O Mestre Do Silêncio escrita por Yuka


Capítulo 1
Voltando ao silêncio


Notas iniciais do capítulo

Eu não sabia ao certo o que fazer para apresentar a mente de Aiko, visto que ele era um personagem extremamente silencioso e difícil de apresentar. Por isso, optei pela narração em primeira pessoa, por mais que eu não seja muito boa nisso. Foi até mesmo um treino!

Críticas e elogios são muito bem vindos.
Espero que gostem da leitura, especialmente você, Jean!

ps: Acho essa música ótima pra se ouvir enquanto lê:
http://www.youtube.com/watch?v=T1wuj652448



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Os dias na Corte sempre foram calmos para mim. Às vezes, um pouco entediantes, eu confesso. Afinal, nada de diferente acontecia. Era sempre a mesma coisa.

O Rei e a Rainha estavam sempre andando pelo Castelo com suas roupas caras e elaboradas, tecidas pelas mãos dos melhores artesãos do Reino de Sira com os mais raros tecidos. É o que diziam. A minha opinião? A de que a roupa deles não era diferente da túnica de aprendiz que eu usava.

Eu passava os dias a observar. Gostava de sentar nos bancos do jardim, de onde era possível ver a maior parte das pessoas que moravam e trabalhavam na Corte. Uma delas me fazia a observar com mais frequência. O nome dessa pessoa era Ailina.

Ela não era nenhuma princesa, muito menos parte da nobreza desse Reino. Ailina era uma das empregadas do Rei, encarregada de cuidar da limpeza e dos mantimentos para os alojamentos dos aprendizes.

Eu a olhava andando, rápida. Ela era sempre breve e rápida nos movimentos, extremamente subordinada, silenciosa e o mais calma que conseguia, ao mesmo tempo. Era sempre calada, não sorria. Eu nunca a vi sorrir, seus sorrisos eram mais raros que os meus. E eu sempre me pegava perguntando que tipo de pessoa ela era... Quais eram os motivos que a levavam a ser tão quieta e fechada. Ela era uma das pessoas que eu mais observava, e as outras eram meus colegas.

Eu sempre olhei as pessoas em silêncio porque eu acho que as palavras nem sempre são o suficiente para expressar os sentimentos. Além disso, eu já vi, incontáveis vezes, brigas acontecerem por causa de uma frase mal dita. Algo que a pessoa esperava que surtisse um efeito, surtia outro completamente contrário. Até usar mais palavras para explicar a verdadeira intenção... Já era tarde demais. Além disso, as pessoas não estão acostumadas a ouvir a verdade. Elas estão sempre se escondendo atrás de máscaras, tentando mostrar o que não são para conseguir coisas que não desejam de fato. Eu prefiro ficar em silêncio a ser obrigado a mentir.

Eu amo o silêncio. É no silêncio que eu consigo ouvir melhor os meus pensamentos, por mais que eles nem sempre sejam tão bons.

Quanto a meus colegas de estudo de magia, eu nunca tive uma opinião formada sobre qualquer um deles. Laina nunca fez questão de falar comigo. Ela é do tipo que só conversava com Ísis, e eu nem sei quando elas começaram a ficar tão próximas. Como ela não fazia questão de falar comigo e eu não fazia questão de falar com ela, nunca conversamos. Mas eu não preciso conversar com ninguém para adivinhar grande parte e com grande precisão sua personalidade.

Laina não é uma má pessoa, mas é superficial. Prendia-se apenas aos detalhes, às aparências, aos sentimentos que estão mais óbvios. Ela não sabia ler as outras pessoas, nem tentar saber no que os outros estavam pensando. Por odiar meu silêncio, ela nunca tentou saber o que se passava comigo, muito menos me ajudar. Não que eu precisasse de ajuda, mas ela simplesmente não fazia questão.

Eu não sinto muita simpatia por Ísis. Por ser sobrinha do líder dos magos, ela achava que tinha alguma influencia sobre os outros aprendizes e constantemente se chamava de "líder". Laina, sua melhor amiga, às vezes a chamava de líder, fazendo-a rir. Eu? Eu continuei em silêncio como sempre, apesar de achar que essa atitude de Ísis era totalmente dispensável, assim como Ísis era para mim: desnecessária.

