As Aventuras de Rin Casaco Marrom escrita por Sem Nome


Capítulo 19
Capítulo 19


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 19 :D
Desculpa não ter postado semana passada, estava viajando.



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Capítulo 19

Aquele em que Len se torna um deus.

Len esticou as pernas dormentes. Estavam sendo levados pela paisagem seca de uma caixa de areia gigante. Pelo o menos agora não tinham que andar, estavam sendo levados por uma carroça puxada por camelos. Era lento, mas os panos que cobriam a parte onde passageiros eram levados evitavam que torrassem no sol.

O homem que conduzia o estranho transporte um dia deveria ter sido branco, mas agora era avermelhado devido à tantos anos no sol.

Tanto a Moça das Espadas quanto Rin dormiam, depois de tantas noites atacando uma a outra sem motivo aparente. As vezes ele se perguntava se elas eram realmente amigas.

Rin se mexeu um pouco, mas depois voltou a ficar imóvel. Era a terceira ou quarta vez que fazia aquilo. O Homem do Cachecol e o Saco de Batatas estavam estranhamente silenciosos, mas não deu importância.

Len estava entediado e desconfortável. Seu corpo doía por ficar tanto tempo sentado em um assento de madeira, a luz não permitia que treinasse sua leitura e já havia memorizado todos os cheiros presentes, mesmo que os único realmente interessante fosse o dos camelos lá na frente. Tinha vontade de acordar Rin, só para ter alguma companhía de verdade, porém decidiu que seria egoísmo e que era melhor não fazê-lo.

– É aqui que vocês descem – o homem vermelho o tirou de seus pensamentos. Ele pôs os pés na areia e ajudou os passageiros a descer.

Len chacoalhou as duas moças adormecidas até que acordassem, e Rin, ainda sonolenta pagou o homem da carroça, que foi novamente em direção aos limites do deserto para oferecer carona à outros turistas.

O rapaz olhou para a cidade à frente. Rin disse que não tinha outro nome senão Desertos Gelados, apesar de o título englobar tanto a cidade quanto todo o deserto ao redor.

– É um lugar muito rico – a menina bocejou e pegou sua mão – A cidade foi construída na margem de um grande e importante rio. E ainda acharam diamântes pelos arredores.

De fato, tudo no lugar parecia fino e delicado. As lojas e casas, todas brancas, pareciam que poderiam quebrar com o toque, apesar de na verdade serem muito resistentes. As ruas nem deixavam indícios de que estavam em um deserto, cheias de árvores de todas as cores.

– Como eles fazem isso? – o Saco de Batatas apontou para uma árvore com folhas pintadas com as sete cores do arco-íris.

– Acho que deve existir pessoas que fazem pesquisas sobre isso, e que descobriram um jeito de colorir as folhas – deduziu Rin, pegando uma folha azul do chão.

– Tem certeza que aquela maluquinha falou a verdade? – A moça das Espadas esfregou os olhos – Esse lugar é caro, e eu odiaria ter que passar mais do que dois dias aqui.

– Tenho – garantiu Rin – Ela prometeu. E a próxima noite sem lua será amanhã, não passaremos muito tempo aqui.

Len não prestava atenção na conversa chata de Rin e da outra. Para ser sincero, ele nem sabia porque a menina estava viajando por todo o mundo e comprando briga com gente maior que ela. Até que tentou explicar para ele, mas ainda não compreendia perfeitamente. Só a acompanhava porque devia sua liberdade e, consequentemente, sua vida para Rin.

Olhou ao redor, havia muitas pessoas ali. Todas elas pareciam estar ocupadas gritando e latindo alto umas para as outras. Elas andavam para lá e para cá sem parar e sem ir a lugar algum. Esbarravam umas nas outras e reclamavam umas com as outras.

Ele pessoalmente achava engraçado e ao mesmo tempo terrível o quanto eles corriam para não chegar a lugar algum. Alguns olhavam estanho para ele, mas ele também olhava estranho para eles.

Sentia-se tão ameaçado quanto eles.

Ele tinha motivos de sobra para sentir-se ameaçado e assustado.

As vezes olhava para Rin e imaginava se ela seria mesmo um deles. Ela às vezes não parecia ser. Não gritava nem olhava feio para ele, muito menos perdia a paciência com todas as perguntas que ele fazia sobre... tudo. Ou talvez ele só achasse aquilo devido à forte ligação emocional que sentia por ela desde o dia em que foi libertado.

Não importava o motivo, desde que ela continuasse daquele jeito.

. . .

Uma gota de suor escorreu pela testa de Kaito, até que chegasse no olho, e o fizesse perder a concentração. Sentou-se no chão de mármore de um dos salões do pequeno hotél onde passariam a noite.

