A Ilha De Circe: Fênix escrita por Daughter of Apollo


Capítulo 28
O General derrotado


Notas iniciais do capítulo

Primeiro, há três músicas que compõem o capítulo, escolham a que vocês acharem que combina melhor. Vocês podem ouvir quando Ariella aparecer na celebração, acho que vai ajudar vocês a entrarem no clima:
https://www.facebook.com/video.php?v=10152597715660143 ou

https://www.youtube.com/watch?v=3-4l2RrezZc ou

https://www.youtube.com/watch?v=_wwg5RM6Gn0



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/356048/chapter/28

Leecher

Ariella coçou os olhos, tentando apagar a cor que havia neles, ou ver com seus próprios dedos, já que não havia espelhos ali. Seu rosto estava coberto de sangue, e havia também em seus lábios e num corte acima de seu olho esquerdo. A pele estava vermelha e esfolada.

Ela estava tão linda que eu tive que sorrir.

– O que foi dessa vez? Ganhei chifres?

Ri com o nervosismo dela, isso a fez semicerrar os olhos pra mim.

– Não, nada, é que você ficou mais tranquila na hora da luta que agora.

Ela suspirou e fechou os olhos por um momento. Depois os abriu novamente, e lá estava o azul vazio que eu conhecia. Só que, desta vez, não estavam mais tão vazios. E, ao ver a expressão dela, talvez aquela não fosse a primeira vez que acontecia.

– É, tem razão.

– Algo para me contar, Ari?

Ela negou com a cabeça. Seu olhar foi para o chão, onde nossos pés estavam molhados. Mais adiante havia uma ponte minúscula, atravessando o pequeno riacho. Depois da ponte havia um chão de pedra ornamentada e cheia de arabescos esculpidos, coloridos em tons de azul, vermelho e branco. Olhei para aquilo, estranhando que aquilo estivesse no meio do deserto, até que virei para trás e notei o palácio gigantesco que se erguia.

Era uma mistura grega e árabe, com colunas frisadas e torres com aquelas formas pontudas e coloridas. Ele se estendia até bem distante, com guardas nas ameias, mas nenhum muro que faria um bom trabalho de proteção. As pedras brilhavam mesmo na noite com cores delicadas e vibrantes. Flâmulas tremulavam nas torres.

– Acho que encontramos a corte de Dionísio.

Ari perscrutou o lugar, franzindo o cenho, e disse:

– Não sei, parece estranho.

– Por quê?

Ela deu de ombros:

– Eu esperava pessoas gritando, uma festa gigante, vinho saindo pelas janelas e um pouco de violência. Porém, está tão...

– Quieto?

– Isso.

Esfreguei as mãos, sentindo os arranhões de nós dois.

– Bem, vamos em frente?

Guardei a espada e já íamos andando, quando apareceu um cortejo vindo do grande portão dos muros. Eram na maioria mulheres em túnicas coloridas e simples ou aquelas roupas árabes de cores vibrantes e cheias de ouro. Haviam dois soldados com roupas apenas cerimoniais, lanças que nem foram afiadas. Criados carregavam tochas brilhantes.

Eles ladeavam um homem com uma túnica cujo tecido branco descia por seu ombro esquerdo, mal cobrindo o tórax, e envolvia suas pernas. Ele ostentava uma coroa de louros nos cabelos cacheados e um cetro de galho envolvido em folhas de parreira.

Nós atravessamos o rio e paramos na estrada de pedras que nos levaria até eles. O séquito parou na nossa frente. Assenti para Ariella e nos ajoelhamos para o deus. Dionísio sorriu. As mulheres carregavam cestos com pétalas de flores e jogavam por onde ele passava.

– Bem vindos, guerreiros, bem vindos!

– Muito obrigada, poderoso Dionísio – disse Ariella com voz austera e delicada. Havia sangue manchando seu cabelo loiro. E percebi que, em algum lugar do labirinto, eu perdera meu escudo, pois minhas costas ardiam onde o peitoral da armadura fora rasgado em algum lugar.

– Ora, ora, levantem-se! – Eu esperava que o deus do vinho estivesse bêbado, mas ele estava lúcido. Seu cabelo cacheado balançou quando ele sacudiu a cabeça, como se estivesse um pouco alucinado. Certo, retiro o que disse sobre ele estar lúcido. Talvez um pouco.