Adrien conversou comigo algumas vezes, mas não conseguiu lidar com meu silêncio constante e minhas respostas lacônicas e reticentes. Eu precisava conversar com alguém que me entendesse bem, para que eu pudesse falar pouco e ser entendido ainda assim. Usando poucas palavras.

Encontrei essa pessoa quando menos esperava.

Certo dia, fomos avisados de que uma nova aprendiz chegaria. Não qualquer aprendiz; era uma aprendiz de magia clarividente. Seu dom havia sido descoberto há pouco e a clarividente de Sira, Zahra, já havia entrado em contato com a maga. Para ser sincero, eu não senti empolgação ao ouvir isso. Eu me mantive indiferente e respondi "Estarei lá".

No dia de sua chegada, fomos orientados a esperá-la no salão onde aconteciam as refeições entre os aprendizes. Nossos mestres estavam junto conosco. Comigo estava meu mestre, Sven. Todos estavam em silêncio, para minha surpresa. O tédio tomava conta de mim enquanto a espera parecia interminável, e então eu a vi.

Eu não sei dizer ao certo o que senti, só soube que ela era diferente. Eu sabia que seu nome era Nirina e que significava "água", e a água era seu elemento principal. Olhei-a por alguns instantes e então pensei que ela era diferente. Que eu tentaria conversar com ela e talvez tivesse encontrado uma amiga em meio a tantas pessoas que me eram indiferentes.

Depois do almoço, como eu esperava, Nirina tentou se enturmar com os aprendizes e foi duramente rejeitada. Adrien tentou adverter Ísis para que parasse de agir assim; Laina foi conivente como sempre era quando se trava de Ísis e Nirina acabou aceitando de que teria que ficar sozinha. Ela era como eu: incompreendida e deixada de lado.

Quando a vi passar por isso, precisei agir de alguma forma. Fazia tempo que eu não me importava assim com alguém, mas ela parecia realmente ser diferente. Levantei rápido do sofá onde eu estava com os outros aprendizes e a segurei pela mão, levando-a para fora do lugar.

Ela parecia animada, apesar de tudo. Balançava as pernas e sorria, olhando-me, como se perguntasse a si mesma "O que se passa na cabeça desse garoto?".

A conversa foi breve. Disse a ela que não se importasse com Ísis pois ela era sempre assim com todos. Nem parecia algo pessoal. A única pessoa com quem ela não era ríspida era Laina. Perguntei a ela como era ser clarividente, afinal, grande parte do preconceito e discriminação contra ela vinha do fato de que ela era uma leitora de mentes em potencial. Ísis afirmava que não queria ninguém lendo sua mente, por isso seria melhor ficar longe de Nirina. A minha opinião sincera é a de que Ísis inveja Nirina, tanto em inteligência quanto em poder como maga.

Ela respondeu que não sabia ainda. Eu achei um tanto engraçado, até. Havia descoberto seus poderes havia tão pouco tempo que mal sabia como era ser uma clarividente e os outros aprendizes já estavam falando com ela como se ela fosse ler as mentes de todos indiscriminadamente. Eles são tão superficiais, tão mesquinhos; jamais parariam para analisar as necessidades de outra pessoa que não fossem si mesmos.

Eu me afastei ainda mais deles depois de vê-los tratando Nirina daquela maneira. Não que eu sentisse algo de diferente pela aprendiz de clarividência, mas ela parecia ser a única apta a ser minha amiga. Alguém que realmente me compreenderia. Eu não precisava ser amigo de Laina, Adrien e Ísis, então quando encontrei alguém que poderia me entender, distanciei-me ainda mais deles. A conversa foi breve, mas eu sabia que ela era diferente. Sensitiva, inteligente. Talvez seu dom para clarividência a ajudasse a ser assim.

Logo depois que ela saiu, eu voltei a me perder no mundo dos meus pensamentos enquanto sentia o vento leve em meu rosto. Eu não sou silencioso porque odeio as coisas. Eu não sinto ódio e raiva de nada, apenas gosto do silêncio mais do que gosto das palavras. Eu gosto da vida, ainda tem muita coisa que quero observar. Como mago, eu achava que isso seria ainda mais interessante. Eu sabia que magos de ar eram os que levitavam, e eu estava extremamente ansioso para aprender essas lições.