Alguns funcionários estavam em greve, e ele, desesperado estava oferecendo uma diária de graça a quem o ajudasse naquela noite. O problema: cidade rica, gente rica, falta de empregados. Isso até o grupo aparecer.

Quando o trabalho acabou já era noite, e o azulado foi até o salão vazio do hotel cumprir a promessa que fez a si mesmo de controlar seu dom. Levou um copo de água consigo e até aquele momento treinava congelar e descongelar o líquido.

No começo foi fácil, mas a medida que o tempo passava o sono foi tomando conta de Kaito. Ele balançou a cabeça e enxugou o suor do rosto, fechando os olhos. Não aguentava mais.

– Por que parou? – a voz de Meiko o fez abrir os olhos.

– Perdão?

– Por que parou?

– Já não aguentava mais – deu de ombros – Sou um fraco. Por enquanto.

– Ficar cansado faz parte – ela bebericou o vinho que trazia na mão. Sentou-se ao lado dele.

Kaito ficou em silêncio por vários minutos, passando os dedos na borda do copo de vidro da água, por algum motivo, envergonhado pelo fato de não ter suportado mais tempo. Uma pergunta que há muito havia formado-se finalmente escapou de sua boca.

– Não pode me ensinar? – murmurou timidamente.

– Ensina-lo a quê? – a moça questionou, apesar de ele desconfiar que já soubesse a resposta.

– A fazer... tudo isso! – gesticulou cansadamente, com a mente muito turva para pensar em melhor explicação.

– Sinto muito, mas não posso – outro gole no vinho.

– Por que não? – não pôde deixar de perceber o quanto soou como uma criança.

– Reformulando a frase; Eu não saberia como – Meiko tirou sua atenção do copo, para olhar para o azulado – Gelo e fogo são coisas totalmente diferentes. São muito... opostos um do outro. Algo que eu posso fazer com fogo sem muito esforço, pode ser algo impossível de se fazer com gelo, e poderia drenar tanto sua energia a ponto de matá-lo. E vise versa.

Esperou que ele falasse, mas sua expressão indicava que ainda estava pensando na possibilidade dessas aulas darem certo.

– Imagine que ambos desejamos atravessar um rio profundo – falou a morena, impacientemente – Você poderia congelá-lo e patinar sobre o gelo, e isso não seria tão complicado. Já no meu caso, eu teria que fazer com que toda a água evaporasse até que não sobrasse nada. Complicado, não concorda?

Ele suspirou e passou a mão pelos cabelos.

– Não pode nem me ensinar um truque básico? – suplicou – Algo que me ajude a não desmaiar?

– Só o que posso dizer é que continue tentando. A prática leva à resistência – levantou-se – Só você pode ensinar a si mesmo a usar sua habilidade. Mas sugiro que continue usando água como elemento apoio. Quando estiver melhor nisso, não precisará dela. Eu costumava usar álcool como elemento apoio, mas não preciso mais.

Antes de se dirigir até a porta, entregou-lhe uma vela apagada. Ele recebeu o presente confuso, com medo de que fosse alguma tradição de seu povo e, caso recusasse, feriria a honra de Meiko.

– Sempre haverá algo que você não saberá – abriu a porta – Alguma coisa que, por mais simples que possa parecer, tomará seu tempo e sua dedicação. Mas no final, valerá a pena.

A porta se fechou suavemente e, para a surpresa de Kaito, a vela que tinha em mãos acendeu sozinha.

. . .

Rin andava o mais delicadamente possível na areia, como se os insetos e os lagartos fossem denunciar sua presença. Deu uma última olhada nas luzes da cidade antes que elas desaparecessem na distância.

Os Desertos Gelados não receberam o título sem motivos. A menina estava com mais frio naquela imensidão de areia do que na neve do Distrito 19. Abraçou a si mesma e expeliu uma boa quantidade de ar.

Preferia o calor do dia ao frio da noite.

Meiko segurava uma lanterna logo à frente, mas mesmo assim o caminho parecia incerto e assustador. Checou para ver se não havia esquecido nada. Ataduras, álcool e soro para veneno de escorpião. Tudo lá.

Percebeu que vários animais tinham hábitos noturnos no deserto. Viu uma porção de roedores, cobras e outros bichinhos que não sabia identificar. Estava tão concentrada na vida ao seu redor, que não percebeu a morena aproximar-se.

– Pelos deuses, você está agindo como um morto-vivo – riu da expressão vazia da loura, entregando a lanterna para Miku – E, se não quiser virar um, é melhor ter um desses consigo.

Meiko tirou de uma capa um escudo (de metal resistente, e não mal acabado, quanto o primeiro escudo de Rin), e uma espada, curta e leve. Não era tão majestosa ou elegante quanto o da morena, mas o couro escuro no cabo dava um ar caro à arma.

