmos os antolhos, só enxergam o que está à frente e bem de perto."

– Certo. Elas ensinam às pessoas - humanas ou não - uma melhor compreensão de si mesmas, do grande mundo e do significado por trás da existência por intermédio de símbolos. Em outras palavras, nos fazem entender, por meio daquilo que vocês, humanos, chamam de poesia e metáforas, quem somos, de onde viemos e porque estamos aqui.

– Mm... Por exemplo?

– Por exemplo, o Lobo Azul e a Loba Dourada, o Lobo Negro e a Corça Branca podem ser símbolos alegóricos da dualidade fundamental que compõe não só o homem e o animal, mas o próprio Universo, na forma de pares de opostos: masculino e feminino, esquerdo e direito, claro e escuro, luz e trevas, bem e mal, quente e frio. Todos temos em nosso imo um Lobo Branco e um Lobo Negro, cada qual pelejando para sobrepujar o outro. Por outro lado, a corça representa a fertilidade da natureza selvagem; e o lobo, o elo de ligação entre o conhecido e o desconhecido, a vida e a morte, físico e espiritual - e o sentido de união. Isto é o que ensinam os xamãs lobos do meu kin.

– Hã? Seu... o quê?

– Meu clã. Penso que também é válido para o Adão e a Eva da sua Bíblia, bem como para o Askr e a Embla dos pagãos do Norte. Vejo-os como os símbolos em um sonho, que mascaram, que escondem a verdadeira mensagem. Ou como as vestes, capas e capuzes que sou obrigada a usar para cobrir e dissimular minha cauda e orelhas, que mostram a prova de minha existência, dos olhares do resto do mundo. Porque a maioria dos homens, salvo raras exceções - como você e Col, ou aquela pastora loira - , não está preparada para conhecer minha verdadeira natureza, quem e o que sou, sem medo ou choque. Talvez algum dia, em um futuro bem distante.

Para sua surpresa, Lawrence começou a rir sonoramente.

– Eu disse algo tão engraçado assim? - As orelhas erguidas, Horo deu um raro olhar de constrangimento genuíno para Lawrence, que de pronto parou de rir.

– Não, não é nada disso - ele apressou-se em dizer. - Você me fez lembrar de um velho amigo de muito tempo atrás, um de meus professores. Ele costumava dizer que a Bíblia não era literal, mas sim um compêndio de metáforas poéticas, que emprega a linguagem figurada para comunicar verdades ocultas, segredos muito antigos que, de outro modo, seriam incompreensíveis para o vulgo, o comum dos mortais. É a "linguagem do Mistério", dizia. Como as roupas, véus e capuzes que são para cobrir e ocultar, não para descobrir e desvelar. Mas "o essencial é invisível aos olhos". Estas eram as suas palavras. E agora ouço você falando nos mesmos termos dele.

– Oh! Que interessante! - Horo exclamou baixinho. - Eu estava convencida de que as únicas pessoas com quem você se relacionava eram cambistas, mercadores da Guilda... Mas aí está um amigo seu com quem valeria a pena entabular um diálogo de alto nível. Fale-me mais dele! Onde nasceu? Em que lugares viveu e o que fazia? Não guarde essas informações só para si.

Tinha consciência de que Lawrence era relutante em compartilhar com ela segredos de si próprio, de seu passado - fora necessário apelar para birra, chantagem e pirraça para que ele concordasse em contar-lhe a curiosa história de seu encontro com Fred Redmay, dos cavaleiros do Conde Richard Phil, e da adaga forjada em prata que ganhara dele com as palavras gravadas "Deus é misericordioso" - ; todavia, Horo o induzira a dar sua palavra de que responderia a qualquer pergunta que ela fizesse, como preço para relatar a história sagrada de seu povo, e sabia que, para Lawrence, a palavra de um mercante era inviolável.

Lawrence suspirou. Na ânsia de aprender tudo o que podia da raça de Horo ficara com a guarda aberta. "Mula tola!", disse mentalmente.

– Bem, o nome do meu amigo era Philippe Jordanus van Bruuz, de uma família de ricos comerciantes holandeses baseados em Antuérpia, que, inclusive, tinha seus contatos políticos com os condes de Flandres e de Hainaut e com o rei de Perigeaut. Que grande professor ele foi! Teólogo, filósofo, escritor, matemático, astrólogo e astrônomo. Sabia grego, hebraico, aramaico e latim. Trabalhou em universidades célebres na Inglaterra e na Alemanha, e viajou pela Europa: Bolonha, Paris, Pazzio, Rubinheigen, Erfurt, Frankfurt. Jordanus não fora feito para ficar em um só lugar, mas amava se movimentar. Chegou a ser frade dominicano, porém abandonou a ordem porque, embora fosse religioso, tinha opiniões contrárias às da Igreja e a coragem de defendê-las publicamente. Teve muitos problemas por causa disso. Apaixonou-se por uma mulher tão inteligente e audaz quanto ele, com um espírito lúcido e penetrante como o seu, e casou-se com ela. Beatricia, uma rara alma gêmea. Eu a conheci.

Horo parecia não sentir-se muito feliz com a menção feita por seu noivo sobre uma outra mulher, elogiando-lhe audácia e inteligência. (Mesmo levando em conta que Lawrence provavelmente não passava de um garoto da idade de Col quando a conhecera.)

Suas orelhas se contraíram atentamente para Lawrence.

– Um religioso rebelde? Não posso acreditar! - disse ela, tentando manter o rumo da conversa focada mais no antigo mestre-escola e amigo de Lawrence. - E o que te ensinou que fosse tão radicalmente contra as "verdades" pregadas pela Igreja?

Horo percebeu a relutância de Lawrence em responder, como se o assunto fosse um tabu (atenta como estava às nuances sutis na linguagem corporal do humano, tais como o engolir em seco, a respiração, a pulsação e a transpiração). No entanto, ele também devia estar ciente de que quanto mais tentasse evadir-se de uma resposta clara e correta, mais exacerbada seria a curiosidade dela. Afinal, Horo não se furtara a confidenciar a Lawrence o que sabia, então por que ele não queria agir da mesma maneira para com ela?

Horo inclinou-se, aproximando seus lábios do ouvido de Lawrence, e sussurrou: - Me deu sua palavra. - E beliscou-lhe os ralos fios de barba no queixo.

Lawrence não pôde conter uma risadinha embaraçada.

– Nem sei por onde começar... - Comprimiu os lábios e fechou os olhos, como que tentando trazer à tona as recordações engavetadas há tanto tempo. - Jordanus era o que se podia chamar de um verdadeiro iconoclasta que não hesitava em atacar e denunciar os abusos, incongruência e a corrupção na Igreja Católica Romana. Para ele, a Terra gira em torno do Sol, que é uma enorme bola de fogo muito, muito maior que a Terra. Assim como Adão e Eva não foram pessoas reais que viveram nesta Terra, mas símbolos da humanidade iniciante, porque "Adam", no hebraico, significa "ser vermelho", "da terra vermelha". Segundo ele, Adão era hermafrodita, ou seja, macho e fêmea ao mesmo tempo. Ele foi dividido em dois, um lado masculino que conservou o nome de Adão e um feminino, Eva. Porque a palavra hebraica que costumam traduzir como "costela" literalmente significa "o lado de uma pessoa". Ele também dizia que os "seis dias" da Criação correspondem a eras ou períodos de milênios, cada um. Porque, dizia, "um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia." - Lawrence inspirou fundo e soltou devagar. - E o pior é que ele não parou por aí. Foi ao ponto de negar que Jesus Cristo era Deus, negar a Trindade cristã. Ah, e como se não bastasse, ele acreditava em reencarnação, e negava a existência do Inferno. Suas palavras textuais foram: "Não existe inferno de fogo literal. Não passa de uma doutrina errônea, de origem greco-romana, que a Igreja utiliza para incutir medo das pessoas, mas que não se harmoniza com o fato de que Deus é amor."

– Estou sinceramente impressionada! - cochichou Horo, seus olhos avermelhados alargaram-se e se estreitaram, demonstrando sua surpresa e incredulidade por um mero humano, um vida-curta ter pensado em conceitos tão profundos; e mais ainda por ouvi-los da boca de Lawrence, de quem jamais esperara isso. Aquele era um lado dele que ela nunca havia visto ou sequer imaginado que existisse. - Esse Jordanus devia ser incrivelmente sábio para um ser humano.

– Ah, ele era com certeza - concordou Lawrence, tomado de súbito entusiasmo por falar de seu velho mestre-escola e amigo. - Foi discípulo do famoso Pico della Mirandola, o grande filósofo que aprendeu a doutrina mística da Cabala da boca de mestres judeus. Falava de coisas estranhas que eu não podia compreender. Mundos sem fim, a vida fora da Terra... Eu guardava tudo aquilo na memória. - Franziu o cenho. - Como era mesmo que ele dizia? Oh, sim! "O Homem é uma imagem ressonante do Grande Universo em pequena escala, o microcosmos do macrocosmos." Mas não me pergunte o que significa isso.

– A cada dia você me surpreende mais e mais - Horo retrucou, muito séria. - E o que aconteceu com esse grande sábio dos humanos?