Eu mantinha uma boa relação com meu mestre, Sven. Ele era sério e calmo e, apesar de bravo, era alguém que eu gostava de estar perto. Os outros aprendizes tinham arrepios ao ver Sven com seus olhos sérios sob as lentes de seus óculos, mas isso nunca me incomodara, por razões óbvias. Foi então que as coisas começaram a mudar.

Foi mais ou menos quando Nirina chegou, um pouco antes de sua chegada, se bem me lembro. Meu mestre estava diferente. Eu o via fingir seus sentimentos para as outras pessoas fora de nosso quarto. Seu semblante sério não era mais o mesmo, era algo forçado; o que ele fazia para esconder algo que obviamente não estava certo. Senti-me estranhamente curioso sobre isso, mas não ousaria perguntar, de modo algum. Eu não gostava de ser questionado e não gostava de fazer perguntas. Simplesmente por achar entediante ouvir. Resolvi que descobriria do meu jeito, mas jamais imaginei que meu arrependimento seria tão grande.

Eu sentia medo da morte. Era algo desconhecido e eu não gosto de desconhecer as coisas. Algumas pessoas a achavam horrível, outras entendiam como uma coisa boa. Os conceitos sobre morte geralmente são fixados na cabeça das pessoas desde que são crianças. Depende de suas experiências com relação à morte, o jeito como encaram; como viram pessoas reagindo a situações que envolviam a morte. Quando eu tentava pensar na morte, até mesmo de forma física, nada vinha à minha cabeça.

Eu costumava pensar sobre tudo, menos sobre a morte, porque era algo do qual eu não tirava a menor conclusão. Eu não sinto medo da dor, mas eu tenho medo da morte porque eu não queria morrer. Eu não queria, eu ainda tinha tanta coisa para observar... Amigos a fazer, pessoas como eu a encontrar. Alguém que me entenderia verdadeiramente. E eu estava perto dessa pessoa, perto. Mas ao mesmo tempo muito longe.

Certo dia, Sven deixou seus materiais em minha mesa. Mencionou que precisava ir até a biblioteca e, por descuido ou esquecimento, deixou os materiais e tudo o que tinha dentro de sua bolsa sobre minha mesa. Assenti com a cabeça, como normalmente fazia, e esperei até que ele fechasse a porta. Esperei que se afastasse um pouco e, sem o menor receio, abri sua bolsa e suas pastas a procura de algo que pudesse me responder, ou dar uma pista. Algum objeto que pudesse me dar uma resposta sem que eu fosse obrigado a perguntar.

Desdobrei cada papel pequeno dobrado, desconfiando de tudo. Mantive meu ouvido atento aos passos e aos barulhos da porta caso meu mestre voltasse. Mas a minha curiosidade era maior.

Havia tempos eu não me sentia tão curioso sobre alguma coisa quanto a Sven. Ele estava muito diferente. Como se seus sentimentos estivessem transbordando de tão desordenados, de uma forma tão intensa que ele não conseguia conter ou esconder. Ele devia estar com problemas há muito tempo, ou então um grande problema que acontecera recentemente.

Desdobrando cada papel e procurando, encontrei um em especial. Ele estava em um zíper dentro da bolsa, obviamente para não chamar a atenção. Mas eu encontrei e o li.


A Rezon.

Eu sinto que não conseguirei novas vítimas por um tempo. O trabalho tem sido difícil, e eu nem mesmo quero ir à biblioteca para dizer isso. Escreverei e deixarei com Suriel, para que ela entregue a você.

Não estou desistindo de trabalhar para você. Eu tenho me saído bem, te ajudando a cumprir seus objetivos, não tenho?


Eu abri mais meus olhos, de puro espanto. Era como se eu não acreditasse. Eu não conseguia acreditar que Sven estava envolvido com esse tipo de coisa. Apertei os olhos, rangendo os dentes, sentindo um nó incrível na minha garganta. Eu ainda não queria acreditar, mal queria continuar lendo. Mas prossegui.

E te ajudando a cumprir seus objetivos, tenho certeza que você me ajudará a cumprir os meus. Eu vou pesquisar boas vítimas para que você possa sacrificar nos rituais, que sejam discretas e que tenham um bom potencial mágico.

