Aquele Professor É Um Lobisomem escrita por Lady Pompom


Capítulo 19
Capítulo 18: Noite de Lua Cheia parte final -Devaneios-


Notas iniciais do capítulo

Essa história não tem qualquer relação com pessoas, fatos ou acontecimentos da vida real. É uma obra de ficção com fins de entretenimento.



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Seu destino estava selado, mais uma vez, sob o luar. Uma terrível e sangrenta noite de lua cheia.

Quando o lobo ergueu as garras, pronto para dilacerá-lo, Silas não pôde fazer nada, o choque de saber que aquele que o atacava fora antes seu professor, a quem tanto estimava e perceber que se tornara um animal irreconhecível. Nem o olhar apavorado do garoto ao encarar a fera nos olhos foi o suficiente para fazer o lobisomem voltar a si.

Quando ele iria descer as garras sobre o menino, um objeto pequeno veio voando e atingiu, uma pulseira, ele virou na direção da qual o objeto veio, era Alícia quem tinha jogado sua pulseira de prata.

— Pare com isso! –gritou-

            O lobo rosnou para a garota e virou-se na direção dela, posicionando-se no chão correndo veloz, como um quadrúpede, e saltando para desferir agora um ataque na menina. No entanto o que suas garras alcançaram foi a lâmina de uma espada.

— Sanmoto!

— Milady, para trás...

            A espada que Sanmoto utilizava agora era a que geralmente ficava presa à faixa em sua cintura, uma espada menor, mas não menos afiada. O lobisomem se armou, fazendo uma expressão raivosa.

— Fuja com seus amigos, eu cuidarei disto, Milady! -disse preocupado-

— Não! Ele pode estar assim, mas ainda é o nosso professor... O que aconteceu foi uma fatalidade e eu irei assumir minha parcela de culpa, mas não o machuque! Provavelmente... Quem está mais machucado agora...   –um olhar aflito se mostrou no semblante de Alícia- É ele...

            O lobo atacou novamente, e foi barrado por a espada de prata de Sanmoto. Ao entrar em contato com a pele dele, a criatura sentiu a ardência que a prata causava, e afastou-se, grunhindo.

— Não é um momento propício para escolher, Milady... Às vezes é necessário usar a força, mesmo que seja para parar alguém... –o caçador franziu o cenho, determinado-

 . . .     

Karen estava ao lado do corpo de Ária, chorando enquanto assistia ao confronto. Havia visto toda a transformação de seu professor. Ela segurou com as duas mãos, a mão da mulher caída, apertando.

“Senhorita Ária, se ainda estivesse aqui, o Sr. Graham iria...”

            Karen chorou ainda mais. As mãos de Ária ainda estavam quentes. Não podia acreditar que um acontecimento tão trágico pudesse ter irrompido tão repentinamente. Há pouco tempo, estava feliz, numa mesa, jantando com seu professor e a noiva dele, e no outro, via a mulher caída, imóvel. Ela deitou a cabeça no tronco da mulher, angustiada.

Memórias fluíam em sua mente, de seu professor, da noiva dele, de tudo que aconteceu desde que os conheceu. Seus soluços não cessavam, e o choro saía mais amargo e doloroso a cada lágrima. Foi quando ouviu um som peculiar.

“Ba-tidas...?”

            Ela levantou a cabeça, ainda com o rosto molhado de lágrimas, e olhou por alguns segundos para a mulher deitada no chão, ainda segurando a mão dela. Abaixou a cabeça e deixou o ouvido bem perto do rosto da mulher. Sentiu um leve soprar de vento ali. Era fraco, mas era uma respiração.

Ela arregalou os olhos quando notou aquilo. Seu raciocínio não acompanhava a velocidade dos sinais que via ali, demorou alguns minutos, mas finalmente compreendeu o que se passava. E ela abriu a boca para gritar, com todas as suas energias as boas novas.

. . .

            Momentos atrás, o samurai encarava de longe o lobisomem, com um olhar tão afiado quanto a lâmina da espada que segurava.

            Raphiel, que havia visto toda a transformação e as ações do lobisomem, guardava no rosto uma expressão séria e inquieta. Afinal, poderia ser considerada culpa dele que tudo isso aconteceu, apesar de que ele não havia previsto que o incidente tomaria tais proporções.

“Foi uma péssima ideia causar uma confusão logo hoje, numa lua cheia...”

— Por favor, pare! –Silas se colocou no caminho entre o professor e o caçador, olhando para o último- Não faça mal a ele, o professor está... -ele arriscou olhar para a criatura poucos metros atrás dele- Ele está... –hesitou ao assombrar-se-

“Humpft. Que garoto tolo... Ele não vê? Esse homem perdeu completamente a razão, não adianta mais dizer nada, não, na verdade acho que nem se pode mais chamá-lo de ‘homem’, ele é apenas um animal agora...”

Raphiel pensava assistindo a comoção que o garoto fazia. A hesitação do garoto era visível. Por que se importar em impedir o caçador de realiza o trabalho? Seria apenas uma criatura voraz a menos no mundo, seria o melhor para a humanidade.

— Saia da frente, Milorde! –o samurai pressionou posicionando a lâmina para atacar-

— Não! Ele precisa de ajuda, não pode simplesmente machucá-lo! –gesticulava- Se nós o deixarmos assim, ele vai...

— Ele irá atacar qualquer um que aparecer em sua vista, não é mais um humano, Milorde, é um monstro, uma criatura que deve ser exterminada!

            O garoto se recusava a acreditar nas palavras que ouvia. Não podia ser daquela forma. Não podia ser verdade que seu professor fosse uma criatura tão cruel. Ele havia tentado atacá-lo antes, mas, ainda assim, o garoto tentava negar o que seus olhos presenciavam.

