Equinocial escrita por Babi Sorah


Capítulo 4
Insônia - Parte I


Notas iniciais do capítulo

A versão nº 1 deste capítulo estava muito curta, então eu decidi adicionar essa cena.

Boa leitura!



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*Capítulo 04*

Insônia - Parte I

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"É, eu não estou bravo

E não, eu não estou triste

Levei um tempo, mas foi o que aprendi

Apego emocional não é uma real ameaça

Quando eu simplesmente não ligo

(...)

As coisas que eu aceito

Eu logo ignorei

Porque não conheço ninguém

Que está contente com as coisas como são

Ou com o que têm

Então eu desisti e agora sou apenas indiferente"

(Relient K– Apathetic Way To Be)

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Com cuidado, Zero fechou atrás de si a grande porta de madeira entalhada e abandonou a sala silenciosamente.

Do lado de fora, ele permaneceu junto á porta fechada, com a mão direita ainda segurando a maçaneta de bronze. Inclinou a cabeça para baixo e encarou o chão, focando seus olhos em algum ponto qualquer.

Ele precisava de um tempo.

Tempo para reerguer as paredes que sustentavam seu autocontrole. Em sua cabeça, ele contava os segundos. Um minuto de espera era tudo o que precisava. Fazia o possível para adiar a própria saída, pois sabia perfeitamente o que iria encontrar quando cruzasse o corredor.

E não gostava nem um pouco disso.

Mas estava na hora e ele precisava sair dali. Então organizou os pensamentos, ergueu o rosto e alinhou os ombros. Afastou-se da porta e seguiu caminhando intencionalmente mais devagar ao longo da ala da presidência.

Por onde passava, Zero se dedicava a uma análise desnecessariamente minuciosa da rica ornamentação ali presente. Seguia com o olhar as altas e elegantes nervuras que se erguiam em direção ao teto, sustentando as abóbodas em cruzaria. Outras vezes, direcionava os olhos para o alto e observava a luz dos lustres refletindo nos vitrais coloridos das janelas do clerestório; ou voltava a encarar o chão, analisando o elaborado desenho geométrico que decorava o piso de pedra.

Entretanto, mesmo usando isto como desculpa para justificar seu ritmo lento, o corredor enorme da ala chegou inevitavelmente ao fim, desembocando na escadaria de mármore. E antes que Zero pudesse encostar o solado de suas botas de couro no primeiro degrau, um bando de seguranças armados já esperavam ansiosamente pela chegada dele.

Oh, céus, até quando aquilo iria se repetir? Já estava farto, era sempre a mesma coisa!

Sem esboçar nenhuma expressão de surpresa, o rapaz deu uma olhada rápida e calculada para os cinco vigilantes trajando fardas negras e posicionados em ambos os lados do balaustre da escadaria. Assim como já esperava, a aura deles exalava pura hostilidade. No rosto de cada um havia o mesmo olhar de repulsa; e Zero tinha certeza de que internamente, todos adorariam ter uma oportunidade para atacá-lo.

O jovem hesitou por um momento, ponderando se não seria melhor evitá-los, dar meia volta e simplesmente cortar caminho usando o elevador, mas descartou tal ideia no mesmo instante. Não havia razão para fugir. Afinal, de que serviria evitar as confusões se elas insistiam em vir até ele?

Ostentando sua melhor máscara de indiferença; Zero decidiu ignorar a presença dos guardas e avançou calmamente pelos degraus, batendo de propósito as botas com um pouco mais de força sobre o mármore e produzindo um ruído desnecessário e irritante, como se com isto dissesse a todos eles algo como "Ainda estou por aqui, gostem vocês ou não.".

Curiosamente, de alguma forma os homens pareciam ter compreendido sua mensagem não dita; pois a cada degrau que descia ele podia sentir a atmosfera a seu redor oscilar com toda a raiva que lhe era oferecida. No entanto, a sensação de ser indesejado se tornava a cada dia mais e mais familiar para ele, em diversas ocasiões e com diversas pessoas, não apenas entre os guardas da Associação.

Em algum momento a escadaria chegou ao fim, e ele avançou em direção ao terceiro andar. Após atravessar outras alas e descer por mais duas escadarias, ele enfim alcançou o primeiro piso. Logo adiante, o transepto se abria para a imensa nave que abrigava a recepção. Desta vez, agora mais calmo e preparado para o que viria em seguida, Kiryuu decidiu apressar os próprios passos e terminar logo com aquilo tudo.

Apenas continue andando – ele dizia mentalmente a si mesmo — Olhe para frente, apenas ignore-os... E isso vai acabar mais rápido do que você imagina...

Era como adentrar numa savana cheia de hienas e leões famintos.

Foi preciso apenas que a figura do rapaz surgisse na recepção para que o feito de sua presença fosse imediato. Uma por uma, todas as pessoas que circulavam pela nave ou transitavam pelas tribunas viraram suas cabeças em direção a ele; e numa fração de segundo cada uma delas voltou a seus devidos afazeres como se nada houvesse acontecido.

