As Aventuras de Rin Casaco Marrom escrita por Sem Nome


Capítulo 10
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 10 :D
Café neutraliza odores.
Nossa, esse cap ficou grande mesmo O.O



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Capítulo 10

Aquele em que Rin escapa da fortaleza, liberta a fera e morre (não necessáriamente nessa ordem).


O rapaz preparou as garras para o primeiro golpe. Não teve nenhuma dificuldade em tirar a ponta da lança do caminho, de tão trêmulas que as mãos de Rin estavam.

Suas pernas não obedeciam, e ela não conseguia sair do lugar. Foi apenas quando ela sentiu uma dor aguda, que se arrastou do ombro esquerdo até um pouco abaixo do pescoço e a fez cair no chão, que ela percebeu que, sim, aquilo era real.

Alguns grãos de areia entraram em sua boca quando Rin atingiu o chão, aterrissando em cima do braço direito. Sentiu sangue escorrer dos quatro finos cortes criados pelas garras da fera.

O rapaz não perdeu tempo em atacar de novo, mas, pelo o menos, dessa vez Rin conseguiu rolar para longe, e ele acabou acertando apenas a areia. O público a vaiou, decepcionado com o fato de a menina ter levado a melhor.

Ela ignorou os xingamentos da platéia e tentou tomar distância de seu inimigo, mesmo sabendo que seria inútil. Ele, se quisesse, se aproximaria dela em apenas alguns segundos.

Como se lesse sua mente, não demorou para ele estar ao seu lado, mas dessa vez, ao invéz de usar as garras, deu-lhe um soco no lado esquerdo do rosto, surpreendendo-a. Rin caiu no chão novamente, a força do rapaz se provou eficaz mais uma vez. Ele lhe colocou de pé, levantando-a pelo casaco.

Ele lhe socou repentinamente no rosto e no estômago. A lança, perdida em algum lugar no chão. De vez em quando, entre um golpe e outro, a fera fungava ou esfregava o nariz e a lingua no braço, com uma careta, mas Rin estava muito ocupada tentando desvencilhar-se com chutes e socos para prestar atenção nisso.

A pessoas na arquibancada levantaram-se, batendo palmas e gritando. A menina já não aguentava mais golpear o ar, na esperança que pelo o menos um dos ataques iria atingi-lo. E quando ela começava a achar que ele a mataria à pancadas, o rapaz a largou, e ela caiu no chão com os braços ao redor do estômago, tossindo, engasgada com o sangue e a saliva salgada.

Ela olhou para cima através da franja despenteada, só a tempo de ver garras rasgarem a pele um pouco acima da sobrancelha até a área da mandíbula. Ela gritou de dor e de pavor, se arrastando na areia para tentar se afastar, uma das mãos no olho ferido, enquanto a outra auxíliava as pernas.

Sua mão tocou um objeto conhecido, meio enterrado na areia. A fera se aproximava, com seus olhos estranhos semicerrados, de novo esfregando o braço sujo no nariz, com uma espécie de careta no rosto. Aquilo não era normal. Ele preparou as garras mais uma vez.

Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, a ponta de uma lança perfurou a carne da lateral de seu corpo. O machucado estava feio, fundo e, provavelmente doloroso. A plateia xingou a menina de nomes ainda mais feios que os anteriores, e alguns até jogaram comida em sua direção, mas o alimento não chegava até o meio da arena.

Rin sorriu. Pelo o menos um golpe ela acertara. Mas o sorriso morreu quando seu olhar pousou no rosto do rapaz. Ela percebeu o erro que havia cometido.

Ela o havia irritado. Irritado de verdade.

O rapaz tirou a ponta da arma do corpo, sangue jorrando. Depois ele a arrancou das mãos de Rin. E, sem nunca desviar seus olhos dos dela, partiu a lança em duas metades, como se ela fosse um palito de dente.

A menina instintivamente se afastou. Ignorando a parte de sua mente que diziam que isso nunca daria certo, pôs-se a correr, mas a areia retardava (e muito) sua corrida.

Até que avistou uma rachadura considerável na grossa parede. Era grande no meio, e parecia profunda o suficiente para alguém do seu tamanho esconder-se. Talvez ela não tivesse visto a abertura antes por achar que era muito pequena, vista de longe.