– Aconteceu a Inquisição - Lawrence respondeu, com o rosto sombrio. - Jordanus e Beatricia fizeram muitos inimigos pelo caminho, por seus ataques à Igreja, ao comércio de escravos, por defender a liberdade de pensamento, a igualdade dos sexos, a sinarquia, a existência de outros mundos habitados além da Terra, o cosmos infinito e outras tantas heresias. O maior erro deles foi fazer amizade com um rico mercador-banqueiro barcelonês, que os convidou para ir a Barcelona, na Espanha. Acho que esse homem, sabendo do envolvimento do casal com o ocultismo, quis obter de Jordanus e sua mulher ensinamentos com fins comerciais, para aumentar seus lucros, ou prejudicar seus concorrentes, daí que eles se negaram a ensiná-lo. Ele, então, delatou os dois à Inquisição do Santo Ofício, para vingar-se, acusando-os de heresia. Ao serem interrogados, eles não abjuraram suas ideias. Certamente você pode imaginar como as coisas terminaram.

– Sim, eu posso.

Na mente de Horo surgiu um quadro nebuloso, com fundo azul-escuro, mas no qual distinguia as figuras de um homem e uma mulher amarrados em estacas e queimados vivos, ardendo em chamas e fumaça. Por um instante, pareceu a Horo que a fisionomia da mulher era igual à sua, e a do homem, à de Lawrence. Ela encolheu-se instintivamente.

Pensou, revoltada: "Maldito fanatismo religioso, que a tudo destrói. Que odeia a liberdade, que aprisiona a mente e corrompe o coração."

– Sinto muito - a daimon-lobo murmurou com um fio de voz, enquanto deslizava sua mão pela bochecha de Lawrence. Ela sempre se perguntara o motivo pelo qual seu companheiro pouco falava de si próprio, de seu país, família ou amigos antes de encontrá-la. Havia uma razão para tanto, e agora Horo sabia. Compreendia por quê. Então não tinha ela própria, enterradas no fundo de seu coração, memórias de grande dor e pesar que não queria reviver?

Mais de meio milênio atrás, em sua viagem para o Sul à procura do lendário elixir da vida, Horo, a Sábia, fora a culpada, embora indireta e involuntariamente, por uma tragédia dolorosa envolvendo uma pequena aldeia do sul do Reino de Trenni, muito parecida com Pasloe, que custara as vidas de duas crianças mui queridas e amadas - cujos nomes foram esquecidos, sepultados no fundo do seu subconsciente magoado - e de todo um povo inocente. Se ela não tivesse ido àquela vila, então ninguém teria morrido. Inútil culpar os fanáticos cristãos ou o exército do rei de Trenni daquele tempo por massacrar o povo "pagão" que ela jurara proteger, inclusive seus pequenos amiguinhos humanos, seus "filhotes". Aquelas pessoas tinham morrido por causa dela. Uma falsa deusa. Ela os matara a todos. Depois, imagens confusas se sucediam umas às outras... Horo transformada em Loba chacinando sem dó nem piedade os soldados que mataram seus entes queridos, numa orgia de morte e destruição. Essa ferida nunca iria sarar. Mas sendo orgulhosa como era, Horo não queria partilhar sua dor com ninguém.

– Eu não passava de um rapazola - Lawrence continuou falando, como que imerso em um monólogo. - Eu e o Weiz e os outros. Havíamos aprendido uma dura lição de vida. A autoridade da Igreja e o princípio do Direito Divino dos Reis não devem ser desafiados. Desde então, a minha vida foi preenchida com nada além de negócios, e um plano para me estabelecer em uma cidade e abrir uma loja, um dia - afinal, o dinheiro foi o que moldou o mundo - , isto é, até eu te encontrar, Horo. Você me mostrou que a felicidade, a verdadeira felicidade não vem de mãos dadas com a abundância e riqueza.

Deitado de lado com a cabeça sobre o rabo felpudo cobrindo o colo da mulher-lobo, um Lawrence completamente relaxado experimentava pela primeira vez a sensação de ser mimado e acarinhado como se fosse um cãozinho ou um gatinho... e o prazer total de uma passividade quase infantil. O contato da pelagem macia e confortável da cauda de Horo contra sua face e sua orelha o fez se sentir bem. Afinal, ele nunca havia experimentado algo como aquilo.

– Como se sente sendo meu "cachorrinho"? - a voz de Horo era cheia de mel e malícia. A mão dela afagava os cabelos cinza-prateados de Lawrence com o mesmo carinho e cuidado com que ele costumava acariciar suas felpudas orelhas e suas longas madeixas cor de mogno. - Agrada-lhe ou não?

– Se eu disser que não, estarei sendo hipócrita e mentiroso - ele confessou com um sorriso tímido e bobo nos lábios. - De qualquer maneira, você saberá que estou mentindo.

– Esse rabo é por demais maravilhoso, por demais charmoso e irresistível, não é? - ela gabou-se de seu exuberante apêndice caudal. - Eu sei. Apenas relaxe e aproveite.

Pensou satisfeita que, após dois anos permitindo-se ser protegida e paparicada pelo seu tolo companheiro, até que não era nada mal trocar de lugar com ele um pouco. Sou de novo a Loba. A Guardiã. A que cuida dos seus, que zela pelo total despertar do masculino. Aquela que enxerga no escuro, que dispõe do remédio para todos os males. Que carrega histórias e sonhos, palavras e canções, signos e símbolos. Sábia, intuitiva, inspiradora, criadora, visionária, oráculo e ouvinte que guia, sugere e estimula uma vida vibrante nos mundos internos e externos. Eu, a Mulher Selvagem.

Era estranho admitir, mas, no fundo, desde a partida do jovem Todt Col para estudar Teologia e Direito Canônico visando se tornar sacerdote, seu instinto maternal de loba a fazia sentir falta de uma criança - um filhote - para proteger e cuidar. De mais a mais, era fim do inverno, época de acasalamento e procriação das tribos de lobos. Por essa razão, nos últimos 30-40 dias ela vinha se mostrando mais amável e carinhosa do que o habitual - mais afetuosa com seu parceiro. (Dessa forma, empurrões, tapas, chutes, socos e pisadas nos pés aos quais o pobre Lawrence se acostumara deram lugar a demonstrações mais "afetuosas" tipicamente lupinas como pequeninas mordidas no pescoço e no ombro.)

Suspensa no céu constelado sobre a vasta massa florestal de pinheiros e abetos, acima dos ramos e folhas agitados pelo lamentoso vento noturno de inverno, a Lua Cheia lançava sua pálida luz prateada sobre as águas negras do lago no meio da grande clareira, que refletiam as miríades de pequenos pontos cintilantes espraiando-se qual estrada aberta. Uma noite assim era denominada de "Lua Cheia de Neve" ou "Lua de Gelo" pelas nações do Hemisfério Norte, porque nessa mesma semana de fevereiro, quando ocorre a fase cheia da Lua, acontecem as piores nevascas registradas no continente euroasiático. Entretanto, naquela noite não houve neve, confirmando a previsão feita por Horo.

– Ah, que lua maravilhosa - disse ela, repetindo as palavras ditas por ocasião de seu primeiro encontro com Lawrence, ao sair do compartimento de carga da carroça do mascate abarrotado de peles e um feixe de trigo montanhês (maior que o último ramo colhido pelos aldeões de Pasloe, para o qual Horo transferira sua forma etérea a fim de evadir-se da vila). - A Lua cheia está, esta noite, maior e mais brilhante do que o habitual, por que será?

(Na realidade ela referia-se a uma notável coincidência entre o perigeu lunar, isto é, o ponto da órbita em que a Lua se encontra mais perto da Terra, e a fase de Lua cheia, que se mostra visualmente 14% maior e 30% mais brilhante que uma Lua cheia normal, ou "Superlua"; logicamente, nem Horo nem Lawrence, vivendo no fim da era medieval e início da Renascença, eram bem versados em astronomia.)

– Sabe, Jordanus van Bruuz dizia que a Lua é um mundo como este, e que a sua luz é a luz do Sol refletida - Lawrence comentou de maneira casual. - E sabe o que mais? Ele também costumava dizer que as estrelas são outros sóis cercados de planetas, assim como a Terra e os cinco planetas conhecidos revolvem em torno do Sol. Que, assim como a Terra é um mundo cheio de vida, nada mais lógico que a Lua e os cinco planetas serem habitados. Que esses outros mundos, outras Terras, girando ao redor de outros sóis, uma infinidade deles, podem ser habitados por criaturas inteligentes como nós, humanos. Todos criados por Deus para poder adorá-lo e mostrar Sua majestade divina. "Na casa de meu Pai há muitas moradas", Van Bruuz gostava de citar essa passagem do Evangelho de João, na qual Jesus parece falar de vida noutros mundos. Parece que ele pegou essa noção de um tal de Nikolaus Krebs, ou Nicolau de Cusa, um alemão, filósofo e cardeal da Igreja Católica Romana. Os dois trocaram correspondência por algum tempo.

– Figura fascinante, esse humano Van Bruuz - comentou Horo, seus olhos brilhando avermelhados através da nuvem branca de vapor que escapou-lhe por entre os lábios finos e delicados. Pensou: "O martírio eleva a voz do pregador ainda mais alto." - Gostaria de tê-lo conhecido em vida.

– Tenho certeza que ele teria gostado de conhecer você - disse Lawrence, com naturalidade. - E nem precisaria esconder sua cauda e suas orelhas. Para ele, você seria a prova viva de que a fantasia do Criador não se esgotou com a criação do homem e dos demais animais.

– Não me tomaria por um monstro ou demônio como tantos humanos cristãos?

– De jeito nenhum. Ele defendia que "a essência suplanta a aparência". Você seria só uma garota incrivelmente linda com extras de loba que tem a capacidade de se transformar em uma loba gigante. Você, Huskins, Hugh, Hildir, Louis, Milicky, Deanna...