Apenas preciso de um tempo enquanto termino minha pesquisa. Pode demorar uns dias, mas você não se decepcionará. Levarei eles até a biblioteca de Ima.

Atenciosamente, Sven.

Eu não conseguia acreditar, apesar de ter lido a carta inteira e reconhecido a letra de Sven. Estava assinado por ele. Eu deixei que meu olhar desfocasse e minha mente se perdeu. Eu perdi a noção da realidade, perdi a noção de onde estava. Era como se mais nada importasse.

Meu mestre! Era alguém que eu admirava, alguém que era sério e silencioso e que não me incomodava com sua presença, o que era raro. Ele era um bom professor. Tudo o que aprendi com magia até hoje foi com ele. Eu não quero acreditar.

Parece que minha mente se divide em duas. Duas partes que parecem dialogar e discutir entre si, como se eu não pudesse cessar essa discussão.

"Não é verdade", dizia uma das vozes. "Não foi Sven que escreveu isso, é outra coisa. Isso é uma farsa. Não acredite".

"É verdade" dizia a outra em reposta. "Você sabe que não tem como não ter sido escrita por Sven. Junte as peças. Como ele estava estranho ultimamente e como a carta te conta o grande problema por o qual ele tem passado para estar tão diferente."

"Não, Aiko! Acredite em Sven! Guarde todas essas coisas rápido e finja, viva como se não estivesse sabendo de nada!"

"Como se não soubesse de nada? Você vai esquecer? Vai conseguir esquecer que seu mestre é um assassino, que ajuda a matar pessoas em rituais?"


Eu levei as minhas mãos à cabeça, entrelaçando os dedos em meus fios de cabelo. Como eu faço pra elas pararem... Como eu faço, por que eu não posso fazer elas pararem se elas sou eu? Essas vozes sou eu mesmo, por que elas dizem tantas coisas que não quero ouvir? Eu gosto do silêncio. Por que as vozes não param? Por que eu não paro de ouvir minha consciência? Minha mente não consegue mais ficar em silêncio!

"Ele deve estar voltando. Rápido, guarde as coisas e releve tudo o que leu. É o melhor a fazer."

"E continuar vivendo em um mundo de mentiras?"

"É o melhor a se fazer."

"E o mais fácil."

"É o que vai te deixar mais feliz."

"É o mais cômodo. Não opte por essa opção! Denuncie Sven. Faça alguma coisa, salve vidas!"

"Ignore tudo e salve a sua própria vida!"

Eu não aguentava mais. As vozes não paravam. Eu não conseguia mais fugir das palavras, eu não conseguia mais ficar em silêncio, por mais que eu tentasse. A minha própria consciência não parava de me assombrar, com perguntas e mais perguntas. Meu mestre... Um assassino...

Foi então que a porta foi aberta. Ele voltou. Meu olhar continuava desfocado, sem prestar atenção exatamente em nada. Sven viu a sua bolsa e suas pastas abertas. Viu a carta em cima da mesa e fechou a porta devagar. Ele não estava mais sério. Seu rosto demonstrava uma raiva imensa, como eu nunca tinha visto. Então era verdade. Então ele era o autor da carta e estava ajudando esse Rezon a matar pessoas em rituais. Era verdade.

"Eu disse que era verdade."

"Você sempre pode ignorar a verdade."

"E continuar vivendo em um mundo de mentiras?"

Eu apertei os olhos novamente, como se tentasse fugir das vozes. Sussurrei para mim mesmo, "façam silêncio. Deixem-me em paz". Eu mal conseguia prestar atenção em Sven. Não era realmente importante.

"O que há de tão errado em matar pessoas?"

Senti uma mão me segurar pelo pulso e puxar. Ele me puxou e me jogou na cama, falando coisas que eu não entendia. Eu nem conseguia ouvir.

"Matar pessoas é algo assim tão ruim? A morte é algo assim tão ruim?"

Tudo o que eu conseguia ouvir era minha própria consciência. Então tentei, com todas as forças, ouvir a voz de Sven. Ouvir o que ele estava falando.

