Carmilla escrita por camila schwert


Capítulo 5
Na minha festa - Parte 2


Notas iniciais do capítulo

Última parte do capítulo! O que vocês acham de surpresas? Boa leitura!
*segunda parte especialmente para a breezy, porque você faz isso ser bonito.*



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O jardim estava bem iluminado por diversos postes que jorravam luz prateada para o chão. O caminho que estava seguindo continha apenas uma grama baixa, bem cortada; o jardim se abria amplamente para um espaço onde, no centro, estava um chafariz prateado, água jorrando sem pressa. Atrás, a alguns metros, estava a casa. Era cercada por diversos pinheiros, que circulavam toda a extensão do terreno; eram altos, pareciam todos terem a mesma altura e entre eles havia uma luz prateada que iluminava a arborização de baixo para cima, mostrando assim a imponência das árvores. A casa era enorme. Parecia uma antiga casa vitoriana, mas não era nada disso. Talvez Carmilla tivesse pensado em casas vitorianas por conta das torres da mansão, que continham um estilo gótico majestoso. Os pilares de sustentação eram altos e arredondados, todos de uma cor simples de pérola. A casa inteira era pintada dessa cor – ou será que parecia assim apenas à luz da lua? Carmilla podia ver, através das grandes janelas abertas – cobertas apenas por cortinas finas de seda – a falta de iluminação dentro da casa, por conta da festa. Caminhou e mais de perto pôde ver os degraus que teria que subir para entrar na casa, e estes eram estranhamente escuros. Ela subiu, e logo à sua frente, estava a porta de entrada: grande, de madeira escura. Ela girou a maçaneta e entrou.

Era como se tivesse entrado no inferno. Todo o pessoal que ela havia ignorado deliberadamente na escola estava ali, usando roupas apertadas e com bebidas coloridas nas mãos, dançando como se nunca tivessem estado em uma festa antes. Algumas garotas estavam usando salto alto com glitter, outras, cílios postiços coloridos. Carmilla tentou memorizar o rosto de cada uma delas, para que nos dias de aula não conversasse com nenhuma daquelas pessoas, mas estava escuro demais. Ela só conseguia ouvir a música e sentir a vibração do som sob seus pés. Sentou-se em uma poltrona macia e ficou observando todo o pessoal medíocre da escola. Tinha nojo de todos eles. Simplesmente não entendia a razão pela qual todos ali pareciam querer morrer de uma overdose, como se nunca tivessem participado de uma festa antes. Ela já estivera em não apenas uma, mas várias festas de verdade, festas que nenhum deles teria permissão para frequentar. E ela iria mostrar a eles.

Carmilla levantou e caminhou por entre a multidão que dançava. Passava pelas pessoas que dançavam no ritmo como se fosse o único ponto de luz do local. Seus olhos, mal iluminados pelas velas, brilhavam mais do que o vestido prateado. Era como se ela fosse a fonte vital dali, a energia que mantinha aqueles corpos dançando. E talvez ela fosse. Enquanto saía de perto de algumas pessoas, deixava atrás de si uma sensação esmagadora nos frequentadores: eles sentiam como se algo tivesse sido arrancado, fosse o ar dos pulmões ou a vontade de estar ali. Carmilla era assim. Provocava sensações alucinantes até mesmo em pessoas que não conhecia.

Um garoto qualquer que ela jurava já ter visto antes passou e ela pegou a garrafa de cerveja da mão dele e saiu andando, rebolando o quadril. Ela não ficaria parada olhando aquela gente desprezível agir como se o mundo fosse acabar. Ela iria humilhar todos eles, como sempre fazia, como adorava fazer. Ela adorava tudo isso: essa quantidade de pessoas podres de espírito que sempre estavam perto dela e essa sensação de sempre poder mostrar o quão melhor era, mesmo sem querer. Carmilla era, sim, melhor do que muitas pessoas, e sabia disso. Talvez fosse por isso que todos, sem exceções, se sentissem atraídos por ela de alguma maneira. Era simplesmente inevitável.