Com certa dificuldade, enfiou-se no buraco e foi mais para o fundo possível. O lugar era escuro, e ela estava espremida entre um lado e outro da parede. A luz do sol logo foi tapada pela silhueta da fera.

O rapaz também tentou entrar na rachadura, mas seus ombros o impediam, e, se tentava passar de lado, chegava um ponto tão apertado para ele que sentia dificuldades em respirar.

Ele tentava esticar os braços para tirar a menina de lá. Rin conseguia sentir o ar ser cortado quando as garras quase lhe tocavam. Tentou se afastar mais ainda da fera, mas aquele era se limite. Não poderia passar o resto da vida dentro da rachadura, e ela sabia disso. E não demoraria muito para o rapaz esticar só um pouquinho mais o braço e alcançá-la.

Então Rin, desesperada, buscou nos bolsos algo pesado o suficiente para jogar nele. Um dos golpes raspou na perna dela, mas não chegou a machucá-la de verdade. Porém, isso animou o rapaz, que passou a cavar com mais energia. A menina desesperou-se mais ainda.

Seus dedos encontraram em algum lugar fundo e escuro do casaco um saquinho marrom. Sua mão trêmula e fria reconheceu o formato de grãos de café dentro dele. Maldição, isso não lhe ajudaria em nada.

Ela conseguia ouvir claramente a respiração rápida da fera, e seu cheiro azedo invadiu suas narinas. A pálpebra atingida pelas garras ardia e Rin não conseguia levantá-la. Esperava que o olho estivesse intácto, pois duvidava que sua habilidade de regeneração pudesse consertar algo como um olho danificado.

Uma mão agarrou o casaco mais uma vez e arrastou a menina para fora do buraco escuro. Rin estava cara à cara com a fera. Um rosnado saiu bem de dentro da garganta dele, e a loura encolheu-se. Nunca sentiu-se tão pequena na vida inteira.

Foi derrubada na areia, e dessa vez ele a atacava por cima. Rin tentou segurar seus pulsos roxos e manchados de sangue seco. Ele sibilou de dor, mas não parou de investir. Em um dos golpes, o rapaz acabou rasgando o saquinho e espalhando grãos brutos de café por cima da menina e no chão ao redor.

Rin tentava se defender com os braços, mas eles ficaram tão arranhados e machucados que ela não conseguia mais suportar a dor. Seu rosto pegava fogo, e ela sabia que estava chorando.

Ele a mataria. Ele a mataria se não fizesse nada. Rin lembrou-se de um livro que leu no orfanato, que falava sobre animais de pequeno porte. Aprendeu que alguns deles, até mesmo cobras, fingiam estar mortos quando atacados por um bicho maior. Se aqueles bichinhos conseguiam, por que ela não conseguiria?

Deixou que os braços caíssem para os lados do corpo e a cabeça encostar na areia. Tentou controlar as lágrimas e a respiração. Acalmou o coração o máximo que pôde e ficou quieta.

O rapaz a atacou mais algumas poucas vezes, para depois parar e aproximar o rosto dela. Pelo o visto estava dando certo, ele não atacava mais. A plateia estava quieta, na espectativa.

Rin tímidamente abriu um pouquinho o olho bom. Deu-se conta, para sua surpresa, que ele estava pouco interessado em checar se estava morta de verdade.

Ao invés disso, ele estava cheirando suas roupas. Rin sentiu a ponta das orelhas esquentarem, e teve vontade de dar-lhe um soco no nariz, mas manteve a farsa. Então notou alguma coisa mudar nele.

As pupilas dilataram-se até chegarem em um tamanho normal, e a respiração acalmou-se. Ele encolheu as garras e fungou algumas vezes. Pela a primeira vez desde que a luta começara, Rin o reconheceu como o rapaz do sonho.

A multidão, achando que a batalha havia acabado, levantou-se e comemorou.

A fera levantou-se, mas não ficou muito tempo de pé. Exatamente como no sonho, a coleira em seu pescoço foi ativada e suas pernas falharam. Rin o escutou gritar, mas sua pouca visão foi bloqueada, pois vários guardas o rodearam. Escutou o som de correntes serem arrastadas e cadeados se fechando.

O rapaz foi arrastado, aos berros, para a passagem pela qual entrou na arena. Apesar de tudo o que passou, Rin sentiu vontade de ajudá-lo. Ele provavelmente seria levado de volta para sua cela escura e fria.