– Percebi que você se sairia melhor com espadas curtas, enquanto lutávamos – todos já estavam ao redor da menina, que recebia o presente com entusiasmo – E lembrei que perdeu sua lança na água pouco tempo atrás. O que, aliás, foi uma benção. Alguém tão pequeno quanto você jamais conseguiria aproveitar todo o potencial de uma lança.

Rin riu, aceitando a verdade. Lanças eram melhor aproveitadas por pessoas altas. Quando tomou a espada em mãos, estranhou a leveza, mas quando acostumou-se, testou a lâmina no ar, batalhando com centenas de inimigos invisíveis.

– Tenha cuidado – alertou Meiko – Isso não é um pedaço de madeira. Só comprei a espada porque você me provou que tem capacidade de não fatiar a si mesma. E posso muito bem mudar de ideia!

Rin embaiou a espada e passou o braço pelas tiras de couro do escudo, satisfeita.

– Obrigada por esse presente, Meiko Coração de Fogo – foi só o que disse.

– De nada, Rin – respondeu Meiko – E é melhor preparar-se para os treinos com espadas.

A menina não pôde deixar de pensar o quão ferida sairia de todas as futuras lutas com lâminas de verdade. Mal conseguia aguentar-se em pé depois de lutas normais!

Encolheu-se mais no casaco, os dentes batendo e as mãos tremendo de frio. Mas não era a única congelando, todos os outros estavam do mesmo jeito que ela, abraçando a si mesmos, tentando reter o calor.

Sempre achou que as pessoas exageravam quando diziam que a temperatura nos desertos caía drasticamente a noite. Agora, achava que foram muito bondosos na explicação.

Gumi disse que a Caverna da Serpente era difícil de encontrar, principalmente no escuro. De fato, estavam andando há sabe-se lá quanto tempo, e nada que se parecesse com uma serpente foi avistado. Rin começava a achar que estavam andando em círculos.

Até que chegou uma hora que a loura decidiu que seria melhor subir em uma duna de areia e ver o deserto de cima. Como o monte não era lá muito alto, só o que pôde ver foi mais areia e vários cactus espalhados por aí.

Desceu, com areia dentro das botas e entre os dedos, e sem nenhuma boa notícia. Fez o mesmo com várias outras dunas, mas não viu nenhum sinal de que havia uma caverna por perto.

Todos estavam irritados e com frio, mas se deixassem a busca para outro momento, a próxima noite sem lua só ocorreria no mês seguinte. Não podiam perder tanto tempo.

– Tudo bem, se eu não conseguir achar nada na próxima duna, voltamos – cedeu Rin, já subindo no ponto de observação. Odiava admitir que só o que queria era voltar para o hotel e ficar próxima de uma lareira quentinha.

Mas uns pontinhos brilhantes ao longe a fizeram mudar de ideia. Pareciam flutuar na escuridão, em duas fileiras bem alinhadas, indo para algum lugar desconhecido.

– O que é aquilo? – perguntou para si mesma, feliz e temerosa por ter achado alguma coisa.

O grupo pôs-se a seguir as luzes, na esperança de que as mesmas fossem levá-los a algum lugar. Logo perceberam que eram trêmulas e irregulares demais para serem lanternas. Eram tochas, que se moviam lentamente, o suficiente para dar uma chance de aproximação de Rin e os outros.

Não muito longe, começaram a escutar um coro de lamento. De inicio, era baixo e quase sem alterações. Mas com o tempo, era impossível de deixar de ouvir, mesmo com os ouvidos tapados. As pessoas que cantavam eram tão habilidosas que formavam uma canção sincronizada e cheia de emoções, causando um arrepio na espinha da menina, por mais que não entendesse nada da letra.

Meiko desligou a lanterna quando se encontravam assustadoramente próximos ao grupo. Eram homens e mulheres adultos, com pele morena e olhos de um cinza assustador. Todos, incluindo os homens, tinham os cabelos escuros presos em uma longa trança que ia até as coxas.

Quando Rin reparou na tatuagem de escorpião que todos traziam nas costas (os homens não vestiam camisa, e as mulheres usavam vestidos de costas nuas), soube que estavam no caminho certo.

Como eles não estão congelando!? As mãos não estão nem tremendo!

E continuaram a andar por tempo que pareceu uma eternidade. Por sorte, todos estavam muito ocupados cantando na estranha procissão para prestar atenção nos que seguiam. Rin viu que, na última fileira havia dois homens carregando um saco velho e surrado, e logo ao lado, outros quatro, levando uma grande caixa de ouro, cada um em uma ponta. Eram os únicos que não cantavam.

A loura já havia memorizado toda a estranha musica, e já estava começando a cantarolar baixinho com o grupo, quando a procissão parou de andar e cantar.

