Preces de mãe

            Meu nome é Marta Hudson e eu tenho sido a senhoria de Sherlock Holmes há mais de nove anos. Proprietária da casa de Baker Street, 221B, quando a abri para aluguel após a morte de meu marido como forma de manter uma renda, jamais pensei que alguém tão excêntrico fosse passar pela soleira.

            Sendo dono de uma aparência e maneiras peculiares, pode-se afirmar com certeza que muitos outros senhorios de Londres iriam recusar uma proposta de alguém como o senhor Holmes, contudo, ao chegar até mim com o Dr.Watson como colega de apartamento, eu ignorava sua real natureza. Embora ele pagasse tudo primorosamente e em dia, às vezes mais do que o necessário, Sherlock Holmes estava longe de ser o inquilino ideal.

            Dentre suas manias mais extravagantes listam-se: acordar em horários variados, apesar de não ser uma pessoa muito matinal e dormir com a mesma inconstância de tempo, praticar seu violino quando bem entende, guardar compostos mal cheirosos e suspeitos dentro de um dos quartos do apartamento e utilizar minha sala de estar como sala de consultas. De fato, ele nunca me avisara sobre sua profissão, embora àquela altura eu achasse que ele possuía alguma relação estranha com a medicina ou então com a química, logo, fiquei completamente abismada ao descobrir que se tratava de um detetive particular e que aquelas quinquilharias lhe eram caras como um hobbie.

            O Dr.Watson, como bem me lembro, a princípio, também se mostrou preocupado com as atitudes de seu colega. Sendo que passara muito tempo afastado de Londres e que na época estava voltando a se fixar na cidade, deveria estar tão amedrontado com seu vizinho quanto eu. Contudo, ambos tivemos chance para nos acostumarmos com Sherlock Holmes, e com o tempo, passei a admirá-lo profundamente. Possuía extremo talento para lidar com as pessoas, embora resolvesse praticar tiro ao alvo uma vez ou outra dentro de casa, o que me chateia ainda hoje, e sempre me tratou com muita delicadeza, dizendo ter-me em alta conta.

            Sua saúde já foi motivo de preocupação mais de uma vez nessa casa, mas com sorte podia-se contar com o Dr. Watson para resolver o problema, o único médico em que ambos confiamos quando se trata de sua delicada condição. E embora ele sempre trata-se o sexo feminino com polida educação, preocupava-me o fato de ele nunca parecer se envolver com nenhuma senhorita ou sequer demonstrar estar interessado por alguma. Contudo, isso foi antes da senhorita Anne entrar em nossas vidas.

            Ainda hoje lembro-me de quando ela chegou, assustada, extremamente infeliz pela perda de seus pais. No começo, o senhor Holmes com a mesma gentileza com a qual me tratava, quer dizer, isso até a senhorita Anne começar a mostrar o tipo de garota que era. Com uma mente tão obstinada e uma língua ferina, era de se esperar que meu inquilino ficasse tão chateado com a presença dela. Contudo, eu sabia que aqueles modos provocativos e reprovadores escondiam a grande admiração que sentia pela jovem. Anne sempre foi especial aos olhos deles, mas para o senhor Holmes ela se sobressaía até mais do que aquela tal senhorita Adler.

            Recordo-me de certa vez pegá-lo admirando-a retirar as cinzas da lareira sem preocupar-se com a sujeira que se acumulava em seus dedos e nos cabelos, sorria consigo mesmo por descobrir que ela não tinha medo do trabalho pesado, e mesmo que gritasse com ela quando descobria que estava mexendo em seu arsenal, aquilo parecia agradá-lo imensamente, digo, como se ele negasse aquilo a ela para instigá-la a procurá-lo mais vezes. Eternas discussões, trocas de farpas, já presenciei entre os dois, torcendo em meu íntimo para que se ajustassem. Que belo casal formam, e no final, meu desejo acabou se realizando.  

            Nunca ninguém jamais poderia ter uma dupla mais apaixonada e entregues à paixão mútua como o casal de Baker Street. Mesmo que as discussões ainda continuassem, imagino que foi assim que ela exigiu, a senhorita Anne nunca me pareceu ser o tipo de mulher que tentaria fugir de uma briga com o marido. Na verdade, acredito que ela as estimula ao implicar demasiadamente com o senhor Holmes. Uma cena inesquecível foi aquela do pega-pega dentro de casa, que acabou com um beijo e uma conversa civilizada de frente ao fogo.

            Havia momentos em que passavam dias sem se falar, pois o senhor Holmes nunca perdera seu hábito de se trancar no laboratório e ela aprendeu a conviver com isso, uma mulher bastante elegante, a senhorita Anne. Rude quando precisa ser, mas sensível, embora tente esconder. Completamente devota às artes de seu esposo e inteiramente disposta a entregar-se completamente a ele quando procurava por ela. Muito lamento que ainda não tenham filhos, pois seria mais uma visão encantadora. Entretanto, desde a falsa morte do senhor Holmes eles têm passado ainda mais tempo juntos, ouso dizer que virá a acontecer mais cedo ou mais tarde.

            Eles nunca comentam o assunto, e eu acho que ela não comenta por não saber o que ele acha disso e ele não comenta por não querer parecer que não os deseja. Quanto a mim, fico dividida no meio desse campo minado diariamente, apenas rezando para acontecer na hora certa... que para alguém com tantos inimigos como o senhor Holmes pode nunca acontecer. Ainda assim é realmente uma pena. Ouso dizer que isso é o único alicerce que falta para que se firme a felicidade do casal de Baker Street.

            _ HOLMES! – a voz da senhorita Anne ecoa pela casa emitindo esse nome ao menos quinze vezes ao dia, e por razões distintas. A princípio, eu subia correndo para ver se algo ruim estava acontecendo, mas ultimamente tenho deixado para que eles resolvam sozinhos.

            Há tempos cheguei a conclusão de que se o casal Holmes não consegue resolver, ninguém mais conseguirá.