Ela fechou o olho novamente quando escutou passos na areia. De novo, tentou parecer morta.

– Ela durou mais do que eu achava que duraria – era a voz do guarda com a veia saltada.

– Nem me fale – essa voz ela não reconheceu – Achava que ela já estava morta depois de tantos socos. Mas ainda conseguiu se levantar – ele a arrastou pelo casaco. Para onde a estava levando, ela não sabia.

– Ela agradou bastante o público – o guarda da veia continuou. Rin respirava rápida e silenciosamente, para ninguém perceber – E aquele vagabundo precisava fazer exercício. Se o deixarmos parado por muito tempo ele fica folgado e preguiçoso.

O outro guarda não respondeu nada, então deveria ter apenas balançado a cabeça em concordância. Rin sentiu que as pontas de seus dedos passaram a tocar o chão de pedra enquanto era arrastada, e notou que estava mais escuro.

Isso significava que a haviam tirado da arena. Mas a direção não era a mesma pela qual entrou, então deveria ter sido por uma passagem diferente.

– É uma pena que a lança foi quebrada – o guarda que a levava comentou – Era uma bela lança.

– Bem – disse o outro – não é feita de madeira. Quem sabe eu não consigo consertar? Eu sou bom nisso, você sabe.

– Sim, eu sei – respondeu vagamente - Vamos queimar ou enterrar o corpo? – a menina quase abriu o olho, com medo.

– Queimar. Não quero ter o trabalho de cavar mais um buraco. Sou um homem ocupado – respondeu – Deixe o corpo em uma sala qualquer e prepare a câmara. Me informe quando acabar.

– Sim, senhor.

Os dois se separaram. Depois de alguns minutos, Rin escutou uma porta ser aberta. Logo, havia apenas ar ao seu redor, e seu rosto já machucado atingiu o chão. A porta fechou-se mais uma vez, e a menina levantou-se apenas quando teve certeza de que estava sozinha.

Olhou ao redor. Era só um cubículo desocupado. Sem janelas, luz, móveis ou decoração. E agora, o que faria? Seria difícil o suficiente escapar daquele lugar, e ela ainda tinha que levar o rapaz consigo para depois resgatar Meiko, e recuperar o não livro e então tirar o sangue dele.

Rin estremeceu, os dedos tocando o olho machucado.

Abriu uma fresta da porta e olhou para os dois lados do largo corredor. Quando percebeu que não havia ninguém, pôs-se a andar (mancar) com passos leves e silenciosos.

Ela não sabia para onde estava indo, só não queria ser queimada viva. Por sorte, não encontrou nenhum outro guarda no caminho. Chegou até um local arredontado, cheio de corredores. O teto era de vidro, para economizar energia durante o dia, mas já era final de tarde, e logo teriam que ligar as luzes.

Entre um corredor e outro, havia estátuas de, Rin achava, heróis de guerra. Foi até o centro, onde estava pintado no chão o brasão da Cidade da Tempestade. Ela queria entender toda a apatia que o povo tinha por gente de fora. Será que, no passado, as outras nações se juntaram e invadiram o lugar?

Se isso fosse verdade, pensou, haveria muros ao redor da cidade.

Aproximou-se de uma das estátuas, curiosa. Era de um homem barbudo que, sozinho, dominou um território inteiro. O proximo havia vencido um monstro marinho de três cabeças. Outro havia apagado um incêndio que dominou a cidade inteira. A proxima era uma mulher, que construiu uma barragem ao redor da cidade, salvando-a de uma enchente.

Rin percebeu que ela usava um colar de verdade, não esculpido com o resto da estátua. Esticou-se para tocar o objeto. A correntinha segurava o pingente de latão. Um círculo plano com um furo para a corrente, e um pedaço estreito de latão unia o círculo à um triângulo com um buraquinho quadrado no centro.

Alguém deve tê-lo colocado ali por brincadeira. Não é um colar muito bonito.

Deixou seus pensamentos de lado quando escutou passos apressados.

– Como assim fugiu?! – bradou a voz conhecida do policial – Como uma garota morta fugiu?!

Rin deu um pulo de susto. Maldição, descobriram. Correu para o corredor mais próximo e se escondeu nas sombras, mas as vozes a seguiram.

Será que eu sempre tenho que tomar a decisão errada!?

O corredor era cheio de portas, e todas as que testava estavam trancadas. Os passos se aproximavam. Finalmente, Rin escutou um clique e uma porta de metal abriu-se.