            Ele fechou os olhos, e baixou a cabeça, cerrando os punhos. Sua mente lutava, a todo custo, para fazê-lo crer que a criatura que estava bem atrás dele não era má, que ainda havia possibilidade de seu professor estar ali. Aquele homem sério e calmo, que chegava a ser frio, que não dava atenção às pessoas ao redor e vivia isolado, o mesmo homem que havia perdeu a cabeça e se deixou consumir pela ira, sofrendo uma metamorfose.

            Quando Silas abriu os olhos, ele teve uma sensação de extrema repugnância, uma vertigem eu percorreu sua coluna vertebral do início ao fim, e quando virou-se, aquele lobo estava preste a atacá-lo de novo, mas o lobo foi barrado novamente, o caçador o impediu. O lobo, enraivecido, deu um golpe forte, sem se importar com as consequências de tocar na lâmina de prata e o caçador saiu voando, longe no asfalto. Sem pestanejar, ele partiu para o ataque ao garoto que ainda estava ali perto, mas foi barrado por alguém diferente, o garoto surpreendeu-se em ver quem o havia defendido.

— S-Senhor?

            Silas olhou boquiaberto para Raphiel, que havia rebatido o ataque do lobo, com as mãos nuas, o que lhe rendeu um corte na pele.

— Lobisomens são mesmo umas criaturas brutais e irracionais... –disse num ar de desprezo à condição do outro- Mas não irei deixar que você faça o que quer por aqui, senhor lobo...

            O monstro respondeu com um bramido feroz, depois tomou um impulso e lançou um ataque com uma das mãos, para cortar o vampiro com suas garras. Raphiel tentou desviar, mas o lobo era mais rápido do que ele, e foi atingindo em cheio, recuando alguns metros pela força, surpreso.

— Entendo... A lua cheia realmente surte esse efeito na sua raça... –ele tocou no ferimento deixado pelas garras do lobo, impressionado-

            Cortes profundos haviam sido feitos ali, cortando todo seu tronco. Os ferimentos ardiam e sangue parecia brotar deles, imaginava se não havia atingido os órgãos internos, para o desprazer dele. E sem ter tempo para respirar, foi novamente atacado, sendo atingido por as garras do lobo com tanta força que voou, longe, rachando o asfalto da rua e fazendo uma nuvem de poeira se levantar. O lobo uivou ao obter sucesso no ataque.

            Raphiel tentava se apoiar nos destroços, havia um ferimento ainda mais sério nele agora, sendo atingido duas vezes seguidas por aquela criatura brutal. Ele começava a se maldizer internamente por ter um plano tão estúpido. Sentou-se um dolorido no buraco que seu próprio corpo fizera no asfalto e tocou nos ferimentos novamente, que sangravam e pinicava na pele.

            Quando a poeira se dissipou e o lobo viu que o oponente ainda não estava morto, partiu novamente para cima do vampiro, não descansaria até ver o cadáver de sua caça, como um animal que persegue sua presa até a morte.

            O lobo saltou, e enquanto estava no meio do ar, com o céu estrelado e a lua cheia como plano de fundo, ele estendeu suas garras para o alto, para desferir o golpe, sem misericórdia, mas antes que chegasse ao alvo, Alícia pareceu na frente do vampiro, e abriu os braços, franzindo o cenho, e gritando:

— Pare! Se continuar agora, não haverá mais volta!

            A menina parecia desesperada para impedir o professor, mas o lobo não hesitou, porém seu ataque foi frustrado quando ele sentiu uma lâmina desenhar um corte em suas costas, e virou-se imediatamente para ver o feitor daquele ato. Era Sanmoto.

— Milady, fuja daqui, rápido!

            Naquela hora, Karen acabara de perceber algo importante e tomou todo o ar que havia em seus pulmões para gritar:

— Professor, pare!! A ária ainda está viva!!!

— O quê...? –Silas fitou a menina que gritava-

            A atenção de todos se voltou para a garota que estava sentada ao lado de Ária. Silas foi até as duas para socorrê-las.

— Temos que chamar um médico rápido... -disse Karen preocupada-

— Aquele que cuidou do professor, talvez ele...

            O lobisomem não pareceu entender o significado daquelas palavras, uivou mais uma vez e começou a correr como um quadrúpede, fugindo dali, vagando pelas ruas da noite, o caçador perseguiu a criatura, pronto para atacar.

— O professor...

            Silas ficou balançado entre ficar ali ou ir atrás do monstro irracional e tentar trazer o homem que existia dentro da criatura de volta. Mas as palavras de sua amiga o fizeram optar pela primeira opção.

— Cuidar da Ária é mais importante, ela pode morrer!

— S-sim... –disse ainda duvidoso-

— Garoto Silas! –a presidente de clube o chamou dali de onde estava-

—... Alícia? –ele a olhou, ao longe-

— Eu irei atrás do professor lobo, não se preocupe, fiquem aqui e cuidem dela! –anunciou-

            Ela havia se determinado a seguir o caçador e seu professor e impedir que mais uma tragédia acontecesse, mas foi parada por as palavras do vampiro que estava ali, ainda sentado no chão.

— Por quê...? –dizia com a voz dolorida, num tipo de revolta- Por que você fez isso...?

A menina o fitou nos olhos, com um ar de seriedade e respondeu seca:

— Não seja presunçoso e pense que fiz isso por você, eu fiz isso pelo nosso professor... Se ele matasse alguém enquanto está nessa forma, tenho certeza de que ele se sentiria muito triste...