Rin olhou ao redor, só mais um monte de areia e grama baixa. Nada mais. Seu olhar se encontrou com o de Meiko, mas a morena deu de ombros, a expressão tão confusa quanto a da própria Rin.

Mas então um homem magro e alto, que andava na frente de todos os outros entregou sua tocha a um rapaz mais novo ao lado e deu poucos passos a mais. Respirou fundo o ar do deserto e tirou o colar que usava.

Virou-se para encarar os outros, e Rin teve a incomoda sensação de que ele olhava diretamente para ela. O rosto do homem parecia feito de pedra, sem nenhuma emoção. Ele pôs o colar de contas vermelhas na areia, e afastou-se com passos largos.

Mais uma vez o coro começou. Agora não iniciando-se com notas baixas e suaves, e sim com notas graves e gritos intensos. Muitas mulheres não conseguiam manter a nota grave, e os homens ficaram com a maior parte do trabalho.

Rin sentiu a areia abaixo de si tremer, e quase saltou para trás de susto, porém, tão rápido quanto chegou, foi embora. Mas ela percebeu que era como se algo estivesse se movendo no subterrâneo, pois logo a sua frente, uma trilha de areia agitada formou-se.

– O Rei Escorpião – sussurrou, apertando o cabo da espada até que os dedos doeram.

Entretanto, seu palpite mostrou-se errado quando uma cabeça de serpente feita de pedra surgiu por entre os grãos. Sem nem mesmo pensar, a menina deu alguns passos para trás, engolindo em seco.

Se uma serpente normal já era considerada temível, aquela era simplesmente aterrorizante. Deveria ser maior que uma casa grande, mas o que realmente deixava as mãos de Rin frias eram as presas da cobra, gigantes e afiadas. Imaginou se as pessoas mais próximas não sentiam medo, mas elas pareciam perfeitamente habituadas à estátua gigante.

Para o alívio da loura, porém, a serpente encontrou um lugar confortável na areia fria, e abriu bem a boca, o a metade de seu corpo ainda soterrado no chão. Não se mexeu nem mesmo um centímetro depois disso.

As pessoas continuaram imóveis por um tempo considerável, e quando Rin começava a achar que haviam congelado, eles marcharam como um só ser, para dentro da boca da serpente, levando consigo a luz das tochas.

– A Caverna da Serpente – Miku sussurrou, quando achava que não poderiam ser ouvidos.

– Temos que encontrar uma maneira de ver o que estão fazendo lá dentro – disse Meiko – Mas não podemos entrar lá com trompetes e tambores, dizendo que queremos um pouco do veneno de seu tão maravilhoso deus.

– Podemos usar os olhos da estátua como janelas – propôs Rin, que já estava a frente da questão.

Foram aproximando-se lentamente, escondendo-se entre as dunas de areia e gramíneas baixas pois, de vez em quando, um ou outro saía de dentro da caverna, sentindo que algo estava errado.

Ao chegar à lateral da grande cabeça da cobra, Miku e Rin foram escolhidas para espiar pela janela arredondada e ver o que ocorria lá dentro. Não poderiam ir todos, e as duas eram as mais leves do grupo.

Foi muito mais fácil para Miku chegar ao olho, mas ela também auxiliava a loura em sua escalada. Quando as duas acomodaram-se, já havia se passado boa parte do ritual. O mesmo homem que invocou a cobra estava em cima de um altar de ouro, energeticamente gesticulando e cuspindo palavras em uma língua desconhecida para Rin. Só sabia que deveria ser algo de agrado para a multidão, que parecia mais excitada a cada minuto.

E então ele apontou para o saco surrado, que ainda estava sendo segurado pelos homens do fim da fileira. Depois ele apontou para a enorme caixa de ouro, que foi aberta lentamente depois de colocada no altar. Para a surpresa de Rin, dentro da caixa havia milhares e milhares de escorpiões de todos os tamanhos e cores.

E para seu horror, dentro do saco havia um menino, com não mais que doze anos. Ele foi puxado pelos cabelos, e estava claro que não fazia parte do povo escorpião, a julgar pela pele mais clara e cabelos encaracolados. Pela expressão que tinha, estava completamente drogado.

Rin sentiu as mão gelarem ao se dar conta do que iria acontecer em seguida. Prendeu a respiração, preparando-se para o pior. Viu pelo canto do olho que Miku fazia o mesmo.

O homem levou uma garrafa com um líquido vermelho até o nariz da criança, cujos olhos arregalaram-se, e os punhos fecharam-se. Pelo o visto o queriam bem acordado.

O homem continuou com seu discurso inflamado, e os outros aproximavam-se do menino, que gritava e esperneava com toda a energia que lhe restava.