Lawrence não observou a contração levemente irritada de uma das orelhas de Horo à menção do nome de Deanna, a cronista de tez pálida, olhos azuis e cabelos muito negros - na realidade uma daimon-pássaro de penas brancas maior do que um homem, conhecida como Alkonost na mitologia eslava - que se revelara mais astuta, manipuladora e sagaz do que ela. Mas imediatamente se deu conta de seu deslize. - D-Desculpe - disse, sorrindo amarelo. - Tenho certeza que Van Bruuz consideraria a existência de todos vocês como um ode à infinita diversidade das criações de Deus. Que nem o Padre Franz, o velho mentor de Fräulein Elsa.

Humpf! - fez a Loba e puxou delicadamente a bochecha dele. - Está perdoado.

Seu olhar ergueu-se para o mudo coruscar das estrelas (a claridade da Lua obscurecia a maioria das estrelas, mas as que podiam ser vistas exibiam um fulgor admirável): o quadrilátero da constelação de Órion com as Três Marias - Mintaka, Alnilan e Alnitaka - no centro, o piscar vermelho de Betelgeuse no vértice nordeste, marcando o ombro direito, e o azul ardente de Rigel no vértice sudoeste, o pé esquerdo do Caçador; a sudoeste das Três Marias, a branca Sírius, a mais brilhante do céu, reluzindo no Cão Maior, enquanto a leste da Cintura de Órion brilhava Procyon no Cão Menor; ao norte, Draco, o Dragão, a Ursa Maior com a Polaris, a refulgente estrela-guia dos navegadores nórdicos (que a chamavam de Tyr), e, a leste, Leo, tendo ao centro da elíptica Regulus, o coração do Leão.

– Outras Terras girando ao redor de outros sóis na imensidão azul do espaço! - ela murmurou fascinada, como que ecoando tardiamente as palavras de seu companheiro. - Mundos onde há também florestas, lagos e cidades cheias de gente! Eu jamais ouvi algo parecido, nem sequer dos Sábios Lobos da minha cidade natal. Não te emociona pensar que neste exato momento pode haver pessoas nesses mundos olhando para nossa Terra como um piscar de luz em seu céu cheio de estrelas, imaginando e se perguntando se aqui vivem seres semelhantes a elas?

– Francamente, Horo, você me vem com cada uma! - Lawrence retrucou alegremente. - Qual a vantagem de se preocupar com hipotéticos homens das estrelas e outros mundos perdidos no espaço que nunca poderemos alcançar? Eu, de minha parte, tenho tudo de que preciso aqui, neste mundo: oportunidades de negócios, boa comida e bebida, e, acima de tudo, a mulher que amo... uma certa Loba tão sábia quanto orgulhosa. Quero viver uma vida tranquila com você, na nossa futura loja, e não voar para as estrelas.

A resposta de Lawrence foi tão completamente aberta que Horo não conseguiu reprimir um riso enquanto afagava-lhe gentilmente os cabelos e o pescoço.

– Simples e direto. O esperado de um mercante de especiarias.

"Mas, afinal de tudo, mercantes são almas pragmáticas."

– Em minhas lembranças de quando era criança pequena em Norwich, minha mãe me contava sobre a fábula do "Homem da Lua" - disse Lawrence, deliciando-se com a fragrância agridoce e suave que emanava da pelagem de Horo. - Que a Lua é um homem com um atado de feixe de lenha às costas, que foi posto de castigo no céu por Deus porque ousou cortar lenha no sabá, isto é, no domingo, que é o dia consagrado ao Senhor.

"Oh?" Horo torceu de leve os lábios. "Meu companheiro falando de sua infância... Por todos os pelos da minha cauda, parece que esta noite é realmente mágica!"

Era tanta coisa que ela ignorava sobre aquele homem!...

Horo tornou a olhar para o céu enluarado e disse: - Segundo uma fábula ou lenda que corre há milênios em Yoitsu e que dizem remontar ao Tempo Antes da Lua, um vilkas de nome Shonod, filho do Lobo Cinza e da Loba Ruiva, uivou e cantou para chamar a Lua à existência. Sua entrada no céu noturno foi acompanhada de enchentes, de terremotos e de tempestades como nunca houveram antes e nem depois.

– Todas as suas histórias versam sobre lobos, hein?

– Isso acontece porque eu e meus irmãos de clã somos vilkai. Caso fôssemos meskai, daimons ursos, então todas as minhas histórias versariam sobre ursos.

– Existem lendas de Yoitsu que envolvem vilkai e seres humanos formando casais e tendo filhos? - Lawrence perguntou de supetão.

Horo foi pega desprevenida com isso. Era raro ele falar tão direto assim. Ela olhou perplexa, mas imediatamente em seguida deu uma gargalhada cristalina. O cálido alento proveniente de seus pulmões que escapava pelos lábios coralinos formava pequenas nuvens de vapor ao entrar em contato com o ar frio.

– Seu bobo, quer saber se posso engravidar de um ser humano? Ou tudo que você quer é ouvir mais histórias da minha terra, me espremer como um limão, igualzinho àqueles aldeões que me embebedaram com vinho para me fazer contar histórias sem parar?

Cerca de um mês atrás, a caminho do norte, Lawrence e Horo pararam em uma aldeia praticamente isolada do restante do mundo para se reabastecerem com água doce, quando foram cercados pelos moradores ávidos de ouvir tudo sobre o vasto mundo "lá fora". Estimulada pelas generosas doses de vinho gratuitamente oferecidas, Horo começara a narrar a odisseia do casal de viajores, desde o sul e para o norte nevado; e quanto mais ela falava, tanto mais vinho lhe ofereciam os aldeões para incitá-la a compartilhar mais histórias - reais ou imaginárias. Após uma bebedeira inqualificável, Horo provavelmente teria sucumbido de exaustão de tanto falar ("entra o vinho, sai o segredo", dizem os sábios judeus) e no dia seguinte acordaria com uma tremenda ressaca, se Lawrence não tivesse intervindo de forma drástica - tirando Horo do meio dos moradores sedentos de histórias emocionantes e levando-a consigo, um tanto ou quanto grogue, para um colchão improvisado feito de feno no armazém ao lado da casa do ancião da vila, onde ambos, Loba e mascate, passaram a noite e fizeram amor.

Por outro lado, Horo sabia que Lawrence queria ter filhos, porém não às custas de tê-los com qualquer outra que não fosse ela. ("Ter você é tudo que eu preciso para ser feliz, com ou sem filhos", ele dissera-lhe mais de uma vez, e para ela, era como se ele dissesse, "não troco a minha Loba por fêmea humana nenhuma.")

E ela não podia dizer a ele que as fêmeas vilkai, para lá de serem ferozmente seletivas e orgulhosas, ainda tinham dificuldade para engravidar, razão pela qual sua raça sempre fora pouco numerosa. E no entanto eu lhe daria uma prole, se pudesse, ainda que ao custo de minha vida quase milenar.

– Foi só uma bobagem minha - replicou Lawrence laconicamente. Ele tentou se pôr sentado, mas foi detido pela mão de Horo, que o segurou com força sobrenatural.

– Escute... vou contar outra história. Milhares e milhares de anos atrás, muito antes de a humanidade aprender a construir uma civilização digna desse nome, homens e lobos coexistiram em paz, vivendo livremente em estado selvagem, ao invés de terem medo uns dos outros. Foram parceiros na manutenção do equilíbrio da Terra, nossa Mãe, respeitando-se mutuamente e caçando para sobreviver. Naquela época, houve uma loba de nome Susi... ainda era apenas uma loba cinzenta, sem nada de especial em relação aos seus irmãos e irmãs, com quem gostava de caçar e matar presas grandes e pequenas. Mas uma noite, tudo mudou. Eles encontraram uma mulher em meio a uma nevasca inesperada; ela já estava totalmente enfraquecida pelo frio, fome e o fardo da gravidez. Em suma, uma presa legítima a ser abatida com um golpe de misericórdia e ter sua carne consumida. Todavia, em uma atitude inexplicável, Susi resolveu proteger aquela mulher e a futura cria dela, mesmo sem saber por quê. Até que afinal a mulher decidiu desvelar seu disfarce. Tudo não passara de um teste. Ela era um espírito lobo ancestral que chegou a adquirir forma humana no intuito de testá-los. Em seguida, um turbilhão de neve e ventania envolveu a mulher, que por um instante sumiu de vista. Quando o turbilhão se dissipou, a mulher havia se transformado em uma grande loba branca. Que outra não era senão Borz-Naana, a Mãe Loba. Ela acariciou Susi com o focinho e falou-lhe na linguagem dos lobos e logo a seguir desapareceu na escuridão da noite. A jovem loba não entendeu o sentido das palavras do espírito e apenas se recolheu para dormir.

Horo fez uma pausa. Acariciou com as pontas dos dedos o contorno da orelha de Lawrence (sentindo-o se arrepiar), percorrendo-lhe as circunvoluções, e ficou imaginando que aparência teria com orelhas humanas ao invés de lupinas.