Raphiel cerrou os dentes, irritado com a declaração dela, mas não acabava por ali, a audácia dela foi muito mais longe:

— Porém, -ela apontou o dedo indicador para o homem caído- Isso não muda o fato de que irá pagar pelo que fez hoje, Senhor vampiro! Como líder do clube de ocultismo, lhe garanto que não sairá impune! Algum dia irá sofrer as consequências...

            E dito isto, ela apressou-se em correr e seguir o caçador e o lobisomem que sumiam ao longe.

“Sendo salvo... Por uma humana?! Que desgraça...”

            Raphiel levantou-se, irritado não com a menina, mas consigo mesmo. E saiu dali com seu orgulho ferido. Vacante pela noite obscura, incerto do rumo que deveria tomar.

            Enquanto isso, os dois jovens que restaram naquele campo, preocupavam-se em ajudar a mulher adormecida. Eles a enfaixavam, com algumas ataduras que o garoto havia levando em sua mochila.

 – Eu vou ligar para aquele médico! –Karen buscou o número em seu celular- Ele disse que deveríamos contatá-lo em casos de emergência...

— Sim, eu me lembro... –Silas estava com uma expressão triste- A Senhorita Ária pediu para que ele nos desse o número, para este tipo de ocasião, porque ela estava preocupada que o professor poderia se machucar de novo enquanto ela não estivesse por perto... E agora... –ele olhou ao longe, na direção para onde o lobo havia corrido-

— O que será que vai acontecer...?-a menina também demonstrou desânimo-

— Eu não sei.

 “Foi erro meu ter trazido a Karen aqui... Eu deveria mesmo tê-la feito desistir de vir... Mas... Já é tarde demais para lamentar... Não é?”

. . .

            O cantarolar de pássaros e um cheiro de terra molhada. Isshvan sentiu as bochechas frias e folhas crespas tocando em sua pele. Ele lentamente abriu os olhos e uma claridade o obrigou a fechá-los o suficiente até se acostumar.  

            Era o céu, com nuvens branco-cinzentas, mas não impediam que o dia fosse claro. Era uma manhã, bem cedo, o sol não havia nascido e o ar gélido da madrugada ainda circulava tão denso que formava neblina.  Havia árvores ao redor dele, e sentia algo frio em suas costas, frio e crespo.

            Ele sentou-se lentamente ali no chão, havia terra e folhas úmidas. O ar que saía de sua boca era como uma fumaça branca, por causa do frio. Ele olhou em volta, não lembrava o que havia acontecido na noite anterior. E tentava adivinhar como teria chegado naquela floresta.

            Olhou o próprio corpo, tudo que vestia eram os trapos de sua calça, rasgada, e o resto de suas roupas havia simplesmente sumido, havia uma cicatriz que ia de seu peito até o abdômen, o corte parecia recente, mas quase curado por completo. Sentia um incômodo nas costas e no peito, havia um ferimento, um corte, não muito profundo, estava quase cicatrizado, mas ainda ardia, ele presumiu que os ferimentos devem ter sido feitos por algum objeto de prata.

“Acordar nesse estado... A última vez que acordei assim no meio de uma floresta foi há muito tempo... Eu me transformei descontrolado de novo...? O que aconteceu noite passada?”

            Ele forçou a memória, e teve uma dor aguda na cabeça, ainda estava confuso. Quando se transformava sem consciência, suas lembranças desse estado sumiam quando ele voltava a si. E como tentava lembrar, sua cabeça doía. Um borrão se formava em suas memórias, misturando-as. Não sabia se algumas das cenas que via em sua mente era um sonho ou a realidade. Lembrava-se de ter lutado contra o caçador, de ter encontrado com Raphiel e de que Ária estava lá.

“Esse corte foi feito por ele... Mas o ferimento nas minhas costas, não me lembro como consegui...”

            Começou a sentir frio. Tentava se esquentar com os braços. Levantou-se do chão e começou a caminhar, sem rumo, olhava ao redor. Queria reconhecer o lugar no qual estava, mas não se lembrava de ter ido a alguma floresta com árvores assim antes, então ele provavelmente nunca havia estado ali. Uma chuva começou a cair, o frio se intensificou.

            Sua cabeça latejou e ele grunhiu, e num instante algumas memórias voltaram a ele, a batalha, a chegada de seus alunos, a morte de Ária e o momento em que olhou para a lua cheia. Pode ver também, em sua mente, um misto de cenas confusas e vozes, lembranças que se embaralhavam, como a voz de Silas tentando trazer sua sanidade de volta, Alícia impedindo-o de matar aquele vampiro e os olhos do caçador que o perseguia. Não lembrou mais de nada e parou de andar ali mesmo, tonto, desnorteado. Apoiou-se no tronco de uma árvore, abismado.

“Entendo... Foi isso que aconteceu...”

“...”

            Ele ficou ali parado, recostado, encarando o nada com um olhar distante.

“Eles me viram naquela forma... Será que ainda estão vivos...? Julgando pelo corte em minhas costas, acho que aquele caçador deve ter feito um bom trabalho protegendo as crianças... Mas talvez eu não possa mais dar aula naquela escola, as crianças devem estar aterrorizadas... E Ária...”

            Ao pensar naquele nome, sua feição tornou-se profundamente triste, com angústia e amargura. Ele olhou para o céu.

“Talvez eu tenha que me mudar novamente...”

            Ele voltou para sua residência. A enorme casa que o esperava solitária e intocada desde a noite anterior. Tomou cuidado para não ser visto por mais ninguém, mas como era ainda manhã antes do nascer do sol, não teve muitos problemas com isso.