Rin sentiu o estômago revirar-se quando levantaram o menino ainda chorando pelos braços e o aproximaram da caixa que tornaria-se seu caixão. A sensação ficou ainda mais forte quando ele agarrou-se nas bordas e, mesmo empurrado e golpeado nas costas por homens adultos, lutou com força surpreendente por vários minutos.

Até que seus finos braços falharam e ele caiu no meio dos milhares monstrinhos violentos que subiam em seu corpo e rosto. Mesmo quando colocaram a tampa no lugar, era possível escutar os berros do menino.

– Com mil demônios, o que foi isso!? – a esverdeada passou as mãos pelos cabelos, horroriazada, depois de os gritos da criança finalmente silenciaram.

Rin nem mesmo deu-se ao trabalho de responder. Se tentasse dizer alguma coisa poderia vomitar ou algo do tipo. As duas encaram-se por alguns segundos, sem coragem de voltar a olhar para a cena. O trio lá embaixo meio sussurrava, meio gritava, pedidos de explicações.

Só depois de um bom tempo, inalaram profundamente e voltaram sua visão para o macabro ritual.

Entretanto, para seu mais completo horror, o homem estava lá, no meio da multidão, as observando com seu olhar penetrante, que parecia ir muito além da alma.

– Assustador, não? – dessa vez ele falou na língua nativa de Rin – Todo mundo gosta de visitas, mas será que não poeriam ter avisado antes? Faríamos um show especialmente para vocês.

A menina olhou para baixo, desesperada, mas uma multidão silenciosa já havia cercado seus aliados. Calculou que seria impossível lutar com tantos ao mesmo tempo por um longo período.

Xingou, e pensou que seria melhor descer e tentar conversar com aquela gente. Se tinha uma coisa da qual era a melhor naquela equipe, era no dom da palavra.

Deslizou até a areia, entre Len e Meiko, e esperou que o chefe chegasse até a lateral da cabeça da cobra e abrisse caminho por entre o povo curioso.

Ele limpou a garganta e começou:

– Será que poderíamos saber o motivo da visita de você e seus amiguinhos fedidos? – ele jogou a longa trança para trás.

– Perfeitamente, senhor – Rin pensou em diversos elogios que pudessem tapear o homem. Nada é mais forte que a vaidade e o orgulho – Está mais do que claro que o senhor é sábio o suficiente para saber que estamos aqui a procura do Grande Imperador – era melhor referir-se ao rei escorpião do modo que eles estavam acostumados.

Pôde ver um leve sorriso se formar no canto da boca do homem quando a menina mostrou tanto respeito à ele próprio e aos seus costumes. Mas o sorriso morreu rapidamente, e o rosto de pedra do homem voltou ao seu normal.

– E o que querem com nosso Grandioso Salvador de Todos? – olhou para Rin de modo acusador – Receio que não queira servir de oferenda.

– Não, senhor, de modo algum – continuou com o tom de voz de quem sabia exatamente o que dizer – Nossos verdadeiros objetivos são claros...

– Vejam, mais um deus! – um rapaz exclamou, perplexo ao prestar um pouco mais de atenção em Len.

– Não é um deus – retrucou uma mulher mais velha

– É, sim – o rapaz aproximou-se – Preste bem atenção. Tem chifres! – ele aproximou a mão da testa de Len, quando Rin teve uma ideia.

– Que desrespeito! – tirou a mão do rapaz de perto de Len – Tocaria em um deus sem nem mesmo pedir-lhe permissão! Nosso deus, tão bondoso, veio até aqui em seus próprios pés e em sua forma mais inferior, apenas para ser tocado por mãos mortais!

Rezou com todas as forças para que Len e os outros tenham compreendido a armação. Pelo o jeito que o louro estufou o peito e vestiu sua mais digna e arrogante expressão, ele havia entendido.

– Ajoelhe-se, e implore perdão! – ordenou Kaito, entrando na personagem – Jamais faríamos tal coisa com seu deus, então mínimo que pode fazer é desculpar-se com o nosso!

Rin teve que controlar-se para não rir do desespero do rapaz, que se jogou no chão quase beijou os pés de Len, implorando misericórdia.

– E o que um deus do qual nunca ouvimos falar faz em nosso ritual? – duvidou o homem – Isso se ele for mesmo um deus.

– É evidente que é – explicou Rin – De que outro modo saberíamos onde encontrá-los? Nosso deus sabe tudo! – sentiu o coração desacelerar quando o homem assentiu, começando a acreditar – Ele veio até seus domínios para dialogar com o Grande Imperador.

– Dialogar sobre o que, exatamente?

– Não sei, senhor – improvisou Rin – Sou apenas uma acompanhante e tradutora. Não trato de assuntos divinos.