Obedecemos, relutantes. Tomei a palavra:

– Senhor, viemos aqui a mando da Senhora Ártemis, Poderosa Deusa das Caçadas, em prol que nos entregue a arma que a Senhora Ártemis informou estar aqui, claro, em troca do tributo adequado.

Ele assentiu, animado. Ariella franziu o cenho, um tanto preocupada e intrigada.

– Sim, sim, eu vejo isso, eu sei disso. – Qual era a tendência a repetir as expressões? – Eu vejo pela marca dela em vocês. Aliás, podem abandonar a fala formal e tediosa que usam com os demais deuses. Não estou me importando muito com ela no momento. Também estou ciente da arma, porém acredito que por hora vocês devem apenas entrar e descansar. São meus convidados de honra!

– Senhor – disse eu – Poderia ao menos nos informar que espécie de tributo nos é esperado?

Ele sorriu com dentes brilhantes e olhou para Ariella.

– Ah, Guerreiro, essa tarefa caberá inteiramente a nossa leoazinha.

Ariella iria questionar, mas foi interrompida.

– Agora não. Vamos, meus criados estão preparados para levar Leecher a seus aposentos e cuidá-lo. Quanto a Ariella, gostaria de conversar com ela, antes que se retire.

– Mas senhor Dionísio – ela protestou – Leecher e eu não podemos nos separar longas distâncias.

Ele estudou nossos rostos com interesse. Seus olhos – cor de vinho? – Brilhavam de curiosidade.

– Interessante. Talvez fosse coincidência suas faces ostentarem as mesmas marcas, mas consigo sentir o cheiro da Ligação. Verdadeiramente, não irei quebrá-la, no entanto, posso anular a magia que impede que se distanciem. Agora vamos.

Notei que ele disse não irei quebrá-la em vez de não posso quebrá-la. E também olhou para Ariella como se quisesse dar-lhe a tarefa de saltar de um penhasco. Fiquei um pouco incomodado. Não queria que se ferisse. E, maldição, isso aconteceu muito naquele labirinto. Principalmente quando aquele bicho quase enfiara as garras no pescoço dela.

Enfim, dei de ombros. O séquito deu meia-volta e o seguimos. Ao passarmos pelos arcos do palácio, Dionísio deu ordem para que três servas com véus pesados levassem-me até meus aposentos. Soldados me fitavam das ameias, desconfiados. As cores não eram tão bonitas à noite. Ariella lançou-me um último olhar, como se perguntasse Você vai ficar bem? E eu respondi Sim com os olhos. Senti que ela queria perguntar como eu conseguira me guiar no labirinto, mas teríamos que esperar.

Notei que ela segurava aquele coelho nos braços, antes de se virar e ir com Dionísio, sozinha, numa direção oposta.

Bem, vamos lá. Se eu podia enfrentar uma horda de inimigos sozinho com uma faca do tamanho da minha mão, podia enfrentar duas criadas tentado me ajudar a fazer qualquer coisa.

Seguimos por corredor, evitando o salão principal. O lugar estava silencioso, as pedras pálidas pouco brilhando ao luar. Tochas iluminavam o caminho, dando vida às tapeçarias orientais com cores picantes e outros empregados que passavam. Estava tudo tão terrivelmente limpo e decorado que eu juraria que estavam preparando algum tipo de festa.

Dois empregados abriram um par grande de portas de madeira entalhada, levando-me ao maior quarto em que eu já havia estado. Caberiam cinco das barracas de exército reais ali dentro. Havia uma cama enorme coberta de ricas peles e tecidos de cor neutra. Divãs cobriam a parte da direita, ladeado por tapetes tecidos por artesãos. Braseiros – inutilizados – enfeitavam em pontos estratégicos. Uma parte do quarto, perto dos divãs, era fechada com uma cortina. Imaginei que fosse a área de banho. Uma mesa ladeada de cadeiras cobria um canto e um suporte de armas chamou minha atenção na parede.

Ariella poderia lidar com os próprios problemas sozinha.

Uma das criadas acendeu os braseiros e a outra me empurrou para perto de uma tina atrás da cortina. Ela começou a tirar a espada da minha mão e o peitoral da minha armadura, mas, depois de minha insistência em afastá-la e não deixar que tocasse minha espada, ela se contentou em jogar sais aromáticos na água da tina, à contra gosto. Ela se vestia como se um dia tivesse resolvido que nenhuma parte de seu corpo devia ser vista inteiramente, só através do tecido um pouco transparente do véu verde.