Porém, mesmo que fingissem desviar os rostos ou demonstrar normalidade, Zero ainda era capaz de sentir os olhares bombardearem suas costas, vindos de todas as direções. Olhares mesclados de temor, ódio e intenções assassinas.

Ele quase podia ouvir suas bocas murmurarem pragas e maldições de morte, lamentando o dia em que ele fora acolhido por Kaien e trazido até o Quartel General.

A razão por trás daquilo tudo era muito simples: Nenhum deles era capaz de perdoar sua existência. Jamais aceitariam a presença de um Ex-Humano dentro da organização cuja função primordial era exterminar criaturas amaldiçoadas. Criaturas que assim como ele, foram condenados a vagar nas trevas como bastardos que somente atraem destruição e morte para todos que os cercam.

Houve uma época em que Zero tentou compreendê-los, dizendo a si mesmo que era injusto julgá-los por agir desta maneira, pois se estivesse no lugar deles provavelmente faria a mesma coisa. Mas o tempo passou e ele cansou de se importar, conformando-se com o fato de que havia apenas um destino único e definitivo para sua existência.

E assim como ele atravessava o enorme portal que o conduziria até a saída, este destino se tornava cada vez mais óbvio e esperava-o logo adiante: A escuridão da noite. Densa, gélida e silenciosa, mas que oferece para todos sem distinção o seu abraço entorpecente.

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A 'casa' para onde Zero deveria ir era um antigo alojamento localizado próximo ao bosque que separa os limites ao redor da Associação. Para chegar lá é preciso andar até os fundos da construção, atravessando o pátio da Área Sul e seguindo até a parte mais arborizada do campus.

Era uma longa caminhada, mas Zero não se importava. Fazer isso sempre o ajudou a relaxar depois de longas noites de trabalho e o melhor de tudo, era um dos raros momentos em que ele podia ter alguma tranquilidade ou pelo menos o mais perto que conhecia disso: Ninguém lhe dizendo o que fazer o tempo todo; sem cochichos e fofocas sobre ele nos corredores, ninguém o olhando com indignação ou simplesmente desejando a morte dele... Uma perfeita paz, não acha?

Normalmente, a essa hora ele estaria dentro do trem e indo para o próprio apartamento na cidade vizinha, mas com a Cross Academy fechada para as férias; Zero não conseguiu dar uma desculpa boa o suficiente para continuar morando sozinho e afastado do Quartel general. E agora não havia garantias de que voltaria para lá outra vez.

Ele fechou os olhos e inspirou fundo o ar noturno, frio e agradável. As vezes aquele lugar podia ser sufocante.

Muito sufocante.

Em todo caso, ao menos o verão já estava no fim.

Ele continuou de olhos fechados pelo resto do caminho, seus outros sentidos tão aguçados ao ponto de não precisar olhar por onde pisava; apenas se deixando guiar pelos aromas, sons e texturas... Até que uma sensação de desconforto no estômago e um leve arrepio na espinha lhe avisarem que estava sendo observado.

Zero manteve a cabeça fria, seguiu caminhando normalmente para o alojamento e se concentrou nos arredores. Seu perseguidor estava perto, mas não conseguia dizer a localização exata, tudo estava quieto demais e seja lá quem fosse, não parecia ser algum agente da Associação.

Aproximou-se do bosque. Tinha certeza de que a barreira de proteção invisível que cercava toda a propriedade estava intacta. Logo, nenhum vampiro conseguiria invadir. Ele mesmo só era capaz de permanecer lá dentro graças ao poder da marca de submissão tatuada em seu pescoço.

Então quem ou o que estaria lhe vigiando?

Apareça de uma vez!

Zero encarou a escuridão do bosque com mais intensidade enquanto seus olhos se adaptavam para a visão noturna.

Por trás das árvores e parcialmente oculta pela névoa, havia uma figura que se movia devagar em passos suaves e astutos, quase silenciosos.

Com certa surpresa e alívio, o rapaz finalmente conseguiu descobrir a identidade de seu perseguidor.

Era um grande lobo cinzento.

O lobo parou de se mover e encarou Zero com olhos afiados. O rapaz imediatamente retribuiu o olhar, tentando achar sinais de poderes vampíricos agindo sobre o animal. Uma das habilidades dos bebedores de sangue era a capacidade de se apossar de outras criaturas, controlando-as como marionetes para servirem de espiões contra seus inimigos. Os mais poderosos podiam até assumir a forma de algum deles, mas felizmente não havia indícios de que aquele lobo fora manipulado.

Ainda encarando-o, o animal farejou levemente o ar, deixando Zero perceber que também estava sendo igualmente analisado. Após um breve segundo o lobo arreganhou as presas brancas, emitiu um forte rosnado e seu pelo cinza eriçou-se acima de suas costas.

Aquilo não era um bom sinal.

Zero não pretendia provocar o lobo e muito menos machucá-lo caso fosse necessário se defender. E enquanto tentava encontrar alguma alternativa para se ver livre daquela situação, uma ideia inusitada lhe veio à mente.