As pessoas ao redor começaram a murmurar agitadamente. Um encontro de deuses não era algo que se via todo dia.

– Muito bem – cedeu – O Grande Salvador de Todos chegará logo para buscar a oferenda. Se não se importarem em esperar...

– Não, senhor – adiantou a menina – Mas exigimos os melhores tratos para nosso deus.

E assim foi feito. As pessoas faziam pouco caso da presença de Rin e dos outros, mas Len sentou-se em tronos de ouro e comeu da melhor comida feita pelos melhores chefs. A menina só esperava que ele não ficasse muito intimidado com os mimos excessivos arruinasse a única chance que tinham de pegar o veneno sem batalhas.

Seu olhar pesou nas armas afiadas dos guardas e engoliu em seco.

Esperava que não arruinasse a única chance que tinham de sair de lá vivos.

– Rin – chamou Meiko, que voltou a falar quando a menina se aproximou – Você não está começando a achar que esse tal Rei ou Deus escorpião não passa de uma pessoa normal, só que um pouco... diferente?

– Como assim?

– Veja – apontou para as pessoas ao redor de Len –, eles acham que Len é um deus porque ele tem chifres e presas. Eu não me surpreenderia se o próprio Rei Escorpião fosse apenas um homem com um rabo de escorpião ou coisa parecida.

Rin sorriu, então as coisas não seriam assim tão difíceis. Aquela gente só não sabia como reagir ao novo, só isso.

Mas o chefe do grupo tirou a menina de seus pensamentos.

– Sinto muito ter duvidado de seu deus – desculpou-se – Mas você tem que admitir que ele não está trajando as roupas ideais.

– Sim, concordo – Rin entrou no jogo – Eu o avisei que deveria vestir suas melhores roupas, mas ele recusou, dizendo que não queria chamar atenção nas cidades. Da última vez mal conseguiu andar por entre as pessoas!

– Ele desejaria um sacrifício humano? – questionou o homem – podemos providenciar um agora mesmo.

– Não será necessário! – quase gritou – Fizemos um sacrifício antes de partir.

Antes que o homem pudesse dizer mais alguma coisa, o chão tornou a tremer, dessa vez com mais violência. Um largo sorriso formou-se em seu rosto, e ele voltou a gritar na língua estrangeira. Os outros começaram a fazer o mesmo, gritando e reunindo-se em um circulo ao redor da caixa com o morto dentro.

Sem mais cerimônia, do chão surgiu uma cabeça de humano. A única diferença era o tamanho colossal. Logo depois surgiram os ombros, os braços, as mãos. Mas o que impressionou, foi o corpo de escorpião que surgiu da cintura para baixo. A casca era escura e reluzente, as pinças gigantes pareciam ser capaz de cortar aço, a calda, praticamente pingando veneno.

O homem era muito maior que um humano normal, mas ainda assim menor que um gigante. Mas teve que se curvar para não bater a cabeça no teto da caverna.

As pessoas gritavam, reverenciavam, comemoravam de modo ensurdecedor. O rosto do Rei Escorpião era duro e sombrio, os cabelos também eram escuros e amarrados em uma longa trança.

Sem esperar mais, ele abriu a caixa com facilidade e enfiou a mão por entre os escorpiões menores. Levou o corpo da criança até a boca e mastigou a oferenda. Dava até para ouvir os ossos sendo triturados.

Levou vários minutos até que ele finalmente engolisse a vítima, e quando o fez, passou os olhos azuis quase brancos pela multidão, dando especial atenção aos convidados.

Como se percebesse o olhar do Rei, o chefe rastejou até seu adorado deus e beijou uma das patas finas de escorpião. Falou alguma coisa, apontando para Len. A expressão dura do deus não mudou, mas ele assentiu e andou vagarosamente até o lado de fora da caverna. A manhã já estava chegando e era possível enxergar sem tochas.

– Muito bem, está resolvido! – o homem gritou, com braços abertos – A batalha de deuses terá início ao nascer completo do sol!

. . .

O sol já estava quase todo à mostra no horizonte. Já não fazia frio, mas as mãos de Rin tremiam. Olhou ao redor nervosamente, as pessoas conversavam animadas, e o escorpião monstruoso esperava lá fora, olhando diretamente para o sol, sua calda com uma lança na ponta balançando para frente e para trás, para frente e para trás.

A menina havia tentado parar a luta, mas o homem disse que era assim que deuses resolviam seus assuntos divinos, e que não havia nada que pudessem fazer.

– O seu deus não assumirá sua forma perfeita? – o chefe se lembrou de quando Rin falou sobre a “forma inferior” de Len.

– Ele prefere não batalhar em sua forma perfeita.Poderia até destruir o mundo – Meiko inventou uma desculpa qualquer.