            Primeiro ele se limpou de toda a terra, folhas e sujeira grudadas em sua pele, depois colocou alguma roupa. Sentou-se sozinho na mesa de jantar, sem vontade de tocar em comida. Sua mente estava tão ocupada com pensamentos que ele não sentia vontade de mais nada. Ficou ali, parado. Depois migrou para o quarto e foi até a sacada, ficou lá, ouvindo o som das cortinas farfalhando ao vento frio, esperando pelo nascer do sol que não viria; escondido por trás das nuvens, oculto pelo som da chuva. Olhando o longe, as residências, prédios e além das construções. Sem nenhuma palavra, sem nenhum ânimo, sentindo o peso do vazio. Até mesmo as cortinas que esvoaçavam lhe lembravam da mulher. As cortinas de renda que ela havia escolhido para o quarto dele.

            Pegou um objeto na cômoda que havia em seu quarto, depois voltou à sacada e abriu a mão. Segurava um anel, prateado com entalhes delicados e um cristal bem pequeno encrustado no centro. Ele fitou o objeto por alguns segundos, aquilo lhe trazia memórias nostálgicas e quando fechava os olhos, podia vê-las claramente, e ter a mesmas sensações, como se regressasse àqueles tempos...

. . .

50 anos atrás,

. . .

— Então pai, este é o homem de quem lhe falei...

            Disse Ária. Era ainda uma adolescente, com os cabelos negros presos em um rabo-de-cavalo, e um olhar de soslaio, com olhos brilhantes como os de uma criança, como se tentasse convencer o pai de algo.

            Ela estava à porta de casa, da mansão onde morava, e atendendo a porta, o homem com o qual ela conversava agora, a quem ela chamava de pai, a encarava: era alto, robusto, cabelos negros, como os dela, curtos, olhos vermelhos e um olhar rígido. Ele revezava olhares entre a filha e o homem atrás da filha dele, que parecia um tanto confuso.

— Ária Misvonbech... –o pai massageou as têmporas buscando paciência- Você trouxe um estranho para nossa casa? –perguntou num tom de incredulidade-

— Ah, -ela encolheu um pouco os ombros, ainda com um sorriso- Mas ele não é mau, pai! Eu não disse? Ele acabou com aquele transformado!

— Ainda assim, não pode trazer pessoas como se fossem animais de estimação perdidos, ele é um homem! –bronqueava- Além disso,- fitou Isshvan, desconfiado- Ele não é o mesmo que nós...

— E-eu juro, ele não vai fazer mal! –ela pedia com as mãos juntas- Não é?

Ela olhou esperando uma confirmação e o lobisomem respondeu lançando um olhar desacreditado.

Veremos.

            Disse uma terceira voz, de um homem, que descia as escadarias da casa, vistas ao fundo.

            Era alto, com uma postura ereta, apesar de ser já de idade, detalhe que podia-se notar pelo cabelos brancos e curtos que eram eximiamente arrumados para trás. Os olhos eram vermelho-sangue, e a pele branca e fina, mesmo tendo algumas rugas, parecia ter a mesma textura que seda. Este tinha o olhar ainda mais ríspido que o do pai da menina.

— Vovô?! –ela quase se engasgou ao pronunciar-

— Ária o que significa isso? –o velho estreitou os olhos enquanto encarava Isshvan-

— A-ah, ele é... Isso... –tentava explicar, nervosa-

. . .

            Após uma longa explicação detalhada, a moça se recolheu para se enxugar e trocar suas roupas molhadas pela chuva. Quanto ao homem que ela havia trazido para sua casa, estava agora sentando no sofá da grande sala, perto da lareira, enquanto num sofá de frente ao dele sentavam o pai e avô da menina, que o encaravam com ar sombrio, deixando o clima naquela sala de estar tenso e tão obscuro quanto a sombria noite do lado de fora.

            Assim que teve a oportunidade, a menina fugiu de seu quarto e foi direto até a sala, e escondendo-se atrás de uma parede, passou a espiar os três homens que conversavam no cômodo, preocupada sobre qual destino poderiam dar ao rapaz.

— Sou Júlio Misvonbech, e este é meu pai, Alian Misvonbech. –o mais novo dos dois homens apresentou-

— Me chamo Isshvan Von Einhardt...

— Einhardt...?-Júlio pareceu levemente surpreso- Então é de uma família de linhagem nobre... –o lobo confirmou com a cabeça, cordialmente-

— Então... –pigarreou o velho- É raro ver alguém de sua raça, ainda mais um nobre puro-sangue... O que te traz aqui?

Eles desconfiam de mim... Eu sou praticamente obrigado a responder às perguntas deles... Tem dois vampiros bem na minha frente, e aquela garota ali atrás...”

Ele olhou discretamente para o lugar de onde Ária os espiava e suspirou pesadamente.

“Ela também está vigiando para eu não escapar?”

“Nem sei por que a deixei me trazer aqui...”

“De qualquer forma, será melhor se eu esclarecer este mal entendido...”

— Vim aqui em busca de alguém em particular...

Alguém?    

Inquiriu Alian, arqueando um cenho em desconfiança pela resposta vaga do outro.

— Sim, um parente... Creio que ele está pelas redondezas, mas...      

Sua expressão era indiferente, mas sua voz estava embebida em um suave tom de preocupação. Pai e filho se entreolharam e voltaram a encarar o rapaz à frente deles que notou o receio dos dois.

— E aquele transformado? Foi obra desse seu parente ou... Foi obra sua?-o velho foi curto e direto-

— Não foi obra minha... –Isshvan disse frio e seco-

— Vovô!

            A voz que gritou foi a de Ária, num tom envergonhado. A garota correu assim que ouviu a acusação nada sutil do avô. Ela ficou atrás de Isshvan, e colocando as mãos nos ombros dele, disse em defesa do homem:

— Ele não faria algo assim, não tem lógica ele ter matado a própria criação, não é?

