-Agatha? – a voz dele atravessou o espaço da sorveteria e atingiu meus ouvidos em cheio, entorpecendo-os.

            Eu não poderia dizer se sentia alivio ou decepção. Qualquer uma das hipóteses funcionaria.

            Decepção porque eu não precisava esperar mais pra saber que meu plano perfeito falhara. Christopher estava ali, contra toda a razão que eu havia construído na minha cabeça desde que o vira pela última vez. Eu perdera. Não deixaria de pensar nele. Não conseguiria.

            Alivio porque, de alguma forma estranha, algo em mim se alegrou com essa possibilidade. A possibilidade de erro, quando este incluía Christopher. Seria melhor pensar nele e saber que ele estava ali. Não seria?

            Me assustei com meu pensamento e voltei a realidade.

Talvez só tivesse passado meio segundo, e vi os olhos de Christopher – que ainda estava parado na entrada – observarem meu avental laranja cítrico, da cor da loja, decorado com o logotipo da sorveteria.

Ele me encarou de novo, confuso.

-Você trabalha aqui?

Apartei as mãos. Cadê o dinheiro?

Estava todo esparramado pelo chão.

-Ai, droga! – abaixei-me e recolhi as notas com pressa. Ouvi os passos leves de Christopher se aproximarem do balcão. Respire. Repeti para mim mesma enquanto levantava e recontava o dinheiro.

Ele esperou pacientemente até que eu o guardasse e tivesse que encará-lo.

Ele sorriu quando meus olhos encontraram os dele. Meu Deus.

-Poxa, faz tempo que agente não se vê.

Não tinha palavras para aquilo. Aquele era o próprio motivo para o que acontecia agora. Era o motivo pra eu estar trabalhando, fugindo desesperadamente de minhas ilusões – agora reais de novo.

E vejam só, eu fujo e tudo volta.

Será que eu não devia fugir? Devia ficar sobrevivendo com aquelas duvidas cruéis na minha cabeça?

-Eeei, Agatha. – ele falou.

-Ah! – eu estivera raciocinando com os olhos pregados nos dele, mais uma vez. Droga. – sim? O que?

-Você ficou parada do nada. O que foi? Ta contando o dinheiro de novo?

-Ah, não, não. Já contei. O que você vai querer?

-Ahn. – ele parou por um momento, se concentrando em seguida – eu mesmo pego, pode deixar.

Ele caminhou até o freezer com picolés e voltou com um de coco.

-Pronto, aqui está. – e me deu o dinheiro, já trocado.

-Ah, obrigada, eu não teria troco.

Ele sorriu.

-é....

-Hã? – ele perguntou.

-Por que você não foi pra escola? – por que eu queria saber aquilo?

-Bem, aconteceram muitas coisas. – ele se distraiu abrindo o sorvete – ah droga, esse não era pra mim... tudo bem – então começou a explicar enquanto tomava o sorvete e eu observava sem tirar os olhos dele – bem, naquele dia eu cheguei em casa e minha irmã estava com muita febre, muita MESMO. Eu tive que levá-la ao hospital, então não pude ir. Na quarta meu pai me chamou para ir até Long Vill com ele fazer compras. Ele me disse que levaria um dia inteiro, mas levou dois. E na sexta, quando tentamos voltar, a estrada estava toda parada por causa de um acidente. Foi horrível. Imagine quatro horas dentro de um carro, sem sair do lugar.

-É... horrível. – apesar das duas cidades serem relativamente perto uma da outra, a estrada... Era por causa daquilo que meu pai não suportava a idéia de ir até Long Vill fazer nada.

            -Nem fale. - ele terminou o sorvete no exato momento em que um trovão apareceu no céu, aparentemente anunciando a chegada de Jeff, já que a cara dele combinava com algo bem furioso como um trovão.

           -Pois não? – ele falou, tentando ser veemente, como o pai. Tive que conter o riso, e ele me olhou com cara feia.

            -Já estou sendo atendido, obrigado. – falou Christopher, serio.

Tive que virar para ver seu rosto. Ele tinha se desencostado do balcão, mas suas mãos ainda estavam apoiadas ali. Não vi o saquinho de picolé.