Ela estava no meio de algumas meninas da escola que se apresentaram para ela, gritando seus respectivos nomes mais alto do que a música: a loura se chamava Ashley, usava um vestido da Chanel que Carmilla imediatamente aprovou. Estava descalça: um dos saltos havia quebrado. Seus cabelos estavam divinamente bagunçados, alguns fios caídos em seus olhos de maneira graciosa. Ela morava no Texas até alguns meses atrás, de modo que seu corpo ainda possuía um bronzeado natural que certamente era invejado por algumas garotas. A outra, a garota que tinha cabelos azuis, se chamava Callie. Usava uma saia bem acima do joelho e meias ¾. Sua blusa era uma camisa branca social com glitter, que estava amarrada na cintura, exibindo o piercing no umbigo da garota. Carmilla gostou imediatamente dela, em parte porque viu na garota uma personalidade que refletia a sua própria, em parte porque gostou do abdômen da menina. As duas dançavam ao ritmo de Carmilla, que era mais lento e não acompanhava a música. Elas pareciam compreender a maneira como ela dançava, mexendo a cintura e deixando o cabelo cobrir o rosto, e se mostravam alheias aos outros participantes da festa, exceto ao garçom, é claro.

As luzes quase inexistentes na festa estavam fazendo parte do repertório de Carmilla. Ela sempre detestou casas noturnas iluminadas demais, o mesmo com festas em casa. Gostava de se misturar à escuridão, chamando a atenção justamente por estar escondida nas sombras, como se estivesse planejando puxar alguém com ela. Era de certa forma bastante metódico, mas ela não se importava. As luzes que iluminavam o local eram provenientes de castiçais espalhados por todo o lugar, cheios de velas derretendo com a luz amarelada que provinha do pavio. As velas revelavam bem pouco da casa, mas ela pôde ver o suficiente: havia uma estante enorme, com diversos livros, grandes, pequenos, grossos e nem um pouco empoeirados. Depois, a parede branca cheia de livros enormes seguia até um corredor obscurecido pela falta de luminosidade, mas ela podia ver, se forçasse a vista, um raio de luz amarelada se projetando no chão, tremulando como se pudesse apagar a qualquer momento. Imaginou se a luz seria de uma lareira, mas não se ateu ao pensamento. Uma música mais alta começou a tocar, alta o suficiente para fazer os tímpanos dela doerem, e então ela dançou como se não tivesse nada a perder. E não tinha.

Mais uma quantidade incontável de músicas tocou, e enquanto isso as velas foram derretendo, o brilho das chamas se apagando. Ninguém apareceu para trocar as velas, muito menos acender as luzes. E enquanto a luz das velas ia diminuindo, as pessoas iam indo embora, deixando para trás um rastro de latas e garrafas de cerveja e qualquer outra bebida que contivesse álcool. Ashley foi a primeira garota que Carmilla realmente percebeu ter ido embora. No mais, ela não notou todos os outros que foram saindo, alguns bêbados o suficiente para bater o rosto nas paredes e pilares. Callie machucou o joelho quando bateu a perna em uma mesa enorme de mogno escuro, e então foi embora logo após, apoiada em um rapaz do qual era colega de turma. O DJ decidiu sair quando só restava Carmilla ali, imaginando que ela deveria morar na casa. E assim, ela estava sozinha, com nada mais do que alguns tocos de velas para iluminar o caminho. Mas ela não queria ir embora. Lembrou que a casa era de Lucian, e que ele deveria estar em algum lugar por ali. Caminhou pela casa escura, seguindo a luz que ainda iluminava fracamente os corredores compridos e sem portas. Ela ouviu um estalo e parou de caminhar. Olhou para trás, e mesmo aquela falta de iluminação, algumas velas ainda mostravam o suficiente; ela lembrou que já esteve ali antes, quando estava dançando com as garotas. Seguiu pelo corredor e ouviu mais estalos, e então entrou em uma sala ampla, totalmente cheia de castiçais e velas enormes jogando uma luz amarelada pelo local.

Havia um grande sofá preto no centro da sala, e na frente dele uma mesa de centro baixa com taças de vinho e uma garrafa esverdeada. À frente, a lareira, com o fogo queimando a madeira escura com estalos baixos. Atrás, um grande espaço cheio de prateleiras e estantes lotadas de livros enormes, tal como na sala onde a festa acontecera. Atrás das estantes, ela podia ver uma grande janela sem cortinas, que jogava uma luz prateada, provavelmente da lua, no chão da sala. As estantes e prateleiras estavam iluminadas por castiçais de uma vela só, que fazia com que os livros projetassem sombras um sobre os outros.