Depois de preparar a água, a serviçal saiu sem dar uma palavra e deixou que eu me despisse totalmente e entrasse na água – e quando fiz quase me arrependi, pois minha pele estava tão esfolada e arranhada que cada canto do meu corpo ardeu terrivelmente. Que maldição.

Fui tirando a areia do corpo e esfregando com óleos que as criadas me alcançavam. Elas então colocaram alguma coisa para dentro da tina e os cortes pararam de doer. Quando já estava devidamente limpo, sequei-me e vesti a túnica simples de bordas douradas que me foi oferecida. As servas abriram um pouco uma das grandes cortinas que antes eu não havia percebido. Levava a uma grande sacada.

Não tomei interesse pela paisagem. Estava tão cansado que a única coisa que me interessava era a cama. A noite do deserto era muito fria, e eu já sentia os efeitos em minha pele. Joguei-me entre os tecidos e peles. As criadas, sem dizer nada, sopraram algumas lâmpadas e se foram.

A água é fria contra minha pele quente. Borbulha deliciosamente nas palmas de minhas mãos. Estou inundado até a cintura, um pouco além.

Meus sentidos me alertam. Uma pétala macia toca minha mão. Ela é delicada. Há flores cor-de-rosa na água. Não sei o nome delas. Não conheço muitas flores.

Lírio. Há alguém que conheço que é harmonioso como um lírio. Há algum tipo de beleza nela.

Ouço um barulho. Ela esta ali na frente, de costas para mim. Seus cabelos são longos. Boiam na água. Um leque de luz do sol. Há névoa à nossa volta.

Ela vira o rosto e sorri para mim. Luz nunca foi tão luminosa. Ela pega uma das flores cor-de-rosa nas mãos e a beija levemente. Ariella. Lírio. Perfumada. Harmoniosa.

Linda.

Olho para minhas mãos. Preciso ter coragem, preciso fazer. Preciso superar esse medo arrasador. Ela se vira de costas novamente. Aproximo-me, calmamente. Ela sabe que vou me aproximar. Toco seu ombro. Macio. Quente. Acaricio seu cabelo.

Preciso ter coragem, preciso ter coragem.

Ela se vira, o azul brilha, seu sorriso encanta. Então, ela arregala os olhos. Mira baixo, para minha mão, a faca enterrada em seu ventre.

Sangue mancha a água, o sangue se espalha pela água como veneno. Minha mão enfia a lâmina mais fundo. Ela me fita, incrédula, coberta de sangue.

Eu tenho coragem. Tenho coragem.

=//=

Na manhã seguinte, acordei pensando em como era estranho dormir em uma cama tão tremendamente confortável. Claro, passáramos dias dormindo nos aposentos oferecidos por Castor, e aquilo era muito bom, mas era uma cama de soldado. Aquela ali era a cama de um rei, ou algo muito próximo disso. Não me senti exatamente... Bem.

Vesti-me com o chitón simples, mas as criadas já entravam no quarto e preparavam uma série de coisas que eu não sabia para quê serviam. Uma vestimenta cerimonial, supus.

– Com licença - Pedi a uma delas. Por baixo do véu esverdeado, era morena e tinha sobrancelhas grossas e rosto pontudo - Sabe onde posso encontrar a garota que veio junto comigo?

– Ela deve estar no Gineceu, não pode entrar lá - Ela falava com uma voz doce e rápida e cheia de sotaque - Mas pode mandar um bilhete através de uma criada, ou um recado, caso não seja de cunho tão pessoal e ela não saiba escrever. Ou o senhor poderia esperar no pátio. A senhora Ariella parece do tipo irrequieta e não gosta de ficar em um lugar só.

Peguei-me sorrindo para o nada.

– É mesmo, não é?

Um brilho de compreensão passou em seus olhos um instante. A criada abriu um sorriso como se houvesse entendido tudo. Era visível mesmo atrás do véu.

– De qualquer forma - Ela continuou - O senhor a verá nas comemorações desta tarde, após a refeição do meio-dia. Nós o aprontaremos para se encontrar com ela.

– Certo - Dei de ombros para aparentar despreocupação - Então eu vou conhecer o pátio daqui a pouco.