— Ária, aqui não é lugar para uma dama. –o pai dela repreendeu-

— Mas... Pai! Eu não podia deixá-lo aqui com vocês dois, sozinho... Fiquei com medo que fossem muito maus com ele! Não podem acusá-lo só porque ele é diferente de nós!

— Está errada, Ária –o avô falou- Temos muitos motivos para suspeitar dele, e há mais lógica em tê-lo como suspeito principal... Pode ter sido ele quem criou aquele transformado e tentou se livrar do trabalho sujo que fez, tem ainda mais sentido ele ter feito isso sendo um nobre, é claro que ele não deve querer ter o orgulho de sua família manchado. Quem lhe garante que ele não sabia da nossa existência aqui?! Não seria cômodo para ele acabar com algo sujo que fez para não ser notado?

            A menina calou-se. A explicação do avô fazia muito sentido e ela não tinha argumentos sólidos para rebater, encolheu os ombros.

— Eu agradeço a preocupação... –disse indiferente lançando um breve olhar para a adolescente, depois voltou sua atenção aos homens à sua frente- E entendo suas suspeitas fundadas... Não tenho provas de que não fui eu quem transformou aquele homem, mas como eu havia dito, estou em busca de uma pessoa por aqui, e creio que esta pessoa é o responsável por a transformação...

Os dois vampiros escutaram calados com um ar de seriedade que não podia ser rompido facilmente.

— Eu o estive seguindo por algum tempo, e por onde quer que ele passe, sempre deixa este tipo de rastro, eu tenho destruído todos os transformados, mas como não sei a exata localização dele, não posso impedi-lo de criar novos...

— E pode provar isto? –Alian pressionou novamente-

— Não...

— Ah, mas- Ária novamente iria interromper, mas foi cortada por seu pai-

Ária Misvonbech, eu já lhe disse que aqui não é seu lugar, não se intrometa em assuntos que não lhe convêm.

            A garota abaixou a cabeça, encolhendo os ombros e se retirando da sala.

. . .

            A conversa continuou sem a menina lá, e após um tempo, naquela mesma noite, lá estava Isshvan, saindo daquela casa, em meio à chuva que voltara a cair incessante.

            Ele caminhou no meio das ruas vazias até chegar numa praça, um espaço mais aberto, alguém trilhava o mesmo caminho que ele, escondido.

Parou de caminhar para descobrir quem era que o seguia, a chuva lhe impedia de identificar bem o cheiro. Foi quando subitamente, alguém apareceu atrás dele, e ele se virou instintivamente, em alerta para atacar a pessoa que se esgueirava. Atacou, mas parou, surpreso ao reconhecer quem estava ali.

— Senhorita?!

— Uou! –Ária deu um pulo para trás ao quase ser acertada por um golpe e derrubou a sombrinha que segurava- M-me desculpe, não queria assustar você...

— Ah... –ele pegou a sombrinha e devolveu para a moça que estava um tanto assustada- Estava me seguindo?

— Bem... –ela abriu um sorriso- Eles devem ter te deixado irritado não é? Meu pai e o vovô nunca sabem quando parar, eles provavelmente ficaram com um olhar desconfiado o tempo todo enquanto te enchiam de perguntas, não foi?

Ele franziu o cenho, incerto de quais as verdadeiras intenções daquela garota.

— Tudo bem, tudo bem, -ela riu-se- Não precisa responder, posso imaginar como deve ter sido...

— Há algo que queira dizer...? – o homem perguntou indiferente- Esteve me seguindo todo esse caminho...

— Bem...

            Ela hesitou, virou-se de costas envergonhada e colocou as mãos nas bochechas que estavam vermelhas.

— É a primeira vez que eu conheço alguém que não é humano, fora da minha família... Os outros vampiros tem nojo de se aproximar de mim, e os humanos não podem descobrir sobre meu sangue vampiro, claro...-ela encarou o homem animada- Mas o Senhor é um lobisomem, certo?! Eu estou tão animada, nunca encontrei com um pessoalmente!! E o Senhor ainda conversou comigo... Desculpe, não pude me conter em segui-lo!

            Foi aquela a primeira vez que ele, o lobisomem Isshvan Einhardt se viu sem reação perante uma garota adolescente. Ele não sabia se deveria estar lisonjeado ou sentir pena da inocência da menina.

— Vive sozinho? Eu ouvi que lobos são solitários... Vive numa floresta? Pode se transformar mesmo na lua cheia? Onde mora? Tem família? Conhece vampiros também? Gosta de humanos? –ela perguntava energética-

— Ah... –Isshvan recuou um passo com a torrente de perguntas-

— Oh! –ela tapou a boca com as mãos- Me desculpe, mas eu estou tão ansiosa!!

— Deixe-me fazer uma pergunta... –ele encarou a garota, sério-

            Ela fitou-o preocupada com o tipo de pergunta que receberia.

— Acredita mesmo no que eu disse sobre não ser o culpado? Seu avô e seu pai não confiam em mim, está tudo bem para você vir aqui?

Ela não conteve o riso, toda tensão que havia antes no ar, quando ele fez a pergunta, sumiu quando ela gargalhou. Isshvan franziu o cenho.