– Pela manhã Susi despertou diferente. Os outros lobos temeram-na, o que a deixou confusa. Susi então olhou para si própria; percebeu que havia se tornado várias vezes maior do que um lobo normal, e seus pelos tinham ficado da cor da neve. Além disso, ela agora possuía a capacidade de abstração, compartilhada por todos os homens, mas não pelos animais. Vieram-lhe à mente as palavras de Borz-Naana, referindo-se a ela: "Tu, que és a mais sábia dentre tua matilha, não te chamarás mais Susi, a loba, mas Asena, a Sábia. Tu e todos os teus descendentes serão seres superiores quer aos lobos, quer aos homens." Com o tempo descobriu outros novos dons. Aprendeu que poderia assumir uma forma aproximadamente humana, se bem que mantendo seu rabo, orelhas e personalidade de loba. No entanto, muitos anos ainda seriam necessários até ser capaz de dominar a transformação. Adquiriu a capacidade de entender e falar todas as línguas humanas, e também a linguagem dos animais e das plantas, comunicar-se com as pedras, compreender o hálito do vento, dialogar com a própria Terra. Foi quando soube que havia se tornado imortal.

Ela sorriu, e a dentição branca e perfeita, dominada pelo par de caninos afiados, cintilou com o resplendor das chamas. Mais uma vez, a sua mão tornou a acariciar a cabeça grisalha do companheiro humano.

– Foi então que começou a ser chamada de Asena, a Sábia. Sim, ela foi a primeira Loba Sábia de Yoitsu... Minha ancestral mais longínqua... Presenteada pelos espíritos ou deuses elementais da Terra com um dom divino, a razão, o mais precioso de todos os dons. E com o dom da imortalidade. Apesar disso, ou quiçá, por causa disso, não se sentia feliz, pois ninguém era igual a ela, fosse animal ou humano. Padecia de solidão, a mais letal de todas as doenças. Nas aldeias camponesas a viam como uma deusa. Até que um dia Asena encontrou uma criança ferida, um garoto que sobreviveu a uma batalha entre humanos, e cheia de compaixão, ela o cercou de cuidados, e o acalentou, e o guardou como se fosse sua própria cria. O menino cresceu e, contra todas as expectativas, ele e Asena se apaixonaram. - Horo hesitou um instante e acrescentou: - E a Loba, impregnada da semente do jovem humano, escapou dos inimigos deste - humanos ou outros - , atravessou o Mar Ocidental, cruzando as planícies de Dolan para chegar à floresta de Yoitsu, e parou, por fim, em uma caverna perto das negras montanhas de Roef. Lá ela deu à luz dez meninos meio-humanos, meio-lobos. Destes, Ashina Tuwu tornou-se seu líder e fundou o poderoso clã Ashina, uma dinastia de Chonos, que é outro nome para Vilkai. Muitos deles optaram por permanecer para todo o sempre transformados em lobos gigantes. Outros migraram para o leste e para o sul, onde, valendo-se de sua força sobre-humana e imortalidade, instalaram-se como reis-deuses, governando as tribos nômades de humanos de olhos puxados e pele escura que viviam nas estepes.

Sua voz era hipnotizante. Com a cabeça nos joelhos dela, confortável sobre a pelagem do rabo macio e cheiroso como um travesseiro fofo, Lawrence parecia estar sonhando de olhos bem abertos. Chegou a admirar-se de não dormitar nenhuma vez (e dando graças a Deus por isso! Era perfeitamente capaz de antecipar a ira da Loba caso tivesse a descuidada ousadia de cochilar durante a história que ela contava, apesar de a própria Horo ter feito isso mais de uma vez, caindo no sono enquanto ele explanava sobre algum assunto maçante ou fora dos seus interesses).

– Talvez você esteja se perguntando o que aconteceu com o companheiro humano de Asena. - Horo fechou os olhos por um instante e tocou as pálpebras com os dedos; depois relanceou o olhar para Lawrence e suspirou pesadamente, cansada por ter falado tanto. Sentia-se como se finalmente pudesse respirar de novo. No entanto, em sua fisionomia lia-se o firme propósito de compartilhar mais com ele, e não apenas histórias. Era um ato de amor. - Como ficou implícito, ela acasalou-se com ele, misturou seu sangue com o dele, um mortal. A consequência foi que, através de seu ato de procriação, Asena e seu jovem macho humano tornaram-se um só corpo. Como resultado, e por causa de Asena, a Sábia, aquele homem ganhou herança Lupina. Ainda assim, contudo, ela nunca foi plenamente humana. Sempre foi antes de tudo "um lobo no corpo de um lobo". Somente seu parceiro e os filhos e filhas deles foram "lobos em corpos humanos". No curso dos séculos muitos desses descendentes da Loba se uniram a seres humanos que não possuíam herança Lupina; assim, o sangue Lupino foi diluído, mas nunca desapareceu por completo. Dizia-se que uma das muitas virtudes do sangue de Asena consistia em abençoar com a imortalidade a pessoa que, tendo algum tipo de herança vilkas, o ingerisse; essa pessoa se tornaria um vilkas como a própria Asena, podendo transformar-se à vontade em Lobo ou humano. E mesmo aqueles que não possuíam nenhuma ancestralidade vilkas, caso bebessem o sangue dela, tornar-se-iam vilkai semi-imortais, que só poderiam ser mortos por um vilkas legítimo, portador da herança de Asena. Com o rolar do tempo e o transcorrer dos séculos, eles se esqueceram como era ser um ser humano. Agora eles eram os deuses da floresta, imunes ao tempo e às doenças que ceifavam as vidas de homens e animais.

Horo deliberadamente omitiu a parte que menos gostava da história. Asena, malgrado sua sabedoria proverbial, falhara clamorosamente em transformar em imortal seu amante humano e ele morrera de maneira horrível. Ou Asena jamais lograra persuadi-lo a beber seu sangue e ele fora morto por invasores. Horo conhecia as várias versões da lenda, todas com o fim trágico. Asena, grávida, chorando inconsolável, julgando-se amaldiçoada com a vida eterna, clamara aos deuses e forças conhecidos e desconhecidos que lhe retirassem aquele dom maldito. Não obstante, houvera de continuar para trazer à vida seus dez filhotes que iniciaram a linhagem de Horo.

Assim rezava a lenda de sua família.

O que mais temera era ter a sina de sua ancestral. Temera que a história se repetisse com ela. Não fora senão por isso que Horo relutara em reconhecer o amor que sentia por Lawrence e em aceitar o amor dele por ela. Somente a persistência daquele tolo humano a impedira de desistir de seu sonho e a encorajara a desafiar a crença de que ambos os mundos, o dos daimons e o dos humanos, não podiam se misturar, mas deveriam permanecer separados por toda a eternidade.

As histórias de vida são mais importantes do que as lendas do passado! Não havia ela dito tais palavras em alto e bom som, à impassível Dean Rubens quando fora procurá-la em segredo, à noite, no bairro dos alquimistas de Kumerson, onde residia a Alkonost, a fim de persuadi-la a mentir para Lawrence sobre ter ouvido lendas acerca de Yoitsu não ter sido destruída? Tudo muda com o tempo, por isso só podemos valorizar o que temos agora. Foi o que aprendera com aquele comerciante tolo que ora era o alvo de sua atenção.

Finda a narrativa, ela inclinou-se, aproximando seus lábios do ouvido de Lawrence, e disse com um fio de voz: - Bem? Você queria ouvir uma lenda de Yoitsu que mostrasse um vilkas e um ser humano formando um casal, e eu lhe contei esta lenda que me foi passada pelos meus pais. Ela é uma história tradicional transmitida oralmente em Yoitsu através de cem gerações. É especial para mim.

No mundo real, contudo, Horo jamais soubera de um semelhante de sua raça que tivesse se casado com um vida-curta e produzido uma prole. Na Yoitsu onde havia crescido não existiam uniões interespécies. Não era simplesmente algo proibido; era inconcebível.

Quase podia ouvir as palavras preconceituosas de Sharmin, eivadas de desdém, reverberando em sua memória: "Pela Juba do Lobo Celestial! Não acredito que qualquer fêmea vilkas se prestaria a ter relações com um vida-curta."

– Francamente, estou aturdido! - Lawrence confessou, erguendo-se e pondo-se sentado sobre a relva. - Suas histórias são magníficas, Horo. Se entendi corretamente, está me dizendo que sua linhagem tem alguma mistura de sangue daimon com sangue humano?

– Se formos dar crédito à História Oral, sim. Por outro lado... - Ela virou o rosto e olhou para o horizonte estrelado, na direção do norte. Seus olhos fitavam a Estrela Polar do Setentrião ou Ursa Menor, que brilha sobre o Polo Norte Geográfico do nosso planeta. - Segundo outra lenda, Asena enamorou-se do Guardião do Vento Norte, que tomara a forma de um grande lobo com uma juba azul-celeste para seduzi-la. Durante duas estações, o Vento Norte viveu como Kuzey, um belo lobo cinzento, marido de Asena. Ela estava feliz por ter outro companheiro também imortal. Durante um Inverno e uma Primavera, ressoaram pela taiga os uivos de amor dos dois lobos imortais, brincando e caçando juntos, se amando à maneira dos lupinos. Mas sua alegria e dias de felicidade não eram para durar. Porquanto não há vento que não seja inconstante, ao passo que o amor de uma loba é fiel e inflexível. Um dia, Kuzey, o deus do Vento Norte, evolou-se, virou vento de novo. E saiu voando da vida de Asena, que viu-se abandonada prenhe, com o coração despedaçado. Poucas semanas depois, no recesso das florestas de Yoitsu, ela deu à luz uma ninhada de sete filhotes grandes e de aparência lupina. Eram metamorfos lupinos de natureza mágica e divina, que aprenderam com seu pai, o Khan dos Ventos do Norte, a serem fortes e poderosos na magia. A lenda e a Tradição dizem que foi deles que a nossa raça herdou a habilidade de mudar de forma. Nossa linhagem cresceu forte cruzando com lobos-de-inverno e surgiram muitas tribos de valor. - Virou-se para ele e disse com ar cansado: - O que significa que somos descendentes do Vento Norte por um dos ramos familiares. - Estendeu os braços em sentido horizontal. - Nestas veias corre o sangue do Rei dos Deuses dos Ventos do Norte, se nos basearmos na tradição dos Anciões Lobos. Era a história favorita de Yue, Intin, Paro e Myuri.