Afastou-se com cuidado dando dois passos para trás, e como se fizesse uma reverência, inclinou a cabeça e curvou o tronco em sinal de respeito e temor. No mundo selvagem, olhar outra criatura nos olhos também era um sinal de desafio ou ameaça. Ele torceu para que o lobo pudesse captar sua mensagem: eu sei que pareço assustador, mas não sou seu inimigo. Não pretendo atacá-lo.

Felizmente, o lobo pareceu entender o recado e a fim de evitar uma possível ameaça, a criatura adentrou mais fundo no bosque.

Devagar, o jovem Hunter endireitou a postura e observou enquanto o animal ia embora. Quando estava no meio da trilha e já meio escondido pelas árvores, o lobo virou o focinho para Zero uma ultima vez, e por um segundo o rapaz pensou ter visto um brilho de curiosidade no olhar da criatura antes de desaparecer pela vegetação.

Zero ainda permaneceu olhando para as arvores por alguns instantes. Com certeza, os rastros do caos que se instalou há quase dois anos também trouxe sequelas para a natureza. Durante o conflito muitas florestas e áreas arborizadas foram usadas como esconderijo pelos vampiros, assustando os animais e desequilibrando o ciclo predatório natural do ambiente.

Alguns fugiram, muitos morreram de fome e agora as autoridades faziam a manutenção dessas áreas, mantendo-as em condições de reserva ecológica para as espécies mais afetadas. Aquele lobo devia ser um deles. Talvez tenha escapado de uma reserva próxima ao interior da cidade.

Pensar nisso fez Zero sentir alguma simpatia pelo lobo. Ele deve ter perdido sua alcateia, seu lar, sua liberdade; e agora precisaria aprender a sobreviver num espaço limitado e monitorado por estranhos. Uma vida dentro de uma jaula sem grades.

Hunf, o Mestre tem razão. Eu devo estar mesmo um lixo. Estou até perdendo tempo com sentimentalismo inútil. Mas que ridículo!

Dando as costas para o bosque, ele seguiu para a entrada do alojamento, que era um velho prédio retangular de tamanho modesto, com dois andares. Retirou um molho de chaves de dentro do bolso do casaco, destrancou a porta e entrou.

Lá dentro, mesmo com as luzes apagadas ainda era possível ver que tudo permanecia exatamente igual a como ele havia deixado, com exceção de uma fina camada de poeira cobrindo o chão e a mobília. O sobretudo azul-marinho que usara na noite anterior ainda estava pendurado no cabideiro do vestíbulo. Na sala de estar, a pilha de livros que não terminou de ler descansava sobre a mesinha de centro, junto com a xícara de chá que ele nunca bebeu.

Descalçou as botas, colocou-as ao lado do cabideiro e foi até a mesinha recolher os livros para guardá-los na estante. Aproveitou para também recolher a xícara, deixando-a na pia da cozinha e só então dirigiu-se para o segundo andar.

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Após tomar um banho quente demorado, vestir roupas limpas e engolir um frasco cheio de pastilhas de sangue, ele ficou deitado na cama, mas sem conseguir dormir apesar de sentir o corpo pesado e dolorido. Aliás, ele mal se lembrava da última vez em que teve uma noite de sono decente. Para Zero a noite foi feita para caçar, e não para ficar preso num quarto encarando o teto.

De repente, ele quis mais do nunca sair dali, correr pelas ruas e pôr em pratica o que fazia de melhor...

Não! Vamos lá... Concentre-se, volte a si! Não vale a pena fraquejar desse jeito. Não por uma razão tão patética como essa.

Mas como ele faria para não perder a cabeça até o fim da semana? Talvez acabasse enlouquecendo de uma vez, para a alegria de todos os vampiros e dos membros infelizes da Associação.

Pela primeira vez na vida, Zero desejou estar na Academia durante alguma das aulas incrivelmente chatas que Kaito lecionava. Elas sempre o faziam dormir sobre a mesa e com certeza eram um santo remédio contra a insônia.

Não acredito que estou pensando numa tolice dessas...

E ele sequer podia dar um tiro em si mesmo para descontar a raiva que sentia da própria estupidez.

Porém, após três noites e dois dias em claro, o cansaço faz estragos em qualquer um. E depois de se revirar na cama pela milésima vez, a exaustão levou a melhor e Zero finalmente conseguiu adormecer quando o sol já brilhava alto no céu.

Mais tarde, Kaito ou algum outro agente imbecil provavelmente viria lhe acordar para preencher algum relatório ou reportar qualquer anúncio inútil, como sempre. Mas até lá, ele fez o possível para aproveitar as próximas duas horas de sono.

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Notas finais do capítulo

Se eu me lembro bem, eu fiz esse capítulo originalmente para tentar ilustrar esse lado um pouco mais "amargo" do Zero. Agora que vejo o resultado final, não tenho muita certeza de que consegui....

Até o próximo capítulo e muito obrigada por lerem!