– Posso acompanhá-lo se quiser uma guia ou companhia, meu senhor.

– Não, obrigado.

Ela assentiu e voltou a seus afazeres. Fui até a sacada, pensando no caminho que teria que seguir para chegar ao pátio lá embaixo, e vi um lampejo loiro e branco - e descalço - andando apressadamente na direção das portas de um templo.

Desci rapidamente as escadas e cheguei ao pátio que observei. Era a parte nobre do palácio, onde um jardim suspenso nos saudava do alto e não havia areia de deserto. Senti a presença de Ariella por perto e segui até onde achava que estava. Uma área cercada de colunas gregas e fechada por paredes internas apareceu diante de mim - não havia ninguém por perto, mas fiquei quieto ao me aproximar. E com razão: Logo ouvi a inconfundível voz de Dionísio.

– Sei que vai conseguir fazer isso, Ari - ele falava com ternura - É um dos passos para o seu futuro e o seu passado. Isso aconteceu há muito tempo atrás, e você ainda não seguiu em frente. Está na hora de enterrá-los, e você sabe como. Quero isso de você. Será parte do seu tributo a mim. Sem isso, não avançará muito, nem aqui, nem em sua jornada, nem com ele.

Ouvi ela suspirar e voltei-me para trás. Aquele assunto não dizia a mim e estava claro que se tratava da família dela. Suspirei e fui andando.

Cinco segundos depois, Ariella abriu a porta e saiu, o cabelo longo preso em uma trança fez com que se parecesse mais com uma leoa do que estando solto. Ela carregava Nathán nos braços e mantinha uma expressão sombria. Um brilho prateado chamou minha atenção. Algo como uma lâmina pequena, um punhal, que ela levava preso na cintura da túnica.

Ela não me viu perto dali. Observei-a desaparecer nas esquinas da construção e fui para o outro lado, em direção ao jardim de estátuas que me chamara a atenção.

Sentei-me à beira de uma fonte por alguns instantes com uma estátua de anjo. O lugar era cercado de flores e outras estátuas - deuses, ninfas, pessoas, guerreiros - e a água fluía por baixo daquele ser alado. Criados me observavam ao longe. Estava determinado a pensar em todas as informações que recebera ao longo do tempo em que fiquei com Ariella. Tentando pensar em estratégias, em planos. Até mesmo no tempo de antes, quando ainda não conhecia Ari e apenas planejava uma vingança contra os deuses que haviam matado minha família - não só minha família, mas uma cidade inteira e muitas outras. Pensavam que só porque o poder foi dado a eles que poderiam fazer o que quisessem. Não, não se pode fazer o que quiser com o poder. Se alguém fizer isso, merece ter esse poder tirado de si. No entanto, só conseguia pensar em Ariella, na faca e no coelho que ela carregava para longe. E nos momento que passamos juntos.

Meus machucados já haviam cicatrizado, graças a alguma magia de cura. Era estranho pensar que, durante dias, estar longe de Ariella, me livrar dela, era tudo o que eu desejava, e agora que isso em parte se realizava, eu me sentisse terrivelmente sozinho. Não simplesmente sozinho, quer dizer, solitário. Aquele jardim era como a minha vida. Cheia de estátuas de olhos vazios. Nada a que eu pudesse ou quisesse me apegar.

Ariella me apresentara a possibilidade não viver daquela forma, todavia, aquela era a vida que eu havia construído. Não poderia voltar atrás.

Cobri o rosto com as mãos e coloquei a cabeça apoiada nos joelhos. Através do tecido eu sentia minhas cicatrizes. Um lamento baixo soou pela minha garganta. Eu nem sabia que era capaz de produzir um som assim, não depois do que presenciei há tanto tempo. Foram muitos anos de guerra desde então. Sempre guerra, sempre uma luta, sempre uma batalha. Uma vitória, uma derrota, e então duas vitórias.

Levantei uma cabeça. Não queria pensar naquilo. Não queria nem pensar em estratégias. Ou no exército que estava marchando para o Olimpo, ou o ataque que Esparta sofreu depois que partimos, ou o Lobo que eu havia derrotado, ou um ferimento na costela, ou uma floresta envenenada, ou em um ataque malfadado em Atenas.

Na verdade, eu não pensaria em Estratégias. Não pensaria em onde isso daria. Francamente, eu estava ajudando uma garota a conseguir a arma que me impediria de derrubar os deuses para sempre. Por mais que fosse nobre, não era errado? Eu não estava traindo alguém?