            -Mesmo? – retrucou Jeff, ainda tentando manter a voz grossa – mas o turno de Agatha já acabou, não é Agatha? – ele me olhou furioso por um momento, e depois prosseguiu, mais calmo – talvez eu possa ajudar.

            -Ah – disse Christopher – eu também já estou indo – e foi pegar mais dois picolés no freezer.

Jeff me fez sair do caixa antes de poder passar os picolés. Eu podia sentir que uma competição por clientes estava nascendo ali.

Peguei minha blusa de moletom, chaves e algo mais que eu tinha levado e fui saindo, sem me despedir de Christopher.

Mas, ele me alcançou na rua.

-Ei, Agatha! – ele me alcançou com passos rápidos – caramba, você nem falou um tchau.

-Ah, sinto muito, mas Jeff é insuportável.

-É, eu sei disso. – ele pensou por um momento – ele não te deixa conversar com clientes?

-Não sei. É o meu primeiro dia, não sabia que ele ficaria irritado.

-Ele não tem que ficar irritado, não é seu patrão. – Christopher falou rápido.

Eu o encarei, surpresa.  Por que ele não agia como os outros? Por que não me ignorava e ria da minha miséria? Aquilo iria me enlouquecer.

-Obrigada, mas de qualquer forma, isso não mudaria nada. Ele é o filho do meu patrão. Se quisesse arrumar um problema pra mim, eu sairia numa mal.

Nós já estávamos andando pela rua juntos, sem que eu percebesse. Não me opus também. De algum modo, era bom vê-lo de novo.

Ainda que fosse a ultima vez.

Porque eu estava naquilo para esquecê-lo, não era? O que ele faria se soubesse que a culpa daquela desgraça era dele?

Ou talvez não fosse culpa dele. Talvez só eu estivesse errada, como quase sempre.

Meditei sobre isso no espaço de tempo em que não falamos.

Então, Christopher parou.

-Bem, eu vou entrar por essa rua. Você vem?

Pensei. Eu poderia ir, sim, e depois virar à direita e ir para a minha casa, pela Rua Hicktory.

 Mas eu não faria aquilo. Eu estava comprometida com minha missão de esquecer as coisas bizarras. Já era fora, MUITO fora do plano estar andando com Christopher, quanto mais me arriscar a ir à casa estranha, e ainda – como eu sou muito sortuda - dar de cara com a garotinha dos olhos verdes que morava lá. Não. Eu iria direto mesmo.

-Ah, não. Hoje não, eu vou reto mesmo.

-Ah... tudo bem.

Eu iria me virar e continuar andando, mas antes que tivesse tirado todo o pé do chão ele me chamou de novo.

-É... Agatha?

-Hum? O que? – por que eu ficava nervosa quando ele me chamava? Hem?

-Bem... quando agente passou pela escola, eu me lembrei de uma coisa.

-O que?

-Eu perdi quase uma semana inteira de aula, e nos dois somos do primeiro ano, então... – ele engoliu em seco enquanto eu procurava ar pra respirar – será que segunda-feira você pode me encontrar no pátio da escola umas quinze pras sete? Assim eu posso ver seu caderno.

Encontrei ar, por fim.

-Ah... s-segunda?

-É, segunda.

-É... segunda... sim! Segunda, sim! Posso. – embora eu tentasse parecer normal, acho que não deu certo.

Ele sorriu, por fim, e disse:

-Tudo bem, então. Obrigada e... até lá.

-A-até...

Começamos a andar e, subitamente, um temor me assaltou: e se mais uma vez ele não fosse? E se ele não estivesse lá, de novo? Eu já podia ter certeza de que ficaria esperando feito louca o fim de semana passar, imaginando que ele estaria lá. Mas, eu deveria fazer aquilo? Deveria imaginar? Alimentar esperanças? -  Meu Deus, esperanças de que?  - Conseguiria eu não imaginar? Achei impossível.

Então, como se estivéssemos conectados, ele me chamou mais uma vez:

-Agatha!

Virei-me para vê-lo, já estávamos quase fora do alcance de vista um do outro, graças a casa na esquina, e ele gritou, apontando pra mim:

-Segunda, hein? Não esquece! Dessa vez eu estarei lá! – e sumiu.

Cambaleei pra casa, vacilante.

Meu Deus, eu queria esquecer!

Ou não?