"O que você estava pensando quando mexeu em minhas coisas?!" ele dizia, bravo, enquanto apertava meus ombros e me forçava contra o colchão, sobre mim. "Eu deveria te dar uma surra aqui mesmo, por se meter onde não devia!" O mestre que eu admirava não existia mais. Ele havia ido embora, e era outra pessoa no lugar dele. Reagia com uma raiva e um sentimentalismo que não eram comuns a sua personalidade. E eu não conseguia me importar mais. Eu não sabia o que ele ia fazer, mas estava difícil ignorar as vozes em minha cabeça.

"Ele vai te matar" disse uma delas.

Eu não consegui me manter calmo frente ao terror que senti ao imaginar a possibilidade. Encolhi-me na cama, com as mãos em minhas têmporas, apertando minha cabeça, dizendo "Não" constantemente. Sven deve ter percebido, mas não vi sua reação. Eu só conseguia responder a mesma palavra monossilábica como se tentasse me convencer. Fiquei daquele jeito por algum tempo até que meu mestre me pegou pelos ombros e me encostou na cabeceira da cama.

"Fique quieto sobre essa história" ele disse. "Senão, eu te mato."

Arregalei os olhos, sentindo-os cada vez mais úmidos.

"Seu mestre é realmente um assassino, viu? Até a você ele quer matar."

"Cala a boca", eu disse, em voz alta. Sven ficou confuso e me respondeu. "Está falando comigo, Aiko?" ele perguntou. Eu ignorei. Tudo o que eu conseguia era dar atenção à minha própria consciência que não me deixava em paz e acabava com o silêncio da minha mente.

"Você sempre ficou em silêncio. Agora faça isso novamente. É tudo o que você precisa fazer para sobreviver."

"Eu não quero mais ouvir", disse. Sven provavelmente percebera que eu estava falando comigo mesmo e deixou. Mas segurou meu rosto com bastante força, fazendo com que eu focasse o olhar nele.

"Não quero mais te ver perto daquela aprendiz de clarividente nova por aqui. Ela pode muito bem ler sua mente e descobrir o que você descobriu. Aí duas pessoas saberão o que não deviam saber! Isso é tudo culpa sua! Se você não tivesse se intrometido! Não considere a ideia de me desobedecer, ou sabe o que vai acontecer. Eu te mato", ele repetiu, como se quisesse fortaceler a ideia e meu medo. Eu não conseguia mais pensar em nada. Sven juntou todos os papéis e a carta, que eu acho que nunca fora entregue, e saiu do quarto. Eu não consegui dormir aquela noite.

Nos próximos dias, à noite, resolvi ir até o jardim, sentar no banco onde eu costumava ficar. Eu estava sozinho, mas foi por pouco tempo. Logo Sven se aproximou de mim.

"Não tem mais falado com Nirina, não é?" ele disse. "Acho bom mesmo. Você não quer morrer. Quer?"

Respondi com a cabeça, balançando-a negativamente. Sem palavras.

"Ótimo. Ainda bem que você é bem obediente."

Ele só disse isso, e saiu. Segurei a borda do banco onde eu estava com mais força, como se temesse cair dali. Eu desfoquei meu olhar e me perdi nas vozes que não mais deixavam minha mente em silêncio.

"Viu como ele é um assassino de verdade? Ele vai te matar."

"Não é assim. Ele pode matar outras pessoas, mas jamais mataria seu próprio aprendiz!"

"Aiko, não seja tolo. A quem você acha que vai conseguir enganar? Vai conseguir mentir pra si mesmo? Você sempre odiou mentiras, permita-se a ver a verdade..."

Foi quando senti algo tocar meu ombro. Eu assustei e vi Nirina ali. A pessoa que estava tão perto de mim, tão perto de me compreender, e ao mesmo tempo tão longe. Agora, ainda mais longe. Eu a reconheci e me obriguei a me acalmar.

"Aiko" ela disse, e sua voz soou mais forte do que as outras. "Você está bem?"

"Estou. Eu estou bem. Por quê? Não pareço bem? Desculpe se te assustei com meu susto" forcei um sorriso "mas eu estou bem sim. Estou bem". Falei como se tentasse me convencer. Queria ser convincente a ela também, mas eu estava ciente que a minha intenção havia sido falha. Tinha sido um desastre. Quando não se acredita verdadeiramente em algo, é inútil tentar inspirar outras pessoas a acreditarem também.

