Passado Perdido escrita por Leonardo Alves


Capítulo 6
Face revelada




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Abri os olhos lentamente enquanto sentia minha cabeça latejar. O que é essa dor!? Me perguntava mentalmente. Que horas são?! Demorou alguns segundos para que as lembranças voltassem para minha mente, vindo com uma onda de medo que aumentou ainda mais quando percebi que havia alguém deitado ao meu lado na cama.

Com um sobressalto sentei no colchão. Embaixo de um lençol branco dava para se ver os contornos do corpo de uma pessoa de bruços a poucos centímetros de mim. Observei atentamente, mas não consegui perceber nenhum movimento. Tomando coragem, levei minha mão até a borda superior do tecido e o puxei.

Assim que reconheci quem era aquela pessoa percebi que preferia que fosse o assassino ali embaixo, pronto para me matar, mas não ela.

— Jullie?! — Toquei em seu braço, a pele gelada me causando arrepios.

Comecei a virar seu corpo para cima, lágrimas descendo pelas minhas bochechas. Ao ver seu rosto o horror foi tão grande que me afastei bruscamente, caindo no chão. Deitei ali mesmo e chorei, não tendo forças para fazer mais nada. A face dela, que um dia fora tão linda, agora possuía dois buracos negros no lugar aonde deveria haver olhos; os lábios haviam sido arrancados, deixando à mostra fileiras de dentes brancos; para completar, seu nariz era uma massa disforme e roxa que parecia ter sido esmagada por algo.

Por que tudo aquilo estava acontecendo?! Por que alguém resolveria assassinar cruelmente todas as pessoas próximas a mim?! Eu não fazia ideia e a dor das perdas não me deixava raciocinar direito. Tudo o que eu conseguia fazer no momento era ficar deitado no chão e chorar.

Aos poucos, um som se tornou cada vez mais alto parecendo vir de todos os cantos do quarto. Demorei um pouco para percebê-lo sobre meu choro. Era o mesmo apitar que eu havia ouvido anteriormente após ler uma página do diário de Thomas. Junto com ele, minha visão foi ficando branca como se meus olhos estivessem de frente para alguma luz.

Eram coisas demais acontecendo em tão pouco tempo e eu sentia que já estava começando a perder minha sanidade. Quem sabe eu já não estivesse louco?! Provavelmente policiais entrariam no meu quarto em alguns instantes e me prenderiam, alegando que assassinei três pessoas. E quando eu tentasse falar sobre páginas de diário e sobre um homem vestindo roupas negras eles explicariam que isso foi invenção da minha mente e que não haviam encontrado nenhuma folha de diário no meu apartamento. Eu não duvidaria muito de que essa era a verdade.

Minha mente girava com pensamentos ruins, dor e culpa enquanto aquele som e luz dominavam todos os meus sentidos. Porém, quando foram embora e eu me encontrei no chão frio novamente, uma decisão me acometeu rapidamente: eu iria novamente naquele maldito prédio. Algo me dizia que o cara encapuzado estaria lá e eu precisava encontrá-lo, se não para matá-lo, pelo menos para conseguir alguma explicação daquilo tudo.

Com algum esforço, suprimi toda a angústia que havia dentro de mim e foquei meus pensamentos na raiva, adquirindo uma calma fria e sedenta por esclarecimentos e vingança. Não demorou muito para que eu chegasse em meu destino. Parado na calçada, observei a fachada decadente do edifício. Já era noite, embora eu não soubesse a hora, e um vento frio uivava como que predizendo alguma tragédia.

Mal tive tempo de pensar, lá estava ele: em uma das janelas do primeiro andar, um vulto negro com forma humana se mostrava. Meus músculos enrijeceram por alguns segundos, mas a imagem do rosto de Jullie fez com que eu me movesse. Retirei uma faca e uma lanterna de uma sacola que havia pego antes de sair de casa e entrei correndo no prédio. Não queria que aquele assassino tivesse tempo de sair do apartamento em que eu tinha visto que ele estava.