A porta dava em uma sala branca. Estava cheia de camas com lençóis também brancos. Tinha um grande armário cheio de meterial médico e cirurgico. Devia ser a enfermaria.

Lá no final da sala, nas sombras, uma porta parecida com a anterior se escondia. Rin foi até ela e, para sua surpresa, estava aberta. Ela espiou cautelosamente dentro de uma sala menor que a primeira. Temia que houvesse alguém lá dentro.

Mas lá só havia várias prateleiras de metal, cheias de frascos diversos. Aparentemente, era o depósito de remédios. Ela achou todo o tipo de medicamento lá, e aproveitou para cuidar dos cortes em seu corpo, com álcool e gaze roubados daquela farmácia compacta.

Ficaria lá até que a poeira baixasse do lado de fora. Àquela altura, todos os guardas já deveriam ter sido avisados de sua fuga. Ela provavelmente teria que sair de lá a noite.

Passou os olhos pelos frascos da última prateleira. Estavam organizados em ordem alfabética, e os nomes que começavam com Z eram os mais engraçados.

Até que Rin chegou ao último frasco. Ele era maior que a maioria e não tinha rótulo. Ela o tomou na mão. O líquido era preto e grosso, e ela nunca havia visto nada parecido na vida.

Tirou a rolha da boca da garrafa e a aproximou do nariz, pois todo o mundo sabe que, quando não se conhece um líquido, era melhor cheirá-lo do que bebê-lo. Todo mundo menos Alice.

Mas só de dar uma rápida e leve cheirada naquela coisa, fez Rin arrepender-se de sua decisão. Ela tapou o frasco rápidamente quando suas narinas foram invadidas por um forte e desagradável odor.

Ela nunca havia sentido um cheiro tão horrível quanto aquele. Ficou impregnado em seu nariz e garganta, e até sua lingua sentiu um gosto ruim, insuportável. Seus olhos, até o que estava fechado, ardiam e lacrimejavam.

Ela foi até uma pia na outra sala e jogou água no rosto, na lingua e no nariz. Mas o cheiro parecia preso dentro dela. Ela sentia que estava sufocando mesmo respirando perfeitamente bem.

Ela esfregou o casaco no nariz e na boca. Não aguentava mais. Sua visão estava ficando nublada, avermelhada. O cheiro, ao invés de ficar mais fraco com o tempo, parecia ficar mais forte.

Então a porta de metal se abriu com um estrondo, revelando aquele mesmo guarda de um tempo atrás. Ele falou alguma coisa, e o som saiu tão alto que a menina tapou os ouvidos.

E então ela começou a sentir raiva.

Irracional, desmotivada e intensa raiva.

Ele sacou uma conhecida lança já consertada e foi em sua direção. Seu sangue ferveu e tudo pareceu diminuir de velocidade. Ela pulou em cima dele como um animal. Ele gritou, e isso a deixou com ainda mais irada.

Na verdade, tudo que ele fazia a deixava ainda mais irada.

Ela tentou usar a lança para perfurar seu olhos bom, mas seus movimentos pareceram tão lentos que ela desviou e o desarmou. Segurou a gola de seu uniforme e fez sua cabeça bater no chão até que ele desmaiasse. Uma pocinha de sangue se formou ao redor da cabeça dele.

Talvez ela teria continuado a fazer isso se a irritação em sua garganta, nariz e olhos não tivesse, aos poucos, passado, dando lugar a apenas um gosto amargo. Quanto mais fraco o cheiro ficava, mais fracas as pancadas ficavam. E então, quando percebeu o que estava fazendo, saiu de cima do homem, tremendo.

Ele poderia ter morrido.

Ela poderia tê-lo matado.

Ele poderia ter família. Esposa, filhos...

Sentiu-se enjoada, e quase não teve tempo de chegar até a pia antes de vomitar. O gosto de vômito era mais agradável que o do líquido, mas mesmo assim ela bochechou uma grande quantidade de água.

Levou o guarda até uma parede, o sentou e enrolou gaze na cabeça dele. O corte não era grande, mas machucados na cabeça sangram mais do que no resto do corpo.

Aquele líquido. Ela já tinha ouvido falar dele. Gatilho da Fúria. Feito com a raiz de plantas vulcânicas raras. Achava que não existia mais. Era um veneno fortíssimo, uma gotinha, e você estava morto em segundos.