Pensou: "Que ironia! Para muitos de nós, inclusive Paro e Myuri, sempre foi mais aceitável que a loba matriarca alfa de um dos cinco clãs principais de Yoitsu teve por marido um deus elemental do Ar das terras do Norte Gelado, mas que a abandonou cruelmente para soprar noutras direções, do que um reles humano que a amou até o fim de sua breve vida mortal.

Percebendo o cansaço dela, Lawrence abraçou Horo e apertou-a junto de si.

– Você... - o humano tartamudeou indeciso, mas Horo encarou-o com um olhar suplicante que dizia "por favor, não diga que sou uma existência excepcional..."

Logicamente o seu orgulho como uma vilkas e uma Sábia Loba não iria deixá-la verbalizar uma súplica tão deplorável.

– Tudo bem - disse ele. - Chega de contar histórias por esta noite.

– Obrigada por tudo - suspirou Horo, abanando sua cauda.

"Obrigada... Obrigada por você existir em minha vida", pensou, comovida. Graças a ele - esse humano tolo - seu sonho havia virado realidade; o temor e a adoração excessiva ficaram no passado. Ele a libertara disso. Ela que detestava ser temida e adorada como uma divindade. Mal conseguia crer a certa altura chegara a pensar sobre as coisas a ponto de querer empurrá-lo - o único a amá-la de forma digna - para fora de sua vida. "Fêmea tola! Sim, eu não mereceria ser intitulada de 'Horo, a Sábia', mas sim de 'Horo, a Tola', ou de 'Horo, a Estúpida', se o tivesse descartado como a um cão vadio por cegueira e orgulho."

Ela deitou a cabeça no peito dele e indagou, com voz melíflua: - Então? Você gostou dos meus relatos épicos?

– Claro que sim. Mas... - ele ponderou – Eu não sei por quê, mas gostei mais da lenda do humano criado por Asena.

– Porque você é humano?

– Não. Me fez pensar em algo como Rômulo e Remo com o Elixir da Longa Vida.

Ela deu-lhe um olhar desconfiado. - Rômulo... e Remo? Já é a segunda vez esta noite que você os menciona. Quem são ou quem foram eles?

Ele riu. - Esta é uma antiga lenda sobre a fundação de Roma. A cidade que é hoje em dia a sede da Igreja e que, há mil e tantos anos, era a capital de um grande império, conhecido como o Império Romano. Resumindo, dois irmãos gêmeos, Rômulo e Remo, tendo sido abandonados ainda recém-nascidos dentro de um cesto nas águas do rio Tibre, foram encontrados por uma loba, que os amamentou e cuidou deles - mais ou menos como a sua Asena - até que os meninos foram achados por um pastor de ovelhas que, junto com sua esposa os criou como seus filhos. Quando ficaram adultos, Rômulo matou Remo em uma disputa de poder e fundou a cidade de Roma, da qual se tornou o primeiro rei. - Sorriu maliciosamente. - Por sinal, eu ouvi de um homem de negócios da Itália que o falecido Papa Sisto IV doou à cidade de Roma uma escultura de bronze da loba em tamanho natural, batizada de "La Lupa Capitolina", de dois séculos atrás, e à qual foi anexada outra peça, também de bronze, representando os gêmeos sendo amamentados, de autoria de um dos irmãos Pollaiuolo, há coisa de uns anos.

Horo empinou as orelhas, curiosa. - Uma estátua de bronze em homenagem a uma loba comum, mesmo que lendária, e ainda por cima doada por um papa?

Aquilo parecia-lhe inacreditável. Ela própria, mesmo tendo sido adorada como uma deusa da agricultura e da colheita em Pasloe e outros vilarejos rurais, jamais merecera uma estátua por parte dos habitantes locais. Nada além de uma efígie gigante feita de palha ou vime e que era confeccionada por ocasião do Festival da Colheita, que acontecia uma vez por ano. "Trata-se de uma provocação pueril", disse mentalmente para si mesma. "Entretanto, sei que ele não está mentindo. As palavras podem mentir, mas o corpo sempre fala a verdade. E as cores áuricas, com suas tonalidades fugidias, cambiantes e sutis."

– E quem disse que se tratava de uma loba comum? - retorquiu Lawrence. - De acordo com a lenda romana, foi um deus menor, de nome Pã ou Lupercus, que tomou a forma duma loba. Nunca estive em Roma, mas me contaram que no monte Palatino, que é uma das sete colinas de Roma, existe uma gruta chamada Lupercal. Foi onde, diz a lenda, Lupa, a loba amamentou os bebês Rômulo e Remo por ordem do pai deles, o deus Marte. - Torceu os lábios com um sorriso de canto faceiro. - Isso mesmo, eles eram os filhos de um deus e de uma mortal. Ou, pelo menos, é o que conta a mitologia pagã.

– Oh?

As orelhas de Horo mexeram-se, e sua cauda longa e peluda agitou-se levemente. Filhos de um deus e de uma mortal... um deus menor metamorfoseado em loba, uma gruta... Quão inesperado.

– Veja você, como vencem os símbolos o tempo e a distância! - Horo murmurou do fundo da garganta, brincando com um talo de capim entre os dedos. (Aprendera com Lawrence que a cidade de Roma situava-se na Itália, uma longa península na extremidade meridional da Europa, banhada por um grande mar denominado de Mediterrâneo.) - A Grande Mãe Loba prefigura a própria Terra, que é viva e mãe de todos os viventes. A gruta simboliza o "útero da Terra", nossa Mãe. Nascer é sair do ventre da Mãe; morrer é retornar às entranhas da terra, do corpo da Mãe. É útero e túmulo, porque vida e morte são entrelaçadas em uma unidade, que nem amantes, ou gêmeos unidos pelo nascimento.

Veio-lhe à mente o mito do deus-lobo de Lupi (e o boato persistente acerca dos ossos gigantes desse mesmo "deus"), um vilarejo pagão do Norte cuja população fora quase toda massacrada pelos Cavaleiros Teutônicos em seu afã de erradicar as crenças pré-cristãs nas regiões Balto-eslavas para substituí-las pelo Deus da Igreja. Ela e Lawrence ficaram sabendo por intermédio de Todt Col, o menino nascido no povoado setentrional de Pinot que decidira estudar lei canônica a fim de que, subindo na Hierarquia da Igreja, pudesse proteger seu povo criptopagão contra o fanatismo cristão.

E ainda os mitos e lendas das tribos turcas e tártaro-mongóis - os "povos humanos de olhos puxados e pele morena" - das estepes eurasiáticas, onde apareciam igualmente um Lobo e uma Loba (ou Corça Branca) sobrenaturais que, ao se casarem entre si, ou com um ser humano, teriam dado origem a tais tribos. Essa crença era partilhada pelos chechenos, aguerrido povo montanhês originário do Cáucaso Norte da Rússia. Versões corrompidas das histórias de Yoitsu, da Tradição oral de sua própria raça! Horo as lera nos livros velhos de Rigolo Deidre, o jovem e alegre historiador de Lenos (e membro e escrivão do poderoso Conselho dos Cinquenta, que monopolizava as decisões relativas ao comércio de peles), quando ela e Lawrence visitaram a cidade durante sua jornada em direção ao norte, um ano atrás, à procura de informações e lendas sobre a terra natal da "deusa" loba.

Estava fora de qualquer dúvida: antes de Horo houve outros vilkai, quer dos clãs de Yoitsu, quer de outras linhagens, que empreenderam suas viagens rumo às plagas do Sul, por motivos diversos e em épocas sucessivas. Por sua força, tamanho, longevidade e poderes sobre-humanos, eles se impuseram com facilidade às tribos de humanos que encontraram pelo caminho. Fizeram-se deuses. Sem dúvida passaram seus próprios mitos genealógicos - eivados de simbolismo místico e arquetípico - aos seus protegidos humanos, que os incorporaram ao patrimônio espiritual das tribos e nações ainda incipientes. Não era impossível que alguns desses lobos solitários atingiram a península chamada Itália, no extremo sul do continente, onde entraram em contato com os que viriam a ser ancestrais do povo romano, a quem ensinaram o mito da Mãe Loba - símbolo da Terra, a mãe universal. Sim, raciocinou Horo, isso explica as "coincidências", as semelhanças nos mitos sobre os Deuses Lupinos que apadrinharam povos humanos no norte e no sul do continente.

Suas conjecturas foram interrompidas pela voz de Lawrence: - É, Frau Deanna tinha razão. Existem muitas lendas que envolvem os seres humanos e os "deuses" se tornarem casais e até terem filhos híbridos, que participam da natureza paterna e materna.

Ela olhou para ele, e ele estava sorrindo.

– Rômulo e Remo, Aquiles, Hércules, Helena de Troia, Castor e Pólux, Merlim, Brand, os filhos de Volsung, os filhos de Asena... Ah, e pra não falar do nosso bom amigo Herr Milicky, que nada tem de lendário.