O cheiro de mofo me recebeu assim que entrei e comecei a subir as escadas. Parei no corredor do primeiro andar. O silêncio reinava no local. Havia duas portas em cada uma das paredes laterais, todas fechadas, e no final estava uma escada que levava para o próximo andar. Pela posição da janela em que ele estava, eu sabia que ela pertencia ao apartamento da primeira porta à direita.

Girei a maçaneta e a abri alguns centímetros, deixando-a entreaberta. Com a lanterna ligada na mão esquerda e a faca na direita, chutei a porta bruscamente, fazendo com que ela batesse na parede para garantir que não havia ninguém escondido atrás dela. O feixe de luz varreu nervosamente a velha e empoeirada cozinha que aparecia na minha frente. Não havia ninguém lá. Onde estava aquele maldito?!

O medo começava a fazer meu estômago revirar, mas eu precisava seguir em frente. Assim que andei dois passos para dentro do cômodo, o som de passos fortes vindos lá de fora quebraram o silêncio, me sobressaltando. Olhei para o corredor a tempo de ver o homem de vestes negras subindo as escadas. Não pensei duas vezes, comecei a persegui-lo correndo o mais rápido que conseguia.

O que eu mais temia ao entrar no prédio era que ele podia se esconder em qualquer canto e me pegar de surpresa. Mas agora eu sabia onde ele estava e o fato dele ter corrido de mim me dava ainda mais coragem. Deixei uma raiva insana tomar conta da minha mente enquanto corria atrás dele. Segundo andar. Terceiro andar. Minha mão doía, tão forte eu segurava o cabo da faca. Quarto andar.

Por fim, saímos na cobertura do edifício. Ele parou a meio caminho do parapeito e se virou para mim. Parei a poucos passos dele, arfando. O capuz cobria boa parte do seu rosto, deixando apenas seu queixo e boca à mostra. Saliva voava da minha boca enquanto eu falava, tanto pelo ódio quanto pelo cansaço que eu sentia.

— SEU DESGRAÇADO. Quem é você? Por que matou aquelas pessoas?

Ele apenas continuou na mesma posição, sem dizer nada. Não aguentei mais. Larguei a lanterna no chão e avancei ferozmente, caindo em cima dele no chão e posicionando a faca em seu pescoço. Porém, ao ver o rosto que estava embaixo do capuz eu congelei. Aquele era com certeza o último rosto que eu imaginaria ser o do assassino. Senti vontade de vomitar. O que diabos estava acontecendo?!

Saí de cima dele e me arrastei para trás, sentando no chão. Ainda em choque, larguei a faca e apenas observei enquanto ele levantava e descobria sua cabeça completamente. A face que eu via era exatamente a mesma que a minha. Agora eu tinha quase certeza de que eu havia ficado louco.

— Está na hora de acordar, Thomas. Você já ficou aqui tempo demais. — proferiu com a voz também igual à minha.

— Do que está falando?! — consegui falar numa voz quase inaudível.

— Você sabe. Esse mundo não é real, é apenas um lugar que sua mente criou enquanto você se recuperava, mas agora já está na hora de partir.

Eu não sabia o que dizer, então ele continuou a falar.

— Eu não matei sua mãe, ela morreu durante um assalto, assim como você leu no diário. Também não matei Erick, nem ele tinha o rosto normal como você idealizou nesse mundo. Aliás, ele se suicidou no ultimo ano da escola de vocês por causa das queimaduras que deformavam sua face. Ao lhe dar aquelas páginas eu estava apenas tentando fazer você lembrar seu verdadeiro passado. Bom... eu também precisei acabar com a perfeição deste lugar para que sua mente pudesse deixá-lo para trás, por isso aconteceram essas falsas mortes.

— CALE A BOCA! Você está mentindo... só pode estar mentindo. Mas... eu estou louco?! — comecei a chorar, minha cabeça parecendo que explodiria de dor. Entretanto, no fundo eu sabia que ele falava a verdade.