Mas ninguém o usava como veneno. Ele era usado como arma de guerra. Um exército lançava bombas de cheiro de Gatilho da Fúria nos inimigos, depois era só sentar e assistir os soldados matarem seus próprios aliados.

O cheiro do veneno irrita e desencadeia a raiva na pessoa, e ela simplesmente ataca qualquer coisa que se move até o efeito acabar. Também bloqueia a dor, por isso, mesmo apunhalando uma pessoa sobre o efeito, ela só vai parar de lhe atacar se morrer ou se o odor passar.

Rin tirou um molho de chaves que viu no uniforme do homem e pegou sua lança do chão. Agora, pelo o menos, poderia abrir as outras portas e se defender. O homem fizera um bom trabalho no conserto, podia ver onde a arma foi partida, mas ainda assim parecia resistente. Foi até o corredor apressada. Não queria estar lá quando o guarda acordasse.

Lembrou-se de sua batalha com a fera. De como ele, periódicamente, esfregava o nariz e a lingua no braço. E de como ele parou de atacar quando sentiu, não seu cheiro, mas o cheiro do café.

Ele estava sob esfeito do Gatilho da Fúria, sem dúvidas, mas isso não significava que ele não fosse uma ameaça sem isso.

Ela chegou até o espaço com teto de vidro de novo. Tinha que tomar cuidado, em qualquer lugar poderia haver um guarda. Escondeu-se atrás de uma estátua quando oito deles apareceram. Todos a procuravam, mas nenhum obteve sucesso. Discutiam sobre onde ela poderia estar.

Como eles estavam de costas para ela, Rin entrou sorrateiramente no próximo corredor, temendo que fosse encontrada, pois a peça não a escondia por completo.

Infelizmente, não percebeu que havia outra estátua no caminho. Essa não tinha cabeça e nem braço esquerdo, e foi, provavelmente, substituída por uma nova. A menina esbarrou nela, não foi o suficiente para fazê-la cair, mas sim, para fazê-la ocilar de um lado para o outro. Sua base de mármore fazendo barulho ao balançar no chão de pedra.

– O que foi isso? – um dos guardas questionou.

– Quem está aí?! – outro completou.

Rin olhou para os lados. Só havia uma porta no final do corredor. Era grande, e a fechadura também. A loura vasculhou no molho até encontrar a maior chave de todas. Só podia ser aquela.

Antes de os guardas surgirem do outro lado do corredor, Rin já havia entrado em uma sala mal iluminada.

Fechou a porta silenciosamente. Afastou-se da entrada, pois a luz, mesmo sendo fraca, estava contra suas costas e talvez os guardas pudessem avistar sua sombra por baixo da fresta.

Examinou o novo aposento, e percebeu que não era tão novo assim. Já havia visto aquela janelinha gradeada e as paredes de pedra suja, já havia sentido aquele cheiro azedo, já havia escutado aquelas correntes sendo arrastadas.

E antes que pudesse voltar correndo para a porta, uma mão suja lhe tapou a boca, e outra a segurou com força. Ela tentou usar a lança para se defender, mas a mão que a segurava também foi presa.

– Não grite – pediu a fera – Não vou te machucar.

Rin se contorceu um pouco, mas concordou com a cabeça, também não queria que os guardas a encontrassem. A mão suja foi retirada lentamente e a menina passou os lábios no ombro, com uma careta. Não adiantou muito, já que a roupa não estava lá muito limpinha.

– Oi – o rapaz começou, sem saber o que dizer.

– Olá – Rin respondeu, cautelosa, com a lança ainda na mão.

Olhou para a porta de metal. Os guardas não deviam mais estar lá fora. A menina limpou a garganta.

– Se não se importa – deu um passo em direção à saída. Sabia que precisava dele, devido ao pedido do não livro, mas ficar ali esperando ser atacada não ajudava em nada.

– Espera! – ele praticamente choramingou, puxando seu braço com força – Você tem que me ajudar! Eu quero sair! Não quero ficar mais aqui! Você precisa ajudar! Eu nem disse para eles que estava viva naquela hora!

Então ele sabia que ela não estava morta, e deixou por isso mesmo. Tudo bem que ele quase a matou quando estava sob efeito do veneno, mas deixou ela viver quando o mesmo passou. Isso tinha que valer alguma coisa, não?