Jan Milicky, aliás, Kristoph von Hebrasche, o mercador-mor que presidia a Câmara Municipal de Souverän, era o filho de um meska ou daimon-urso com uma humana, e sobrevivera à sua própria esposa humana, porém sem filhos.

Horo nada disse e Lawrence continuou: - Por sinal, sabia que ela era cultuada como uma deusa ou semideusa pelos pagãos eslavos e diversos povos do Mar Báltico? Para eles, a mulher-pássaro era o "pássaro do paraíso", a daimon alada que personificava a vontade de Deus. Tipo um anjo. Só não entendo por que não teve filhos em seu casamento com o tal clérigo viajante. Enfim, talvez o caso de Frau Deanna seja mais exceção do que a regra.

E aí está você, continuando em sua própria linha de raciocínio. Horo reprimiu o riso. Suas orelhas moveram-se de modo quase imperceptível. Como todos de sua raça, ela possuía o talento inato da "psicolinguagem" (como seria denominada 500-600 anos mais tarde no Ocidente); e não havia nenhum outro daimon-lobo de Yoitsu mais capaz que Horo, a Sábia, para interpretar com precisão pequenas nuances de inflexão de voz, elevação das comissuras dos lábios e outros tantos sinais de expressão corporal e expressão facial, mais do que as simples palavras ditas. Seu companheiro ficara preocupado que ela não tivesse certeza se queria que sua relação com ele progredisse porque tinha dúvidas se seriam capazes de procriar; e estava tentando, à maneira canhestra dele, animá-la. Afinal de contas, conforme observado por aquela pássaro travestida de humana que vivia no passado, escondendo-se por detrás de antigos tomos empoeirados, existiam várias lendas de "deuses" e humanos formando pares ou casais mistos, e de tais uniões podiam nascer rebentos.

"Tolo! Como se a Sábia Loba Horo, uma Loba orgulhosa, necessitasse de lendas para reforçar autoconfiança. Então é esse seu jogo bobo, não é? Esquece-se de que sua mente é um livro aberto para mim? Tolo, tolo e tolo. Em verdade, você continua tão ingênuo e infantil como sempre foi desde que nos conhecemos."

Talvez fora precisamente o que a fizera amá-lo.

– Hmm... Quer-me parecer que não foi para encontrar a minha cidade natal que você resolveu imergir-se na leitura dos alfarrábios poeirentos do homem-criança de Lenos - disse ela, referindo-se ao jeito simples e alegre de Rigolo, que mais parecia uma criança com seus brinquedos (e acima de todos o magnífico jardim fechado de vidro que criava um efeito estufa, no pátio interior da mansão). Apanhou o odre e engoliu o que restava do vinho já morno em um gole só.

– De Herr Rigolo, sim - Lawrence retificou tranquilamente (Horo amiúde voltava ao velho hábito de não chamar uma pessoa pelo nome). - Enquanto você procurava por histórias sobre seu antigo lar, Yoitsu, ou sobre si mesma, eu procurava por lendas onde os seres humanos uniram-se ou tentaram unir-se a quaisquer criaturas sobrenaturais, gerando descendentes humanos.

– Ainda antes disso, não foi para ajudar a encontrar a minha cidade natal que você resolveu imergir-se na leitura das ainda mais poeirentas coletâneas de lendas das divindades pagãs reunidas pelo falecido monge de Tereo. - Aquilo fora uma declaração, não uma pergunta.

– Pelo Padre Franz. E sim, no fundo eu não queria que você voltasse para sua casa. Mas sendo eu um homem de palavra, um membro da Guilda Mercante Rowen, estava disposto a cumprir o contrato verbal até o fim com você, e tentaria ajudá-la no que pudesse. Aliás, por falar nisso, lembra-se da noite, na igreja de Tereo, em que você me pediu pra ler no seu lugar os livros do Padre Franz que falam de deuses e espíritos pagãos? Foi o que fiz, enquanto você dormia com a cabeça no meu colo. Virei a noite lendo à luz de vela. Mitologia não é o tipo de coisa que interesse a mercantes porque não é um negócio lucrativo como a religião. Mas convenhamos que nesse caso em particular, eu tive meus motivos para tanto. A tarefa não foi nada fácil, mas no final minha busca foi recompensada. E não foi pelo fato de ter achado aquele velho pergaminho de pele de carneiro em que as lendas do Urso Caçador da Lua foram registradas. Descobri que tinha havido "deuses" ilegítimos, filhos de deuses com mortais.

– Tolo como sempre! - No canto superior direito da boca de Horo (que sorria) apareceu um canino pontiagudo.

"Acha que já naquela ocasião eu não tinha lido nas entrelinhas e discernido suas segundas intenções? Você em nada mudou. Ainda um jovem lerdo e com pouca experiência em assuntos fora dos negócios. E, no entanto, por adquirir bocadinhos de conhecimento parcimoniosamente distribuídos aqui e ali, tem a ingênua pretensão de exibir erudição perante a Sábia Loba Horo? Ah, garoto, você me subestima e se superestima. Os peixes dentro dos meandros de sua mente não nadaram nem tão longe nem mais livremente no Grande Mar de sabedoria e conhecimento."

Isto fazia com que ela sentisse uma vontade enorme de importuná-lo, brincar com ele como o predador brinca com a presa.

Horo, com a habitual naturalidade, sentou-se no colo de Lawrence e colocou seus braços ao redor do pescoço dele. Lawrence puxou os cobertores sobre ambos e estreitou-se contra si.

Vamos preparar nossa pequena armadilha. Ela direcionou a boca para a orelha dele, e seus rostos quase se tocavam. - Ouça, você... Mitos são como sonhos coletivamente sonhados. Lendas são mitos mal contados ou fatos distorcidos pela imaginação popular ou pela licença poética dos contadores, geração após geração, até se tornarem irreconhecíveis. Compreende?

– Compreendo - ele apressou-se em responder; o roçar das orelhas felpudas de Horo (intencional) contra suas bochechas fazia-o sentir um comichão de excitação. - Mas como você mesma admitiu, toda lenda contém um pouco de verdade e de mentira. E sendo eu um comerciante, conheço o poder da propaganda boca a boca, alguns rumores bem colocados no mercado, e sei perfeitamente que uma história criada deve conter no mínimo uma parcela de fatos verídicos para que possa ser defendida e sobreviver na memória das pessoas. Não se cria uma lenda do nada... uma história partindo do nada. Pegue seu próprio exemplo, Horo, ou o caso de Huskins, o Carneiro Dourado, ou ainda o da deidade-serpente gigante que o povo de Tereo chama de "Herr Truyeo": a existência de vocês só foi afirmada em lendas e no entanto é real.

Rejeitando minha noção, incapaz de encadear as declarações feitas por mim em sua mente. Ele está prestes a cair tolamente na armadilha que lhe preparei. Depois de rir em seu íntimo, Horo pousou o queixo no ombro de Lawrence. Respirou fundo, várias vezes, antes de curvar os lábios num sorriso maldoso que não foi visto nem notado por Lawrence. Disse, em voz baixa: - Seu raciocínio é deveras incrível. Pois bem, não adiantaria continuar a calar os fatos. Tenho um segredo para lhe revelar. Um segredo que envolve toda minha estirpe. Uma parte da lenda de Asena é comprovadamente verdadeira... e não estou falando de amor interespécies ou filhos mestiços.

Ela fez uma pausa de efeito dramático (a fim de deixar Lawrence "com a pulga atrás da orelha") e indagou, esticando as palavras: - Você quer viver para sempre?

Lawrence deu uma risadinha condescendente. – Você sabe que é impossível!

"E você, acaso sabe?", ela retorquiu mentalmente com ironia.

De repente, Horo empertigou-se, e, ainda sentada no colo de Lawrence, curvou as costas para trás, como se prestes a uivar, porém apenas espreguiçou-se e bocejou para o céu enluarado (fazendo Lawrence recordar-se de uma noite idêntica às margens do Rio Roam, não muito tempo antes, com Horo deitada por cima dele). Sob a lua argêntea, suas orelhas lupinas se encontravam rodeadas de um brilho cinza-azulado mortiço; e ao se moverem, pareciam polvilhar luz, a luz prateada do luar.

Era uma verdadeira teofania.

– Ouça, você! - disse Horo em tom solene; e a cada palavra que proferia, uma baforada de ar gélido eclodia de sua boca, condensava-se numa nuvem de vapor branco. - Nós, que somos a progênie da estirpe de Asena, a Sábia, trazemos em nosso sangue o germe da imortalidade corporal. Porque o sangue, ensinam os Sábios Lobos de Yoitsu, nada mais é do que uma condensação da sutilíssima energia universal a que chamamos Puha-henki, a força vital que atravessa e interpenetra a tudo e a todos, sejam seres vivos ou inanimados. Recorde-se da lenda acerca do sangue de Asena, que uma vez ingerido por uma pessoa com algum tipo de herança vilkas, transforma essa pessoa em vilkas também. Você compreende o que isso significa, não compreende? Desde que eu e você nos tornamos uma só carne, em Souverän e depois na aldeia sem nome, você ganhou herança Lupina, tal qual o humano com quem Asena acasalou. Por conseguinte, caso você esteja disposto, eu posso lhe dar meu sangue e transformá-lo em um Lobo igual a mim, para assim viver por séculos ao meu lado, como um de minha espécie. É nosso maior segredo, que acabo de lhe expor.