Len parecia o menos tenso de todo o grupo. O que realmente o incomodava eram as pessoas pintando uma marca dourada de escorpião em suas costa e prendendo seus cabelos em uma trança.

Disseram que, já que estavam em seus domínios, Len deveria demonstrar respeito ao Rei Escorpião. Mas ele tinha o direito de ter a marca dourada, já que era um deus. Teria que lutar apenas de calças, sem nem mesmo usar botas.

Rin riria do quão estranho ficou o cabelo de Len se a situação não fosse tão horrível. Olhou lá para fora novamente, o sol já podia ser visto completamente.

As pessoas levantaram-se, falando alto e levanto Len até o lado de fora. Foi desenhado um círculo na areia ao redor dos dois. Rin percebeu o quanto Len era pequeno comparado ao escorpião gigante. Seu estômago se revirou com a possibilidade de Len ser morto.

Nada mais foi feito ou dito, jogaram um lenço no meio da arena sinalizando que a luta poderia começar. Parecia que cada um esperava o outro fazer alguma coisa, e ficaram imóveis por vários minutos, até que o Rei impacientou-se e esticou uma de suas pinças na direção do louro.

Len bufou e desviou sem problemas das garras do homem. Mas quando tentou cravar suas garras na casca escura do deus, teve a infeliz surpresa de que eram muito, muito duras. Na verdade, o ataque causou mais dor no próprio Len do que no Rei escorpião.

Ele foi jogado no chão, e o inimigo usou sua enorme pinça como um martelo, afundando Len um pouco mais na areia. O público comemorou, mas o rapaz levantou-se depressa.

Cuspiu a areia que entrou na sua boca e pensou em outro modo de atacar. O Rei usaria suas duas pinças contra ele mais uma vez, se Len não tivesse saltado até a altura do ombro do homem. O rei provavelmente não fazia ideia da capacidade física sobre-humana do rapaz.

Len fechou as mandíbulas no ombro do rei com toda força. Os ossos por baixo da carne, por mais grossos e resistentes que fossem, cederam e quebraram abaixo dos dentes de Len. Ele sentiu o cheiro e o gosto de sangue que jorrava pelos buracos dos dentes.

Dessa vez o golpe causou alguma dor no Rei Escorpião, que tentava de todos os modos tirar o rapaz de seu ombro. Puxava e socava com suas mão humanas, mas Len continuou firme, mordendo e afundando as unhas na carne. O rei socava as costas do louro com todas as forças, desesperado.

Len passou a morder e arrancar carne com facilidade surpreendente, mas os socos o estavam deixando tonto, e a cada novo golpe, sua visão ficava turva e avermelhada. Até que o rei o arrancou com uma das mãos e o jogou no chão novamente.

O buraco que Len deixara jorrava uma cascata de sangue que escorria pelo peito e abdómen humano do deus. Era possível ver músculos e ossos quebrados. Um dos braços do rei estava impossibilitado.

Len arfava, suas costas doíam e ardiam, e demorou um tempo para sua visão voltar ao normal. Precisava atacar o adversário em sua metade humana, mas agora ele a protegeria mais que tudo. Balançou a cabeça e se preparou mais uma vez.

Achou que seria golpeado pela pinça esquerda, mas quando desviou dela com dificuldades, teve a surpresa de ser erguido pela direita. A o havia pego na área do estômago, e agora ele estava sendo ameaçado de ser partido em dois.

Um grunido de agonia lhe escapou quando o aperto ficou mais forte, cortando-lhe a pele e a pintando de vermelho. Pelo o visto o que o rei queria era vingar-se, porque se realmente quisesse matá-lo já teria feito isso. Len usava as garras para arranhar a casca da pata gigante, entretanto, era apenas isso que fazia; arranhava, nada de mais.

Já não conseguia respirar direito, e não sentia mais as pernas, por isso parara de espernear. Sua cabeça estava ficando leve, e conseguia escutar o coração batendo nos ouvidos. Porém, para sua surpresa, a pinça foi aberta, e ele caiu na areia.

O estrago foi grande, seu estômago agora tinha um caminho de pele rasgada e sangrando. Len não teve tempo de pensar sobre isso, a voz conhecida de Rin chegou até ele, dizendo que era para olhar para frente.

O rapaz fez o que lhe foi pedido, só para ver a calda pontuda do monstro aproximando-se em velocidade perigosa. Ignorou a dor paralisante e cambaleou para longe do ataque, mas, para seu azar, o ferrão cheio de veneno atingiu seu braço.

Ele ajoelhou-se, abafando um grito, a mão cobrindo o machucado. Aos poucos, sentiu a mão e o braço arder, e percebeu que o veneno também era um tipo de ácido.