A princípio, ela pensou estar sozinha ali. Mas deu um passo à frente e viu uma sombra no sofá, uma nuvem de cabelos negros e uma fumaça esbranquiçada subindo para o alto. Lucian. Ela deu mais alguns passos à frente e viu-o por completo: estava sentado no chão, com a cabeça escorada no sofá, o cabelo maravilhosamente bagunçado; um cigarro entre os dedos e duas carteiras do mesmo no chão. Uma das taças sobre a mesa de centro estava arroxeada, sinal claro de que alguém já havia bebido vinho nela antes. Ela deu mais alguns passos e se sentou no sofá, acima dele. Cinzas caíram da ponta do cigarro. Ele pareceu desapontado, mas ela não conseguia imaginar o motivo. Talvez ele não a quisesse ali.

- Você demorou. – Foi só o que ele disse. Sua voz estava rouca, mas não de uma maneira sensual, e sim de maneira ardente. Era como se ele tivesse bebido ácido: sua voz estava arranhada, baixa, grossa.

- Não sabia que estava me esperando. – Ela respondeu, no mesmo nível de altura da voz. Ele respirou fundo, tragou mais do cigarro. Ela não estava entendendo o que estava havendo ali; talvez ele tivesse bebido demais, só isso.

- Acredite, eu estava. – Ele disse. Algo no tom de voz dele, além da rouquidão, chamou a atenção dela e a impediu de fazer comentários sarcásticos. Ele não parecia com vontade de discutir, nem de começar uma disputa para saber qual deles era melhor.

- Aconteceu alguma coisa? – Ela perguntou. Não estava gostando daquilo e já estava cogitando a possibilidade de ir embora dormir.

- Eu só não quero ficar sozinho. – Ele disse de uma vez só, quase se atrapalhando com as palavras; tinha um tom agoniado na voz machucava, quase uma agonia, como se pudesse começar a chorar a qualquer momento. Carmilla ficou apavorada de verdade. Não sabia o que sentir: estava confusa sobre o que fazer, se começava uma piada sobre o estado em que ele se encontrava ou se fazia um cafuné na cabeça dele. Não fez nenhum dos dois.

- Tinha metade do mundo nessa festa e eu não te vi com os seus convidados. – Ela disse, ríspida. Optou pelo melhor: ser grosseira como sempre. Ela não baixaria a guarda apenas porque Lucian estava bêbado e talvez drogado. Queria que ele se danasse. Pouco importava o estado de espírito dele.

Ele não deixou de notar a acidez na voz dela. Era difícil para ele, fisicamente difícil, estar falando aquelas coisas sem nexo para ela. Mas ele havia tido um lapso de memória no meio da manhã, logo após ter se afastado dela, e tinha medo de ter mais um daqueles desmaios incontroláveis caso ela se afastasse. Mas não era só isso – ele queria, de verdade, com todo o seu coração, todo seu corpo, seu espírito e seus demônios internos, ficar perto dela, mesmo que ela nem o tocasse. Ele sabia que era um erro desgraçado, mas não conseguia se importar. Ficou a maldita festa inteira longe de todos e agora só queria ficar perto de uma pessoa. Ele sabia que podia ter qualquer garota que quisesse, daquela escola ou daquela cidade, mas não conseguia querer ninguém além de Carmilla. Era quase como um suicídio, e ele sabia que se ela quisesse, poderia fazê-lo morrer, e ele morreria de bom grado. Ele não queria admitir, não queria falar em voz alta, não queria correr esse risco, mas já estava feito: ele havia acabado de se entregar a ela.