Quem sabe ele não fosse tão mal assim. E uma ideia lhe veio a mente.

– Eu te ajudo a sair, mas com uma condição – propôs Rin.

– Qualquer coisa, faço qualquer coisa! – prometeu.

– Você tem que me ajudar a libertar minha amiga da cadeia. E vai me proteger também, porque tem umas pessoas que não gostam de mim. E tem que prometer não me matar depois que eu te soltar.

Ele concordou energeticamente, e a menina teve a impressão de que se pedisse para ele limpar os esgotos da cidade com lambidas ele teria aceitado sem pestanejar.

– As chaves da coleira e das correntes devem estar aqui em algum lugar – ela mostrou o molho das chaves.

– Não. Eu já vi esse molho antes – disse – As chaves estão em outro lugar. Não precisa da chave das correntes, apenas da coleira.

Rin deu uma olhada na coleira. Tinha a fechadura mais estranha do mundo. Tinha formato triangular, com um uma elevação quadrada no meio.

Então uma lembrança a atingiu.

– O colar da estátua! – exclamou.

– O quê? – a fera indagou.

– Eu sei onde está a chave! – ela foi em direção a porta correndo – Volto logo!

Ele escutou a porta de metal bater de leve. Sentou-se no chão sujo, sem se importar, estava tão sujo quanto ele. Coçou a cabeça e depois a barba. O corte que ganhara na batalha já havia parado de sangrar.

Olhou ao redor do monte de pedras alinhadas que o separavam da liberdade. Já havia memorizado cada detalhe da caixa gigante na qual o matinham preso. O buraco quadrado era o único modo de ver o mundo lá fora, e ainda assim, um monte de entulho tapava quase toda a visão.

Ele esperava que a humana de laço preto voltasse logo. Pela primeira vez em 17 anos, ele estava sorrindo. Pensava nas coisas que iria fazer lá fora. Depois de tanto tempo preso, alguém o estava ajudando.

Seria fácil, ela pegaria a chave, voltaria e eles iriam embora. Aqueles homens com roupas iguais não eram páreo para ele, mesmo com seus gravetos pontudos. Não haveria nenhum problema.

Ele só precisava esperar que ela voltasse.

Ela iria voltar. Ela disse que iria.


. . .


 Rin estava atrás de uma estátua de um homem grande e gordo, que a cobria por completo. A chave da coleira estava do outro lado do salão, e a todo momento guardas passavam correndo.

O teto de vidro tornou-se inútil na escuridão da noite, e as luzes foram acesas. Ela pôs um manto preto na ponta da lança, para evitar que chamasse atenção.

Eles procuravam por ela, afinal, um estrangeiro no coração do centro polícial da Cidade da Tempestade era motivo de vergonha se alguém ficasse sabendo. Todos os guardas estavam distraídos demais para notá-la atrás da peça decorativa.

Sempre que Rin achava que tinha uma chance de pegar o colar, mais um grupo passava pelo salão, xingando e dizendo que deveriam arranjar cães farejadores. Aquilo não iria funcionar, ela tinha que pensar em alguma coisa.

Do jeito que eles estavam desesperados, um simples barulhinho seria o suficiente para distraí-los, por isso Rin sacou o yo-yo e se preparou para lançá-lo em direção a algum lugar. O corredor principal, aquele pelo qual chegou até lá era o ideal.

Mirou e jogou o objeto com toda a força que tinha. O yo-yo quicou e fez um barulho considerável, devido ao eco. Não demorou para uma orda de guardas seguirem o som. Eles chamavam os companheiros, informando onde a menina supostamente havia ido.

Quando Rin teve certeza que não havia sobrado mais nenhum homem no salão, correu para a estátua certa. A correntinha era bem grande, o que facilitou na hora de passar pela cabeça da estátua. A menina teve que ficar nas pontas do pés na base da peça, para poder tirar a chave.

Pôs os pés no chão de novo, chave nas mãos e um sorriso no rosto. Agora só precisava voltar. Então escutou o som de ar sendo cortado e uma flecha atingiu a parede ao lado de seu rosto. Seu coração disparou, e ela viu o guarda de pé, com gaze ainda enrolada na cabeça e uma besta na mão.

– Eu sei o que você quer fazer – seu olhar se alternava entre chave e o rosto de Rin –, e eu não vou deixar.