E antes que Lawrence pudesse argumentar em contrário, Horo antecipou a objeção - mais que óbvia - que lhe vinha à mente. "Sorriu interiormente. "Você é tão previsível quanto o nascer e o pôr-do-sol... meu tolinho."

– Sei o que está pensando - disse ela, sem dar nenhuma chance para o humano falar. - "Que necessidade você teria de viajar para o sul em busca do Elixir da Longa Vida, um elixir mágico que só existe em lendas, se o seu próprio sangue tem o poder de prolongar a vida por séculos? E por que só está me contando agora?" Pois ouça-me, você. - Ela baixou as orelhas e a cabeça. Disse, em tom funesto: - É bom que saiba que existem riscos de vida envolvidos! Se a transformação falhar, você morrerá horrivelmente... gemendo de dor. Foi por isso que nunca me arrisquei a tentar transformar um humano em Lupino. E nada contei antes, pela simples razão de que antes nós não éramos um casal, mas agora somos. - Quando ergueu a cabeça para encará-lo, seus orbes rubros pareciam dois rubis cingaleses ardendo ao luar. Por sua face rolaram duas pequenas lágrimas cristalinas de emoção (simulada). - Você conquistou o direito de saber... e escolher.

Os orbes cinza-azulados de Lawrence se arregalaram, trêmulos, e os cantos de sua boca caíram um centímetro. Seu rosto era de perplexidade. Horo gostou de ver isso. Achou que aquela devia ser a expressão no rosto de Lawrence quando a astuta "raposa" loira de frios olhos azuis (Fruhl/Eve Boland) lhe propusera vender, ou melhor, penhorar sua companheira de viagem (a própria Horo) em troca de um vultoso empréstimo, em dinheiro, visando penetrar no restrito comércio peleteiro de Lenos.

"Meu tolinho... Fiz-lhe uma pequena maldade."

Horo inclinou-se para ele, o cabelo sedoso ruivo-acastanhado e as orelhas tocando-lhe a face, e seu sorriso exibiu as presas pontiagudas que brilharam na luz frígida do luar. (Lawrence não possuía o dom da clarividência, sendo-lhe impossível ver os clarões que eram manifestações astrais e mentais de malícia e brincadeira na cor da aura de bioenergia que fluía à volta de Horo.)

– O que é que você tem a dizer acerca disso, Kraft Lawrence? - ela perguntou de maneira provocante porém séria (dizendo seu nome completo, o que era excepcional), com seus olhos fixos nos dele. "Direto para a minha armadilha", pensou deliciada.

A ideia paralisou o fôlego de Lawrence em sua garganta e ele ficou aturdido por um instante. Os pensamentos atropelavam-se em seu cérebro, desconexos. No instante seguinte Lawrence se encontrava caído de costas na relva e Horo estendida por cima dele, rindo sonoramente, e a cada risada a boca da garota loba expelia uma golfada de névoa branca. As orelhas para trás e a cauda para cima balançando vertiginosamente mostravam que estava feliz, confiante e excitada.

– Você é verdadeiramente adorável e divertido - disse ela.

"Decididamente, não é páreo para a atuação da Sábia Loba Horo."

– Você é diabólica - ele revidou, ao constatar que mais uma vez, caíra em uma esparrela de Horo. Mas Lawrence não se importava muito com isso, porque sentia-se feliz pela simples presença de Horo, por tê-la consigo. Era preferível ser provocado por ela do que reviver os dias de mascate solitário, estrada afora, antes que a garota loba entrasse em sua vida.

– Dessa forma, estou contribuindo para evitar que nosso relacionamento caia na rotina - disse Horo com um sorriso falsamente inocente. - Ver a sua cara de espanto valeu como ganhar mil moedas de prata Witten.

– Witten? Sua tola, a moeda da Hansa Teutônica vale menos que o Trenni e tanto quanto a Lute de prata - redarguiu altivamente Lawrence, que para não se dar por vencido resolveu entrar na brincadeira. - Nada de depreciar o preço da minha cara de espanto, certo? Mil moedas de prata Trenni é o valor mínimo aceitável, nem um tostão a menos!

Era surreal. Ao ouvi-lo chamá-la de tola e ainda por cima contender com ela sobre câmbio monetário e o preço atribuído à expressão embasbacada dele, Horo não resistiu e explodiu numa gargalhada escandalosa, jogando a cabeça para trás, sacudindo a cauda freneticamente. Coisa de macho renitente! Posso espancá-lo moralmente, que ainda assim ele insistirá em tentar manter sua compostura e controle perante mim.

– Retiro o que disse. A sua comicidade não tem preço.

Ainda deitado na relva amarelada, Lawrence apoiou-se nos cotovelos.

– E, para seu governo - retrucou com falsa altivez - , saiba que suas lágrimas de lobo não me enganam mais desde Winfield. São tão falsas como o "Pé de dragão" que vendi uma vez... ou os ossos dos Reis Magos ou as penas do Espírito Santo na forma de pomba que algumas igrejas chegaram a comercializar.

– Oh? - fez Horo, sorrindo provocante. Ela se sentou na barriga de Lawrence e pôs as pernas de cada lado do corpo dele. Que macho teimoso e obstinado!

"Mas por um segundo você vacilou em sua convicção e quis acreditar, não?"

Ele agarrou seus ombros esguios. - No final das contas o seu sangue de descendente de Asena não tem o poder de ressuscitar os mortos, nem de dar vida eterna a quem o beber.

– Não mais do que a carne daquele narval que vimos exposto na igreja de Kerube e que o povo acreditava ter poderes mágicos e curativos - ela replicou com um sorriso amargo, aludindo ao mamífero cetáceo da família das belugas ou baleias-brancas (sendo o macho da espécie dotado de um dente incisivo superior esquerdo enroscado em espiral e projetado fora da boca como um chifre), cuja captura quase levara os distritos norte e sul da cidade portuária marítima de Kerube à beira da guerra civil. - Não passa de uma fábula narrada para entreter e aconselhar. Era isso que eu queria lhe mostrar. - Suspiro. - Mas bem que gostaria que fosse verdade... Você não?

– Mula tola! - ele replicou zombeteiramente, imitando-a (Horo nunca admitiria, mas divertia-se quando Lawrence imitava seu tom de voz). - Você acha que eu não gostaria de viver quinhentos anos, mil anos ao seu lado, amando você? Mas as coisas são como são, como Deus ou a Natureza as fizeram, e já que não tenho a sua longevidade sobre-humana, nem o elixir da vida está à venda na botica da cidade mais próxima, vamos tentar fazer o melhor com o que temos. E tudo que temos é o agora. Aqui e agora!

– O que me dá mais uma razão para atormentá-lo pelo máximo de tempo possível - Horo rebateu. - E que tal se invertêssemos as posições? Se acidental ou deliberadamente, eu perdesse minha condição de imortalidade relativa por despender uma quantidade excessiva de chula... energia vital, tornando-me tão mortal quanto você? - Seu rosto se iluminou com uma expressão de felicidade e malícia (indicação clara de um ardil no intuito de provocar Lawrence). - Poderíamos envelhecer juntos. Eu poderia morrer de velhice como qualquer ser humano, ao cabo de algumas décadas.

Lawrence percebeu que se gaguejasse e arregalasse os olhos cairia prontamente na nova armadilha que a Loba lhe preparara. Então, ele respondeu de imediato:

– Eu jamais a perdoaria por encurtar seus anos de vida apenas para ficar comigo.

– Oh? - Ela não esperava esse tipo de resposta direta dele. Isto dava ensejo a mais uma provocação. - Acaso devo deduzir que se eu perdesse meu viço perene, tornando-me uma anciã encanecida, pele enrugada como pergaminho esturricado ao sol, você me trocaria por uma fêmea mais jovem? Machos humanos anseiam por trocar fêmeas velhas por outras mais novas e férteis, não é verdade?

Lawrence não sabia se ria ou se batia em Horo.

– Francamente... Sua tola!

– Esta já é a terceira vez nesta noite que você me chama de tola, em pouco menos de mil batimentos cardíacos. - Horo fez beicinho, depois sorriu.

– Você já me chamou de tolo tantas e tantas vezes nos últimos dois anos que me deu vontade de igualar a contagem - Lawrence replicou sardonicamente.

Humpf! Como se eu fosse permitir tal coisa. - O sorriso dela era feroz. - Seu tolo!

– Loba estúpida.

– Humano idiota.

E ambos se riram.

– E cá estamos nós, nesta noite de fim de inverno, de "Lua cheia de neve", sem neve, um nos braços do outro, fazendo troça de um assunto que preocupa a humanidade desde que Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso. - Ele brincava distraidamente com os cabelos fulvos, fartos e macios de sua amada. - O que poderia ser mais bizarro que isso?

– Verdade - ela concordou. - Eu diria que tudo nesta noite é pura magia. Tudo começou com você perguntando sobre mitos e lendas de Yoitsu. Parece que não somos nós mesmos, parece que não são nossas ideias, nossas palavras, que mudamos de identidade. Pelo menos, é assim que me sinto. E você?

– Eu também me sinto diferente... como se algo dentro de mim tivesse mudado sem me pedir permissão - disse ele. - Talvez fomos possuídos por espíritos iníquos invisíveis.

– Hahahahahaha! - Horo disparou na gargalhada; o riso dela era atraente e irresistível. - Vocês, humanos, têm o estranho hábito de acreditar em coisas inacreditáveis.

– Provavelmente é uma das características que nos faz humanos... quem sabe?