— D-desculpe... –ela tentava parar de rir para responder- Sabe, é que foi engraçado, me desculpe mesmo... –enxugou as lágrimas que se formavam nos cantos dos olhos- Meu avô e meu pai duvidam de todo mundo, e eu te levei lá em casa, então mesmo que não tivesse motivo algum para eles desconfiarem, eles iriam criar desculpas, sabe... Além disso, precisava ter visto sua expressão quando me viu pela primeira vez, eu achei que o Senhor iria largar aquele corpo no meio da rua e fugir com medo... Eu nunca iria ter medo de alguém assim! –ela riu-

— Meu nervosismo... –ele iniciou a pergunta com uma expressão branda- Foi tão óbvio assim...?

— Foi! –ela riu mais alto-

— Entendo...

Ele deixou um leve sorriso escapar em seus lábios, parece que ele ainda tinha muito o que aprender sobre autocontrole emocional.

. . .

“Ah sim... Naquela época... Foram bons tempos... Mas...”

            Uma memória fez uma intersecção na cena que ele via e o clima passou de um momento nostálgico para um ar sombrio e vil, uma lembrança muda.

            Agora Isshvan corria em meio à chuva, em direção à residência daquela família de vampiros que conheceu. A chuva caía pesada, estalando ao tocar no chão e formando pequenas corredeiras de água ao cair das calhas dos telhados. Ele respirava fundo enquanto corria veloz.

            Quando ele chegou à residência, a porta estava entreaberta, um tremor interno fez seu coração vacilar, e ele aproximou-se, abrindo completamente a porta. Seus olhos se arregalaram ao ver a cena dentro da casa. De repente tudo ficou confuso, o sangue nas paredes, no chão, espalhados por todo lado, e os corpos daquelas pessoas, Ária sentada ao lado de um dos corpos chorando.

            A expressão dele misturava angústia e confusão, ele andou alguns passos, lentamente, até tocar no ombro da garota que estava ali, sentada chorando, as mãos dela estavam cobertas de sangue e ela gritava, e quando ela virou-se para olhá-lo, sua face estava estampado o puro desespero.

“Ah... Eu me lembro... Foi minha culpa... Aquilo aconteceu por minha culpa... Se eu não estivesse lá... Se eu nunca houvesse encontrado aquela família...”

. . .

            E abrindo os olhos suas memórias desvaneceram de sua mente, fazendo-o retornar ao presente.

— Você sabia que aquilo tudo era culpa minha, ainda assim escolheu ficar ao meu lado, não foi, Ária...? –ele encarou a aliança que segurava por mais alguns segundos-

            O rosto dele estava abatido e cansado, carregando na feição uma melancolia nunca antes demonstrada por o homem frívolo e inabalável que ele fingia ser ao redor das pessoas. Não havia por que tentar esconder nada agora, não havia mais ninguém por perto, não restava mais nenhuma única pessoa por quem ele se desse ao trabalho de afastar. Todos estavam longe agora, e a única pessoa que ousou aproximar-se dele, estava agora num lugar impossível de se alcançar.

            Sua intenção era fazer com que seus alunos que viviam seguindo-o se afastassem, para que não tivessem problemas, e pelo que ele imaginava, eles deveriam ficar distantes dele a partir de agora, isto é, se ainda estivessem vivos.

— Não resta mais ninguém... –o vento soprou fazendo as cortinas esvoaçarem e batendo no rosto dele- Não... Tem um lugar que eu gostaria de ir...

. . .

No centro da cidade,

Laboratório ilegal do Dr. Illiel

. . .

            O Dr. Ouviu a campainha de sua loja tocar pelo interfone na parede do laboratório subterrâneo. Ele estranhou, tinha certeza de que havia posto uma placa avisando sobre a loja estar fechada logo cedo, mas alguém realmente tocara a campainha? A polícia o havia descoberto? Ele suou frio, correu até a porta e hesitantemente abriu-a.

— Isshvan?! –o doutor disse surpreso-

O outro não respondeu ao cumprimento, adentrou o estabelecimento despreocupadamente antes mesmo de receber permissão.

— Que cara lamentável é essa? Me deu um susto, pensei que fosse a polícia!

            O doutor continuou o monólogo:

— De qualquer forma, eu estava preocupado, soube que se transformou... Mas você está vivo e inteiro, isso que importa, apenas conte-me uma coisa: O que está fazendo aqui? Tentei te contatar como um louco, mas não consegui de jeito nenhum!

— Eu perdi meu celular... –respondeu sem importar-se muito-

— Vamos lá embaixo, é melhor de conversar, além disso, eu queria te chamar aqui mesmo... Por que veio aqui se eu não consegui te contar? Foram aqueles seus alunos que pediram a você...?

—... Eu vim aqui para conversar...

— Conversar? Comigo? –o médico estranhou- Isso é raro!... Porém, acho que posso entender essa sua cara morta... Eu queria mesmo te chamar para falar contigo...

— Pra quê queria me chamar aqui?

— Ah, isso... –Illiel mudou para uma expressão séria- Aquelas crianças, seu alunos... Eles me chamaram outro dia e aconteceram algumas coisas... Eu estava preocupado com você, mas não tive tempo e procurá-lo antes porque estive ocupado cuidando de alguém... Veja...

            Illiel andava num corredor, ele abriu uma porta, e convidou o amigo a entrar, com um leve sorriso no semblante, e ali, da entrada daquele quarto, Isshvan pôde ver quem era a pessoa deitada no leito daquele quarto...

            Achava que seus sentidos o enganavam. Não poderia ser verdade. Como ela estava ali? As palavras saltaram da boca dele exaltadas e ao mesmo tempo, confusas:

— Ária?!

— Sim, -Illiel se pôs na frente do amigo- Mas não pode ir abraçá-la agora, ela ainda está debilitada, eu apenas vim lhe mostrar que sua noiva ainda vive, pra que tire esse sua expressão depressiva do rosto... Creio que tenho muito a lhe explicar... Contudo, aqui é impróprio para conversar, vamos nos sentar primeiro...