A menina nem disse nada, disparou na direção do corredor que levava ao rapaz. Ela não podia chegar perto do homem para atingi-lo com a lança, acabaria com uma flecha atravessada no meio da testa, então só podia correr.

A flechas passavam voando próximas à sua cabeça, ele queria mesmo matá-la. Sorte sua que correr e manejar uma besta ao mesmo tempo não era uma tarefa fácil. Rin o ouviu gritando, chamando reforços.

Chegou até a porta que havia deixado destrancada de propósito e praticamente a arrombou, pregando um susto no rapaz, que se levantou num pulo. Ela fechou e trancou a porta, mesmo que provavelmente os guardas possuíssem uma chave extra.

– Vamos logo! – Rin foi até ele – Temos companhía!

A fera esticou o pescoço e a loura encaixou a chave na fechadura. Estava bastante velha e, como provavelmente só fora usada uma vez (para fechar a coleira), ela teria um certo trabalho para abrir a coisa.

Garota! Não faça isso! – a porta estava sendo golpeada – Nós vamos deixar você ir embora, mas pelos deuses e pelo palácio, não faça isso! – era o guarda da veia falando.

Ela continuava a forçar a chave.

Não faça isso! – mais golpes na porta – É mais seguro para todo mundo que ele fique preso aqui!

Eventualmente, escutaram um clique, e o objeto caiu no chão.

O rapaz não perdeu tempo em começar a puxar as correntes quando ouviram a porta ser golpeada ainda mais fortemente. Sem a coleira, seria fácil quebrar as pesadas e grossas correntes.

As batidas ficaram mais altas, e as correntes entortavam, se abrindo. E, no momento em que a porta foi arrombada, as correntes cederam.

Rin nunca vira pessoas tão assustadas na vida.

– Siga-me – o rapaz pediu, e ela concordou com a cabeça.

Nem houve tempo de os políciais tirarem as espadas da bainha, foram jogados para os lados, socados, ou feridos com garras. O guarda da veia saltada foi levantado pelo pescoço com facilidade, e jogado para o outro lado do cômodo.

Eles correram até chegar ao salão. Não foi muito difícil, a maioria dos guardas nem ousava chegar perto do rapaz. Ele pôs-se a erguer as estátuas e as empilhá-las no centro, em cima do emblema da cidade.

Rin entendeu o que ele estava fazendo. Escapariam pelo teto de vidro. Enquanto ele estava ocupado, a menina recuperou o yo-yo, mesmo sabendo que era perigoso se afastar dele.

A fera arrancou a cabeça de uma das estátuas e jogou no teto, abrindo um buraco e tanto.

– Sobe! – ele mandou, se agachando um pouco e arqueando as costas.

Rin não discutiu, ou subia em suas costas, ou era deixada para trás. Ele tomou impulso e subiu nas estátuas depressa, saltando na última delas, e num piscar de olhos, estavam no telhado da fortaleza. Ele pulou até o chão e Rin desceu de suas costas.

Começaram a correr imediatamente, iluminados pela lança, mesmo sabendo que nenhum dos guardas seria bravo o suficiente para enfrentar a fera. Pararam apenas quando atravessaram um rio especialmente grande com a ajuda de um tronco velho de árvore.

Rin deitou-se na terra. Àquela altura, seus ferimentos já estavam sarados, e ela ficou feliz em constatar que seu olho não havia sido danificado gravemente. O rapaz quebrou as argolas apertadas de seus pulsos com as mãos.

Ela virou a cabeça, e o viu olhando para o céu, para a água, para as folhas e para as árvores. Ele olhava para tudo ao mesmo tempo, quase sobrecarregado com a visão, maravilhado. Um vento veio e ele sentiu o cheiro da madeira e das flores, olhos marejados.

Nem percebeu a garota o encarando sem disfarçar.

Rin já havia visto muita coisa bonita na vida. Palácios e estátuas feitos de ouro cravejado com diamântes, obras de arte que pareciam que iriam sair das molduras de tão reais, cataratas com águas cristalinas que formavam arco-íris quando encontravam o sol, florestas explodindo de cores, verde, amarelo, laranja... Tantas coisas belas...

Mas nada era tão lindo quanto aqueles olhos virgens que acabaram de conhecer a liberdade.


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Notas finais do capítulo

No próximo cap o Len vai ganhar um nome e vai ficar bonito.