O silêncio dominou o local. O único som que ambos ouviam era o do crepitar da lareira, o fogo destruindo a madeira. Ela não se arrependeu por ter dito aquilo, e não se arrependeria – era a verdade. Lucian havia convidado toda a escola para uma festa e sequer havia estado entre os convidados. Mas ela sentiu que havia algo mais – será que ele havia cometido algum crime, alguma coisa errada? Ela não estava nem aí para o que ele fazia ou deixava de fazer. Ele não se moveu, e ela também não. O fogo queimou mais a madeira, e ela pensou que ele não fosse dizer mais nada. Sabia que ele não estava dormindo – podia ver que ele fumava o cigarro de vez em quando, sem tirá-lo da boca, deixando a fumaça subir para o nariz. Ele parecia não se importar com câncer. Então, ela simplesmente decidiu ir embora, com a certeza de que não valeria a pena perder a noite ali, sem dizer uma palavra sequer. Ajeitou-se para levantar, mas ele foi mais rápido: colocou o braço sob o joelho dela, a mão puxando a coxa para baixo, obrigando-a a se sentar ao lado dele.

Ela ficou parada no chão; tinha que admitir que era bom ficar ali, mesmo que fosse no chão. Um tapete enorme estava sob os dois, aquecendo-os e deixando-os confortáveis – mas nenhum tapete nem lareira poderia aquecer o clima. A distância entre os dois era brutal, quase visível; não era uma distância física, considerando que ambos estavam encostando o braço um no outro, e Lucian ainda não tinha tirado a mão da perna dela. Era uma coisa a mais. Era como se ele estivesse em um patamar e ela em outro, mesmo que isso não fizesse sentido. Ele sabia qual era a diferença entre eles e se recusava a pensar nisso. Ontem mesmo estava recorrendo ao seu orgulho e a ideia de não ceder a ela e agora estava mantendo-a pressionada para baixo, para ficar ao seu lado. Contradições suicidas. Ele estava cansado disso – de tentar ficar longe, tentar fingir que não sentia nada por ela. Ele sentia, e era uma coisa forte, desde o primeiro dia em que eles se viram. Ele já havia sentido isso antes – uma única vez – há muito tempo, e havia perdido a oportunidade de ao menos tentar dizer o que sentia. Mas ele não cometeria esse erro mais uma vez; Lucian vinha se martirizando internamente pelos últimos anos de sua vida fria, sempre repensando seus atos e tentando encontrar algo que fizera de errado, e tanta procura havia lhe mostrado, finalmente, que seu único erro era seu orgulho. Ele havia decidido entregar tudo à Carmilla no dia em que a fizera cair em seus braços. Ele só não tivera a oportunidade – e agora que a tinha, não a perderia. Ele notou que ela estava procurando algo para dizer, pois ela estava observando a lareira com os olhos ofuscados, típico de quando não se sabe o que falar. Ele tirou a mão da perna dela – embora preferisse deixa-la ali – e colocou a em volta de sua cintura, puxando-a para mais perto. Seu abdômen se contraiu de tensão, o tão famoso frio na barriga se fazendo presente. Ele respirou fundo. O corpo dela estava quente, relaxado, como se nada disso a atingisse. Ele chegou mais perto, a mão que segurava o cigarro quase tremendo. Ele então fez tudo de uma vez só: repousou a cabeça no ombro dela, o rosto para baixo, respirando no pescoço dela e provocando-lhe arrepios.

Ele respirou bem fundo, e então, para a própria surpresa, disse, com a voz arranhada:

- Não vá embora. – Foi tudo. Ele não fez menção de encostar-se a ela mais do que já estava, e soltou sua cintura. Para a surpresa de ambos, ela começou a brincar com os dedos da mão livre dele.

A lareira crepitava, o som provocado pelo fogo queimando a madeira como única companhia dos dois. Ele continuou fumando até aquele cigarro acabar, e então jogou o resto no fogo, vendo o filtro queimar sem expressão. Podia sentir os olhos úmidos, e se sentiu inteiramente culpado por tudo dar errado ao seu redor – ele era rápido demais, intenso demais, e isso nem sempre era bom para as pessoas que o cercavam. Carmilla bebeu o vinho que estava posicionado na mesa de centro, observando sempre o fogo amarelado iluminar as estantes de livros à direita deles. Continuou brincando com os dedos longos e esguios dele, sem soltá-los nunca.  Lucian fechou os olhos. Ele havia cedido.


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Notas finais do capítulo

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