O outro eu caminhou até perto de mim, tirando do seu bolso um pequeno caderno com capa de couro e uma caneta. Me entregou os dois e depois desapareceu no ar. De alguma forma estranha parecia que minhas mãos haviam adquirido vida própria e agora começavam a se mexer sozinhas. Assisti hipnotizado enquanto elas abriam o caderno em uma página em branco e começavam a escrever:

03 de outubro de 2000

Estou batendo na porta do lugar onde presenciei os piores momentos da minha vida. Meu motivo?! O Coisa. Mesmo depois de eu conseguir me mudar para um apartamento próximo à universidade em que estudo ele continua atormentando minha vida. Com seu vício na bebida aumentando conforme os anos, ele chegou num estado em que mal consegue se manter em um emprego tamanha a frequência com que fica embriagado. Como resultado disso, vez ou outra ele aparece para mim pedindo algum dinheiro. Eu dou, não querendo arrumar nenhuma confusão.

Entretanto, na última vez em que ele foi me procurar não era eu que estava em casa, mas sim Jullie. Quando cheguei a encontrei desesperada dizendo que aquele imundo tentara se aproveitar dela. Com isso ele passou todos os limites. Eu tenho que por um fim nisso, não quero que ele apareça com aquele rosto odioso na minha frente nunca mais.

Finalmente a porta se abre, deixando aparecer um homem alto, gordo e com a barba por fazer. Pelo cheiro e pela aparência nota-se que ele não toma banho há alguns dias e que com certeza está bêbado. O interior do apartamento atrás dele está tão mal cuidado e sujo quanto o dono.

Seu desgraçado, o que tentou fazer com a Jullie? cuspo as palavras com todo o ódio e desprezo que carrego e começo a empurrar ele para dentro do cômodo.

Eu?! Eu não fiz nada... essa mulher é louca!

Meu sangue começa a ferver. Antes que eu possa me controlar desfiro um soco no rosto dele que acerta em cheio, fazendo ele se curvar.

Nunca mais abra essa boca podre para falar da Jullie. E NUNCA MAIS ME PROCURE PARA NADA! VOCÊ É UM BOSTA QUE SÓ SERVE PARA FAZER OS OUTROS SOFREREM!

Ele me encara e faz uma careta de ódio como eu nunca havia visto antes.

MOLEQUE INGRATO!

O Coisa avança sobre mim. Tento me defender mas sinto meu pé deslizar sobre algum líquido que havia sido derramado no chão, provavelmente alguma bebida alcoólica. Caio de costas no piso, ficando desnorteado. Com toda sua fúria, aquele monstro monta sobre mim e começa a descer repetidos murros contra minha cabeça. Tudo o que sinto é dor, mas após alguns segundos finalmente apago inconsciente.

Olhei para o que escrevi e pude enxergar toda a cena acontecer. Aquilo havia sido real. Mais alto e frequente do que das outras vezes, o mesmo apitar que havia ouvido começou a soar. Junto com ele, o mundo todo começou a se despedaçar em fragmentos que iam para o céu até que tudo se tornou branco. Foi então que acordei.

Eu estava em uma sala toda branca. Me sentia fraco e meu corpo pareceu mais pesado do que o normal quando tentei levantar um braço, apesar de aparentemente eu estar mais magro. Uma variedade de fios e tubos se conectavam a mim e, ao olhar para o lado, consegui ver uma máquina que monitorava meus batimentos cardíacos enquanto apitava.

Uma jovem moça vestindo um uniforme branco entrou rapidamente para me ver. Não conseguia reconhecer seu rosto, mas podia ver o espanto que tomava conta dele, como se estivesse vendo um fantasma.

— Senhor Thomas, fique calmo, por favor. O médico já está a caminho — sua voz calma e doce chegou aos meus ouvidos.

— O... aco...eu? — numa tentativa falha, tentei perguntar a ela o que estava acontecendo, mas tudo em mim parecia estar enferrujado. Mesmo assim, ela pareceu entender.

— Não se esforce, por favor. Seu corpo ainda está fraco. O senhor... — hesitou por um instante — bem... o senhor acaba de acordar de um coma... um coma de 13 anos.




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