Hitler E Sua Escova escrita por Harpia


Capítulo 2
Zwei


Notas iniciais do capítulo

Quando os sinos de Berlim tocam...



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O tempo nos muda, mas não como as estações mudam e mesmo assim as flores continuam a ser formosas, ele literalmente nos destrói.

Dez anos se passaram. Não houve bastante movimento no banheiro do que era agora somente a casa dos pais de Hitler e a escovinha estava esquecida, mais velha e consequentemente mais amarga. Ela não sorriu nos últimos meses ou sequer expressou qualquer outro sentimento. Não comparecia às festas dos esfregões, aos chás da tarde dos alvejantes ou à escola dentro do armário onde poderia encontrar suas outras amigas escovas

Logo, quinze anos se passaram. Os pais de Adolf morreram assassinados e ele era órfão em algum lugar do mundo. Espiando uma conversa telefônica de um dos novos dois humanos que habitavam a casa, descobriu que Adolf estava em Viena sem dinheiro e que seus irmãos haviam o ignorado. Quando ela estava sozinha - o que ocorria 3/4 das horas - tentava chorar, mas nenhuma lágrima caía de suas cerdas; talvez todas elas haviam secado no dia em que ela viu o amor de sua vida partir para uma jornada insana e cheia de desapontamentos.

Num sábado em que a garoa fraca titubeava na janela do banheiro e o céu estava coberto por uma camada cinza, ela não aguentou o peso sob seus ombros e tentou se matar pulando no ralo do banheiro, mas por sorte (ou por azar) a nova dona da casa a puxou com um arame e ela conseguiu sobreviver sem sequelas além de sujeira. Dois anos à partir desse acidente, teve uma ideia brilhante: Decidiu fugir. Através de cartas que roubou do balcão da cozinha, descobriu também que Adolf não havia passado na faculdade, havia se mudado para Munique e de Munique para Berlim.

Suas malas? Ela não tinha malas, apenas seu corpinho de plástico duro. Quando os humanos adormeceram após o jantar, a escova saiu do banheiro e ao alcançar a porta sentiu algo acertá-la nas costas. Era 360, uma das únicas escovas que poderia considerar como amiga.

Com a expressão aflita e soturna, a aconselhou. - Não vá. Você não irá sobreviver por muito tempo lá fora.

– Mas eu tenho que tentar - insistiu, pisando na soleira.

– Você não sabe como o mundo é cruel – 360 tentou puxá-la pelos braços.

Mas a escova se debateu. – Nem você.

– Por que você quer ele? Hitler é humano, jamais se interessaria por uma escova.

Ela se virou subitamente, exaltada. – Você não sabe de nada, não entende o laço que nos une!

– Isso é loucura – 360 sacudiu a cabeça negativamente.

E então, a escova sentiu a corrente molhada e quente escorrer pelos olhos e descer pelas bochechas. Há muitos meses não experimentava a sensação de chorar. Sua garganta estava se fechando e sua caixa torácica se sacudia violentamente com os soluços. - Loucura é viver uma mentira e isso eu não suportaria, 360. Meu coração está estourando de tristeza.

Num breve lamento, 360 confessou cabisbaixa. - Vou sentir sua falta.

– Eu voltarei – a prometeu fungando. A escova estava esperançosa, ninguém poderia tirá-la essa atitude.

– Não acredito tanto nisso – afirmou sua amiga e depois deu as costas, desaparecendo na sombra projetada pela privada e retornando ao armário.

Fechando as mãos em punho, a escova finalmente seguiu pelo corredor escuro. Haviam muitos perigos no corredor, como traças, aranhas, fendas e armadilhas no piso de madeira, porém, embora o mundo fosse maior do que ela poderia imaginar, seu amor se expandia tão depressa quanto todos os Universos e até mesmo os Multiversos.

Escalando com dificuldade a porta da frente, a escova conseguiu saltar pela entrada da correspondência e logo estava atravessando o gramado do jardim descorado. O vento sacudia suas cerdas e ela sorriu pela primeira vez desde que Hitler foi embora. O luar banhava sua feição azul, branca e verde e ela se sentiu especial por poder saudar a Majestade noturna ao contrário das outras escovas que continuariam a viver presas no banheiro e não conheceriam nada além daquele recinto podre.

Durante o caminho pela calçada, a escova se lembrou de que leu e estudou muito sobre a vida humana nas revistas que haviam no banheiro. Não tinha dificuldade de lidar com as inúmeras páginas, sempre as abandonava abertas toda vez que terminava de cagar. Sabia que os humanos usavam máquinas que cortavam o céu, sabia que eles estavam prestes a criar uma guerra, sabia que eles se maltratavam e se matavam como se não fossem meros semelhantes. Apesar de tudo isso amava Adolf, mesmo que ele fosse tão defeituoso como os outros de sua espécie. O imaginava a levando para passeios românticos, acendendo velas, comemorando seus aniversários e passando a mão ao redor de sua cintura prometendo que tudo iria melhorar.

Durante a madrugada, não sentiu sono, apenas ansiedade. Vagou até o aeroporto sem ser notada (os humanos sempre estavam ocupados demais e nunca viam o que acreditavam que não estaria lá) e entrou num avião que voaria até a Alemanha; ouviu os pais de seu amado conversarem sobre ele estar trabalhando nesse país. Dormiu onde as bagagens dos humanos estava e acordou com os sinos do capitólio de Berlim soando alto.


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Notas finais do capítulo

Qual será o desfecho desse interminável drama?