            Isshvan estava surpreso, mas acima disso, estava perdido. Como Ária havia ido parar ali e viva? Ele não havia se transformado porque ela estava morta? Havia muitas perguntas em sua mente cujas quais ele não poderia responder sozinho.

            Illiel sentou-se à mesa, num cômodo que lembrava uma cozinha, era localizado numa das várias salas no subterrâneo, não muito longe do quarto onde estava a noiva do amigo. Ele serviu café ao lobo e iniciou a explicação.

— Ontem, bem tarde da noite aqueles seus alunos me ligaram... Lembra que eu dei meu número a eles para casos de emergência, certo? –lançou um olhar vago para o amigo- Em fim, era um caso de urgência, eles me disseram que eu precisava ir lá antes que a Ária morresse. Meu pobre cérebro de idade não teve nem tempo de pensar que poderia ser um trote só pelo desespero daqueles garotos, não acreditei que poderia ser, por isso corri o mais rápido que pude com meu carro... –ele bebericou um gole de café, respirando um pouco antes de continuar o falatório- Para minha surpresa ela estava mesmo morrendo, eu a trouxe imediatamente, e as pessoas que estavam naquele lugar onde você lutou quase nos viram saindo de carro, provavelmente verá nos noticiários sobre a destruição que você e seus parceiros de luta causaram na rua... Bem, eu tomei medidas, fiz os primeiros socorros e a trouxe para cá, mas... –ele hesitou- Mas... Essa parte da história, você deveria perguntar aquele garoto, seu aluno, quando ele acordar...

— Quando ele acordar? O que você fez, Illiel?! –Isshvan levantou-se batendo na mesa-

— Viu só? Não confia em mim, eu nem disse nada suspeito, só prefiro que ouça da boca dele para que depois não fique dizendo que eu o induzi a fazer aquilo... Eu sou seu amigo, estou do seu lado, sabia? Será que poderia depositar um pouco mais de confiança em mim? –disse ofendido-

O professor sentou-se, acalmando seus ânimos, aquele dia havia sido muito estressante, até para alguém controlado como ele.

— Aquela garotinha está com ele, não se preocupe... E quanto à Ária, se aquelas crianças tivessem demorado um pouco mais a perceber que ela ainda estava viva, teria sido realmente uma tragédia, mas eu consegui de alguma forma salvá-la a tempo... Agradeça a eles direito depois. Ouvi que eles ficaram cuidando dela enquanto você enlouqueceu e saiu correndo por aí transformado em lobisomem na lua cheia.

O professor abaixou os olhos sentindo-se envergonhado e culpado ao mesmo tempo.

— Ah, eu estava só brincando... –Illiel gesticulou- Não fique tão decepcionado, na verdade, posso entender por que se transformou, não deve ter sido fácil para controlar suas emoções numa situação onde Ária se machucou tanto e você foi pressionado, certo?

            O silêncio do lobo apenas aumentou a tensão, e o doutor continuou de forma desajeitada:

— Hey, eu sei que tem controle sobre sua transformação... Não é como se fosse um louco desesperado que vira uma besta incontrolável toda lua cheia...

— Mesmo em situações como aquela... Eu deveria ter me controlado... –disse num tom angustiado- Não somente deixei de perceber que Ária estava viva, como pus em risco a vida dela e daquelas crianças, bem como a vida de todos os residentes locais... Fui... Tão Estúpido... –a palavra saiu com desprezo, quase como se ele cuspisse-

— Isshvan, olha pra mim, –o amigo apertou o rosto do lobo entre uma das mãos, forçando-o a encará-lo-  Chega dessa sua auto depreciação, tudo bem? Não quero mais ouvir uma palavra da sua boca enquanto não tiver voltado à realidade. –sua voz era calma, mas firme- Se vai ficar se lamentando pelo que aconteceu, então não é mais o Isshvan que eu conhecia. O que aconteceu, aconteceu. –disse simplista- É passado, foque-se no presente. Quem ficou a noite acordado, se descabelando, fui eu, e pra salvar sua noiva! Chega de depreciação e lamúria, seja um homem e arque com as consequências de seus atos!

— Há momentos da vida em que um homem deve ser capaz de fazer suas próprias decisões, sua decisão foi ignorar o perigo e manter suas aparências, mas isso acabou não dando certo, então da próxima vez, tente tomar uma decisão que não ponha em risco a vida das pessoas com quem se importa! –bronqueou-

            O loiro soltou o rosto do amigo, que estava vermelho pela força com que Illiel havia apertado. Isshvan massageou o rosto, pensativo e preocupado.

— Ótimo! –o médico deu um sorriso relaxado- Poderá falar com a Ária quando ela acordar, as feridas dela se recuperam mais rápido por ela ter sangue vampiro nas veias, mas não significa que ela irá ficar boa em pouco tempo. Deixe-a descansar por hora.

—... Certo... –disse calmo-

— Pode ficar aqui, se quiser... Sei que deve estar ansioso para ver o rosto dela de novo...

            Ele não respondeu, mas a expressão preocupada revelava a vontade dele. Illiel o deixaria num dos quartos do subterrâneo, mas Isshvan preferiu ficar na sala. Não queria dormir ainda, precisava refletir sobre muitos assuntos. As palavras do amigo pesavam em seu coração.

O que o professor não sabia era que aquela noite anterior foi um gatilho de mudanças não somente para ele, mas para todos que ali estavam presentes, inclusive certo alguém...

. . .

Naquela mesma manhã,

Antes do alvorecer

. . .

            Na área dos galpões abandonados, do lado de fora de um dos galpões, sentado no chão, recostado na parede estava o vampiro, com a mão sobre as feridas quase recuperadas que havia recebido na noite anterior.