O ardor logo tornou-se insuportável, e sem outra alternativa de aliviar, espalhou areia no corte. O Rei Escorpião parecia divertir-se com o desespero de Len. A plateia não era diferente.

Os únicos que não sorriam eram Len, Meiko, Miku, Kaito e Rin.

Rin apertava tanto os punhos, com tanta força que as unhas penetraram na carne e abriram pequenos ferimentos. Jamais pensou que Len pudesse ser vencido por alguém nesse mundo. Mas ao olhar para os finos buraquinhos na palma da mão, teve uma ideia. Uma ideia arriscada e perigosa, mas uma ideia.

Len! – quase rasgou a garganta para que sua voz vencesse a dos outros – Use o rabo contra ele próprio!

Len fungou, sem entender direito de início, mas depois ficou claro o que Rin queria que fizesse. Não seria nada fácil.

Quase não conseguiu ficar de pé, e quando o fez, foi ameaçado novamente pelo perigoso rabo do Rei. Tentava aproximar-se do inimigo sempre que tinha chance, mas era barrado ou pelas pinças ou pela mão humana.

As pessoas riam e algumas jogavam areia nele. Não era nada que já não tivesse experimentado. Os guardas da caixa gigante onde passara toda a vida também riam dele, e jogavam coisas nele. Mas as coisas se quebravam e ficavam pontudas.

Mas um pouco de areia caiu em seu rosto e o deixou sego por alguns segundos, tempo o suficiente para ser atacado de novo pelas pinças. Mas ele roubou a ideia, e pegou um punhado de areia na mão boa.

Quando recuperado, preparou-se para tentar novamente. Só mais uma vez. Estava cansado de ser jogado no chão. Se não conseguisse, desistiria.

Pulou com o resto de suas forças. Milagrosamente passou pelas patas do Rei sem problemas, e quando o mesmo estava para agarrá-lo com a mão, Len jogou o punhado de areia na direção do rosto do deus.

Graças à isso, teve tempo mais do que suficiente para chegar até as costas do adversário. Pisava na casca que seria a parte de trás de um escorpião, e mais a frente encontrava-se o rabo, já preparado para empalá-lo. Len afundou as garras nas costas do rei, para evitar perder o equilíbrio enquanto o mesmo remexia-se, tentando lança-lo para fora.

Quando percebeu que demoraria muito para o deus fazer o que queria que fizesse, Len arrastou a mão para baixo, fazendo quatros trilhas sangrentas nas costas humanas do escorpião.

Olhou para trás, o rabo já vinha em sua direção. Esperou que estivesse bastante próximo e pulou para um dos lados. A parte pontuda, sem conseguir parar, cravou-se no próprio dono, com tanta força que a ponta pôde ser vista no estômago.

Len aterrissou no chão e, mesmo que tenha sido pisoteado pelas patinhas finas de escorpião, sorriu vitoriosamente. O rei demorou um pouco para pender para um dos lados, mas eventualmente caiu no chão, imóvel. Podia ser imune ao próprio veneno, mas ninguém conseguiria sobreviver com um buraco daqueles no corpo.

Rin entregou o não livro para Meiko. Tinha outras prioridades naquele momento. Pegou uma garrafa de água na caverna e limpou a areia dos cortes de Len. Percebeu que não seria preciso usar o antídoto em Len, porque, pelo o que percebeu, o ferrão atingiu uma veia, e o sangue que espirrou levou o veneno com ele. Mas o fez de qualquer modo, para aliviar a ardência.

– Você foi incrível – elogiou, o abraçando com força – Incrível e corajoso.

Ninguém parecia prestar atenção neles. Miku, Kaito e Meiko estavam ao redor do rabo morto do Rei Escorpião, e as pessoas pareciam estar perdidas em um mundo só delas, lamentando a morte de seu deus. Passavam as mãos nos cabelos do deus, mas não choravam nem diziam nada. Pareciam apenas perplexas, talvez por nunca desconfiarem que alguém no mundo pudesse matar seu deus.

Rin fez o melhor que pôde para limpar o sangue seco do rosto de Len, e não resistiu à roçar os lábios na barba rala dele, que fez cócegas em sua boca. Ele riu também, e ela o ajudou a levantar.

– Acho melhor irmos embora – o puxou para perto dos outros – Não quero estar aqui quando eles saírem de seu transe de luto.

Meiko havia facilmente colhido algumas gotas do veneno, o suficiente para satisfazer o não livro.

E quando o chefe do grupo olhou ao redor, não havia mais ninguém. Somente pegadas e marcas de sangue.

– Malditos sejam – murmurou, sem raiva nem nenhuma outra emoção na voz – Malditos sejam.


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Notas finais do capítulo

Desculpa o cap gigante, mas se eu o dividisse em dois, iria ficar muito estranho...