Ele sentou ereto no chão e ela sentou-se novamente em seu colo, desta vez com as costas apoiadas em seu peito.

"Lawrence, após tanto tempo na estrada você está fedendo feito um porco... não, um chiqueiro!", pensou Horo, aspirando o forte odor corporal, suado, de ser humano macho, que seu companheiro exalava. Para suas narinas sensibilíssimas, era um cheiro horrível e pungente, mas, ao mesmo tempo, delicioso. "Que cheiro tentador!", ela riu mentalmente. "Parece queijo Roquefort... é excitante e... eu quero comê-lo inteiro."

Com o seu certeiro e elementar instinto de fêmea feral, Horo sabia que aquele fedor de suor e sujeira, a um só tempo nauseante e excitante, mexia com o mais íntimo de seu ser, de sua natureza selvagem. Era o cheiro do amor. Era a época de procriar. Lawrence!

– Tudo que sei é que vou te amar até o dia que eu morrer - disse ele.

– E eu - disse ela - quero ter um filho com o meu parceiro.

A declaração pegou-o de surpresa. Ela percebeu e sorriu largamente para ele.

– Não se surpreenda se eu digo que quero um filho, ou filhos, tanto quanto você, talvez até mais. - Porque eu sou a Loba, sou a personificação da força vital feminina. E do instinto maternal. Tenho um lado primal que anseia por um filhote, uma cria para proteger, acalentar e amamentar.

Ambos tinham consciência de que a "imortalidade" por meio da descendência talvez fosse a única imortalidade possível para Lawrence. E Horo haveria de velar pelos filhos dos filhos dos filhos dos seus filhos como uma tataravó extremosa, pelos séculos vindouros.

– Horo, eu fico feliz de ouvi-la dizer isso - ele respondeu. - É uma pena que seja tarde demais para adotar Col, sei o quanto você gostava dele... e pra falar a verdade, eu também.

– Ah! - Ela fez um muxoxo. - No fundo eu sempre soube que Col não era senão um passageiro temporário em nossa carreta, e querer mantê-lo conosco, comigo, não passou de uma tolice imatura de minha parte. - O sorriso dela era cativante. - Quando chegar a hora, teremos nossa cria, nosso próprio filho. E se eu não conceber e dar à luz, aí, sim, adotaremos um.

– Ou uma - disse Lawrence, desafiadoramente. - A menos que tenha algo contra meninas.

As orelhas de Horo giraram. "Ah, está experimentando a Sábia Loba, hein? Se eu sou uma velha loba cínica que finge ingenuidade e inocência, com certeza você não passa de um humano ingênuo e inocente que pretende fingir-se de cínico."

Conhecia o desejo (não tão) secreto de Lawrence por uma filha. Sabia igualmente que ele amaria essa filha, sem se importar se ela fosse uma criança abandonada, de pais desconhecidos, ou uma híbrida meio-humana com orelhas e cauda similares às de Horo.

Ela virou-se para Lawrence e sorriu (mostrando as presas).

– Desde que seu zelo, amor e carinho por ela não o façam se esquecer de mim, a ponto de fazer com que eu tenha ciúmes, garanto-lhe que não me ouvirá rosnar nem ranger as presas.

– Francamente!

– Seu tolo!

– Eu prometo - disse ele solenemente. - Você será sempre a primeira e a mais importante no meu coração.

– Mais uma obrigação a ser incluída no nosso segundo contrato, não se esqueça - ela enfatizou, e sua cauda se agitava alegremente, roçando o rosto de Lawrence e causando-lhe comichão. - Além de, é lógico, trabalhar mais duramente para fazer nosso "pé de meia" a fim de abrir nossa sonhada loja, não tocar minha cauda sem minha autorização explícita e responsabilizar-se por mim.

– Você realmente é irresistível, Horo... sua diabinha! - Ele envolveu-a em seus braços, estreitando ainda mais o abraço com o corpo esguio da garota-loba, como já fizera inúmeras vezes antes (ou como a própria Horo o apertara nos braços, primeiro em Lesko, depois no acampamento do bando mercenário de Myuri).

Mal podia ele imaginar que seu próprio corpo suado, fedendo depois de vários dias sem se banhar por causa do frio invernal, enviava fortes estímulos sexuais à jovem vilkas que enterrava o rosto em seu peito e cheirava-lhe a roupa, aspirando seu odor. Normalmente Horo intimá-lo-ia a tomar banho, sob pena de pô-lo para dormir no chão ao relento. Esta noite, porém, era diferente.

"Pela Juba do Lobo Celestial!", ela exclamou em pensamento. Sentia a pungência da respiração masculina de Lawrence, o odor suado. Sua pele arrepiou-se toda de prazer, seus batimentos cardíacos aceleraram e sua cauda abanava reta com uma ligeira curva para cima. Um frêmito lhe percorria o corpo dos pés à cabeça. Ahhh... Seu sorriso tornou-se amplo quando ela ergueu a face e seus olhos de íris vermelho-âmbar que chispavam um fogo incontido encontraram os dele, cujas íris cinzentas e frias evocavam as névoas da Taiga de Yoitsu.

Pelo espaço de um batimento cardíaco ambos os olhares se interpenetraram. Nenhuma palavra foi dita, pois não havia necessidade delas. Tamanha era a sintonia entre o casal. No final, como em tantas vezes anteriores, o fogo derreteu o gelo. Então, uma vez mais os lábios dele e dela encontraram-se num beijo.

E, mal suas bocas se separaram, Lawrence mais uma vez aproximou seu rosto do de Horo e suavemente esfregou seu nariz no dela (à maneira dos lobos).

Horo corou instantaneamente e soltou uma risada calorosa. Levantou-se e se afastou alguns passos. Tirou o cachecol de pele de raposa do pescoço com um puxão. Arrancou o cinto trançado de seda de cor bordô. Aos poucos foi se despojando das roupas pesadas e atirando-as em cima de Lawrence, sorrindo enquanto observava a reação perplexa do companheiro.

– Horo! Que está fazendo? - perguntou Lawrence.

– Você não sabe? - redarguiu ela, vendo-o boquiaberto. Num movimento rápido, puxou a camisa cor de violeta por sobre os ombros, retirando-a. Sua pele muito alva lampejou à luz da Lua cheia.

– Esta noite é sagrada. Esperei muito por isso.


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Notas finais do capítulo

Finalmente! Mil desculpas tanto pelo tamanho do capítulo quanto pela demora em disponibilizá-lo para leitura. No entanto, posso assegurar que o próximo será consideravelmente menor, mesmo porque se destina apenas a incluir tudo quanto ficou de fora deste, a fim de não exceder os limites estabelecidos pelo regulamento do site.
Como esta fic mistura ficção e realidade histórica, "Philippe Jordanus van Bruuz" foi evidentemente baseado em Filipo Giordano Bruno, e suas ideias são basicamente as mesmas daquele malfadado filósofo e cientista que pagou com a vida por ousar desafiar os dogmas repressivos de seu tempo. Norwich, aqui referida como a cidade natal de Lawrence, existe de verdade e é uma cidade inglesa; portanto, fica implícito que nosso distinto mercante é inglês de nascimento, ao menos nesta fic (afinal, Lawrence é um nome originário da língua inglesa, alguém duvida?). Pico della Mirandola e Nicolau de Cusa, aqui referidos, também existiram de verdade, e suas respectivas biografias podem ser encontradas em qualquer enciclopédia ou na internet. Idem para os irmãos Antonio e Piero Pollaiuolo, da Renascença italiana. E, ao contrário do que muita gente acredita, a "Lupa Capitolina" não foi esculpida na Antiguidade romana ou etrusca, mas no finalzinho da Idade Média mesmo.
As lendas de Yoitsu sobre os lobos, inclusive a lenda de Asena, foram baseadas principalmente nas mitologias dos povos das estepes e florestas da Rússia e da Finlândia, principalmente tártaro-mongóis e chechenos - para quem os lobos são animais "sagrados", como que seus progenitores espirituais - , e em parte na fanfic de Vladimier Norton, "Wolf and War", encontrável no Fanfiction.net; a lenda de Asena também deve muito a "1001 Noites de Branca de Neve" (da série Fábulas, by Bill Willingham) e à fanfic "My Sweet Love" ("A Loba e o Amor Sem Fim"), de Paulo H. B. Carvalho, e que pode ser encontrada aqui mesmo, neste site. Já o conto da garota que virou loba, referido no início deste capítulo, veio da fanfic "Tales of Yoitsu", de TabiNoTochuu, tb no Fanfiction.net. Outra referência, a da tragédia no vilarejo do sul de Trenni, séculos antes de Pasloe, veio da fanfic "Wolf and the Treacherous Scheme", de Destinations500, tb no Fanfiction.net (nela, os nomes das crianças mortas eram Samuel e Josephine), a qual, por seu turno baseou-se em boa parte na história colateral "A Boy, a Girl and a White Flower", publicada no vol. 7 da light-novel de Spice and Wolf.
Entre os lobos, durante a época do acasalamento - bem próximo às noites de Lua Cheia - , o macho deixa de se cuidar a ponto de permanecer sujo e malcheiroso, o que, por um lado, causa repugnância à fêmea que é seu alvo, e, por outro lado, a fascina e a atrai - mesmo contra a vontade dela! É o "cheiro selvagem do amor", primitivo, atávico. Mas é só no início; depois de consumada a conquista, o macho alfa volta a se limpar tal como antes.
Até o próximo capítulo!