            Ele olhava o porto ao longe, conseguia ver o mar e os containers, bem como o dia clareando. Estava ainda revoltado pelo acontecido. Frustrado pela grande falha dos próprios planos e mais ainda, com a própria incompetência.

“Ser salvo por uma humana, isso é...”

            Enquanto ponderava, notou uma presença ali, e imediatamente fixou o olhar na direção da qual vinha, a direção da cidade.

            Era Lucci, o outro vampiro. Caminhando a passos lentos e suaves, ele vinha rumo ao companheiro, com um sorriso no rosto.

— Como imaginei... Você estava aqui... –ele suspirou com um leve ar de alívio- Parece deprimido, Raphiel...

Ele bufou virou o rosto, desviando o olhar do homem que já estava em frente a ele.

— Ora, vamos... Não me trate assim... –riu-se- O que aconteceu? Por acaso seus planos fracassaram? Está irritado porque perdeu? –ele olhou as feridas quase cicatrizadas do outro- Não seja infantil...

— É óbvio que não ocorreu tudo como planejado... –respondeu áspero-

— Sim... Mas estou realmente curioso em saber quem lhe deixou estas lembrancinhas...

— Infelizmente, eu acabei me envolvendo numa luta de três lados, e aquele lobo se descontrolou... Que raça patética... Se deixando levar pelos próprios instintos animalescos...

— Vejo... –o sorriso no rosto do homem se desfez e os olhos dele tornaram-se frios-  Contudo, deve se lembrar de que parte disto é sua responsabilidade, afinal, você quem decidiu pôr em ação um plano logo num dia de lua cheia... E sua missão era apenas dar conta do caçador, não tentar se livrar de ambos lobo e caçador num só dia...

— Eu sei disso. –disse entredentes- Fui ganancioso e tive resultados condizentes com minhas ações...

— Bem, eu previ que algo do gênero aconteceria... Você estava tão apressado para acabar de uma vez por todas com eles que acabou sendo imprudente, então eu resolvi deixar você executar seu plano Raphiel... Achei que seria uma experiência construtiva... –ele sorriu cínico- Não esperava que se machucasse tanto, se soubesse que tudo correria dessa forma, teria te seguido e intervindo... Mas, fico feliz que tenha escapado com vida... Deve ter sido uma façanha e tanto fugir de um lobo feroz...

O vampiro rangeu os dentes, cheio de indignação, e disse irritado, com as lembranças que lhe vinham á mente da noite anterior:

Não. Eu não fugi... 

O outro vampiro  o fitou, calado e perplexo, como se esperasse a explicação.

— Eu fui salvo por uma humana. —cerrou os punhos-

            A expressão serena de Lucci mudou de uma calmaria gentil para uma seriedade intimidante. Os lábios dele não continham mais o sorriso usual, mas estavam desenhados numa linha reta, com desgosto expresso.

— Entendo... Essa é a razão de sua irritação... –pronunciou frívolo-

Raphiel ousou olhar fixamente nos olhos do outro, talvez fosse uma má ideia deixar Lucci saber daquilo.

— Está bravo por isso?

— Não... –respondeu seco- Creio que estas cicatrizes serão punição o suficiente pelo seu desleixo, além disso, quem deve estar com o orgulho ferido é você, tenho certeza disto... –um sorriso cínico se formou no rosto dele- Foi uma experiência que lhe acrescentou muito, creio. Espero que se lembre dela da próxima vez que for planejar algo tão impulsivo...  Preocupo-me com sua segurança, espero que seja mais cauteloso daqui para frente...

—... Eu serei...  –disse encarando o chão-

— Contanto que não permita que seu orgulho domine a situação e acabe atrapalhando nosso objetivo, não há porque dar broncas em você... Agora tire essa expressão de desânimo do seu rosto e vamos voltar, o sol nascerá em breve.

            Raphiel ficou de pé, e sem ajuda alguma, seguiu o outro que andava para longe dos galpões. Enquanto caminhavam lentamente, o sol nascia e os primeiros raios caíam sobre as ruas e nos telhados das casas. O vampiro olhou para o círculo brilhoso que aparecia ao fundo, ascendendo majestosamente. Estreitou os olhos e pôs a mão na frente do rosto, por conta da claridade.

“O sol é mesmo um incômodo...”

            Ele desviou o olhar, focando-se no caminho à frente enquanto refletia sobre a noite anterior, ainda abalado pelos acontecimentos e culpando-se por sua própria estultícia.

. . .

No laboratório subterrâneo,

. . .

            Isshvan não tinha se movido um centímetro se quer daquela mesa, com uma expressão amargurada no rosto.

“Eu quase perdi alguém insubstituível por cauda de minhas próprias fraquezas... Isso é imperdoável...”

“Apesar disso, aquelas crianças ainda salvaram Ária... Imagino com que olhos me verão a partir de agora... Provavelmente...”

            Antes que o raciocínio do homem se completasse, Illiel, o doutor, veio correndo com um sorriso no rosto e respiração ofegante.

— Iss! A... A Ária... Acordou! –dizia entre pausas, cansado-

            Os olhos do professor abriram-se em surpresa e ele levantou-se da cadeira, num impulso. Tentava entender a reação do amigo que veio correndo feliz, havia escutado as palavras, mas acreditava que não havia entendido bem.

— O quê...? –arriscou perguntar, ainda chocado-

— A Ária acordou! –repetiu com ânimo e confiança-

Ária...

O nome saiu como num sussurro apaixonado e melodioso. Será que os sentimentos trancafiados daquele homem finalmente iriam...?


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