"Certo, Aiko. Se precisar conversar, eu..."

"Não preciso", eu precisava terminar aquela conversa o mais rápido possível sem magoar Nirina. Ou então custaria minha vida. "Não preciso, estou bem."

"O que está acontecendo, Aiko?"

Salve-me. Eu estou prestes a ser assassinado pelo meu mestre e proibido por ele de falar com você. Eu não quero morrer. Tenho muitas coisas para fazer ainda. Eu não quero morrer. Ajude-me, Nirina!

"Nada."

"Você é péssimo em mentir, Aiko."

A conversa precisa terminar logo.

"Eu não estou mentindo, eu estou falando a verdade! Quer ler minha mente, quer? Assim você vai conseguir saber!" Eu precisava fazer ela perder as esperanças em mim. Algo que meus colegas faziam por meu silêncio, Nirina não conseguia fazer por minhas palavras.

"Calma, Aiko, eu acredito em você."

Foi a primeira pessoa a aceitar tão fácil algo que eu disse e dizer "Eu acredito em você". Ela captava a veracidade e o sentido puro das palavras.

"É bom você me contar o que está acontecendo."

A voz dela continuava a soar mais forte que as outras, que ainda sussurravam diversas coisas.

"Eu não posso mais falar com você."

"Por que não? Foi Ísis?"

Ela realmente não desistia, mas a conversa precisava terminar logo. Deixei-a ali, sentindo meu coração doer e minha alma partida em pedaços e saí. Sven ainda estava por perto. Se eu não obedecesse, ele me mataria.

Eu continuei em meu quarto. Não saía mais para ver as outras pessoas, nem ouvir os outros aprendizes conversando. Eu não podia sair, assim Sven saberia que eu não estava mais falando com Nirina e desobecendo suas regras.

Tudo o que eu conseguia fazer era ficar sentado na cama, aguentando os pesadelos terríveis todas as noites, e os pensamentos e vozes cada vez piores e mais severas. Elas falavam mais alto.

"Ele vai te matar em um ritual de magia negra. Você não quer morrer, mas vai! Não adianta implorar por sua vida!"

"Não há saída. Nada pode te ajudar."

Eu me afundava cada vez mais nesses pensamentos e no medo que eu sentia da morte. Mas eu não precisei sair do quarto para encontrar Nirina. Ela veio até mim. Ela realmente não desiste? O que ela viu em mim, por que ela quer tanto me ajudar?

Eu a vi. Eu a ouvi, eu senti suas mãos sobre minhas têmporas. Decidi que deixaria ela saber. Eu sabia que ela ia ler minha mente. Se eu não podia fazer nada com Sven, talvez alguém pudesse. Se ela soubesse, ela e Zahra conseguiriam. Minha mente estava tão bagunçada, e o medo da morte cada vez mais iminente e mais forte. Era como se ela já estivesse em mim. Se a morte tivesse cor, eu tenho certeza que eu seria da mesma cor que ela.

Eu não senti Nirina em minha mente. Ela só entrou e saiu, mas pareceu atordoada. Acho que o que ela viu não foi muito agradável. Eu quis sorrir e dizer a ela, "Gostou da visita?", mas meus músculos simplesmente não se moviam. Eu ouvi Sven abrir a porta. Eu vi Nirina sair correndo e tentar se esconder no banheiro.

"Você tem conversado com alguém?", ele perguntou. Eu balancei a cabeça negativamente. "Ótimo. Acho bom mesmo. E fique longe da Nirina, ela não pode nem suspeitar".

Eu o vi entrar no banheiro e depois não consegui mais ver. Mas ouvi, em meio às vozes, que ele estava tentando matá-la. Eu quis inteferir. Eu quis ajudar Nirina a fugir, mas não consegui. Ouvi os dois conversando, falando sobre mim. Nirina sabia que eu estava mal e precisava de ajuda. E ela queria, com todas as forças, ajudar.

A última coisa que vi foi Nirina sair do banheiro quase caindo, e ouvi gemidos de Sven. Eles haviam lutado brevemente e ela havia ganhado, como eu esperava.

"Vá, Nirina", pensei. "Corra agora, não olhe para trás e me ajude. Mesmo que seja tarde demais", pensei, sem me manifestar verbalmente.

"Mas eu estou. Eu estou viva", ela disse, e saiu. E continue viva. Lute para isso.

Rezon provavelmente tinha descoberto de alguma maneira que eu sabia da carta. Sven precisava ir à biblioteca na mesma noite. Já era bem escuro, eu não vi a hora, mas vi ele se aproximar com os braços atrás das costas, me impossibilitando de ver o que era. Ele se inclinou para perto de mim e disse "Rezon quer garantir que você não vai abrir a boca. Ele te mataria em um ritual de magia negra. Eu vou te matar aqui. Não vou dar a ele seu grande potencial mágico, nem a oportunidade de te torturar indiscriminadamente antes de acabar com sua vida. Desculpe-me, Aiko, mas eu não posso voltar atrás".

De extremamente raivoso, ele passou a ser alguém que estava preocupado comigo, mesmo que de forma mínima. Seu olhar estava inconstante. Eu não conseguia saber o que ele estava pensando. Foi então que ele tirou as mãos de trás das costas e eu pude ver uma faca.

"Não", eu disse, arregalando os olhos. "Eu não quero morrer!"

Tomado por uma força quase externa a meu corpo, eu levantei da cama e tentei correr até a porta. Ele levantou atrás de mim tão rápido quanto foi capaz e me segurou pela gola da túnica. A gola da minha túnica verde, de aprendiz de magia de ar.

"Eu não quero..." ele me virou para si e, sem hesitar, enfiou a faca em meu estômago. Senti a dor se espalhar por meu corpo, e então o sangue. "... morrer..." se a morte tivesse uma cor, ela estaria forte em mim agora. Eu sentia a dor e o desespero. E pensar que só havia começado...

Gemi forte ao senti-lo tirar a faca, mas cuidei para não gritar de modo que fosse ouvido. Ele afastou a faca e voltou a me cortar, repetindo o mesmo movimento algumas vezes. Uma só não era o necessário para me matar, e Sven não sabia como matar alguém de forma eficiente.

"Ele é um assassino"

"Eu disse que ele te mataria"

As vozes não paravam. As vozes não paravam, a dor não parava, e eu olhava para Sven enquanto podia, observando minha vida ser levada embora pela única pessoa que me ensinara tantas coisas. Se eu pudesse desejar a morte a alguém, seria a Rezon.

"Eu amaldiçoo" eu sussurrei, quase sem forças. Sven ouviu, pois me olhou surpreso e me segurou enquanto eu deixava meu corpo cair para frente, incapaz de me manter em pé. "Eu amaldiçoo o nome de Rezon" continuei, deixando Sven um tanto surpreso. "a morte é algo terrível" tossi, sentindo gosto de sangue na minha boca, ele já escorria por meu queixo "e eu não a desejo para ninguém. Mas se eu tivesse que escolher, desejaria a Rezon. Eu quero que Rezon morra, e que a morte não seja gentil com ele" tossi mais uma vez, caindo sobre meus joelhos.

Sven me soltou, e a última expressão que vi em seu rosto foi de espanto. Talvez ele não imaginasse que eu amaldiçoasse alguém em meus últimos segundos de vida. Fechei os olhos e os apertei, respirando com dificuldade. Meu mestre deixou a faca ao meu lado e saiu correndo. Devia ser madrugada, estava escuro... E eu não ouvia voz alguma.

É verdade... Eu não ouvia voz alguma. As vozes haviam, finalmente, cessado. Eu não ouvia ninguém falar comigo, nem a minha própria consciência. Apertei os olhos mais uma vez e tossi sangue novamente. Fui capaz de ver meu sangue todo espalhado pelo quarto, e então os fechei. Depois de tanta dor e desespero, eu parei, quase sem perceber, de sentir os dois. Então senti como se algo gentil me abraçasse, como se o silêncio me abraçasse. Eu havia voltado a ele mais uma vez. Então a morte era silenciosa? Era esse silêncio que eu sempre havia procurado? Eu tinha tantas coisas a fazer. Eu não queria morrer.

Mas até que o silêncio não é tão ruim de sentir.



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