Suspirei. Eu era a imagem do General derrotado. Derrotado por uma feiticeira. Uma elementalista e curandeira. Mas, definitivamente, derrotado.

Um barulho chamou minha atenção. Era a criada do véu verde. Pela primeira vez percebi as nuances douradas nas bordas costuradas por ele.

– Meu senhor, venho chamá-lo para a refeição. Ela acontecerá em seu quarto, para que possamos prepará-lo mais rapidamente e com mais eficácia.

– Preparar-me?

– Sim - Ela se aproximou. Parecia ser jovem, talvez da idade da Ariella. - Vamos prepará-lo para a festividade. Venha, meu senhor.

Segui-a de volta para dentro do suntuoso palácio. Novamente entramos por qualquer caminho lateral e percorremos os corredores e escadas cercados por tapeçarias. Já no quarto, elas me apresentaram as roupas que eu usaria.

Eram diferentes de tudo o que eu já havia vestido. Para começar, eram árabes. A coisa constituía-se de calças largas negras e uma túnica também negra. Um colete vermelho e dourado iria por cima da túnica, que seria presa à calça por um cinto largo semelhante ao colete. Os sapatos eram dourados e tinham as pontas voltadas para cima - cabiam e moldavam-se perfeitamente aos meus pés. Dispensei o adorno para a cabeça, sabendo que ficaria ridículo nele, mas aceitei a espada curva ornamental, dourada e cheia de arabescos no cabo, que me foi oferecida.

Depois de banhar-me novamente, as cridas vestiram-me naquilo. Não ficava ruim, na verdade.

Suspirei. Elas trouxeram a comida em pratos separados. Não havia talheres, porém lembrei-me de comer com a mão direita. Onde isso era costume? Índia? Aqui também seria? A comida tinha gosto picante e estava muito boa. Não toquei muito nela. Afastei-me da mesa e fui em direção à sacada. Aquela roupa causava muito calor à luz do sol, mas não quis me afastar dali. A vista das dunas ao longe me lembrava dela. E havia algo mais, uma outra construção, muito, muito distante na areia. Da minha posição eu só conseguia ver alguns muros de pedra.

– Senhor? - Chamou a voz familiar da criada - Está incomodado com algo? A refeição não lhe fez bem?

– Não...anh... - Percebi que não sabia o nome dela. - Qual o seu nome?

– Anuragi, senhor. - Ela respondeu, espantada por eu haver perguntado.

– Não, Anuragi, estava tudo perfeito. Eu só não estou com apetite.

– Está ansioso em relação à senhora Ariella?

– Sim, Anuragi. - Respondi, não pouco surpreso com minha própria honestidade e por ter admitido. Não, confessado seria uma palavra melhor.

– Bem, o senhor a ama?

Não respondi, o que a fez repensar a pergunta. Ela tentou outra vez.

– O senhor sabe sobre o beijo?

– Como assim? - Questionei. Lembranças de mães com filhos nos braços me vieram à mente. Seus rostos finos beijando as faces rosadas de seus filhos.

– O beijo. Claramente o senhor conhece. Não é um costume entre o seu povo, não é? Mas eu vim da Índia, e lá é comum entre marido e mulher. Entre amantes. Nunca fiquei noiva, porém, sou levada a crer que é uma confissão de duas pessoas que se amam. Ou uma confissão qualquer. Bem, é isso. Mais tarde o senhor compreenderá.

Ela se retirou e fiquei disposto a simplesmente estar ali. Meu coração batia forte. Estava começando a suar, por isso voltei para dentro e lavei o rosto. Uma leve penugem cobria meu queixo, eu não gostava, mas elas me forçaram a deixar ali.

Depois de algum tempo, fui chamado por Anuragi. Ela abriu as portas e disse:

– Agora é a hora de irmos, senhor. Não se esqueça de ficar perto do trono do Senhor Dionísio. Ariella entrará logo em seguida. Espere... Bem, espere a situação se acalmar para se aproximar dela. E bata palmas quando a música estiver tocando. E não se esqueça de beber ou comer alguma coisa, pois o senhor Dionísio ficará honrado.

Assenti, agora ligeiramente nervoso. As criadas empurraram-me até diante de um portal gigantesco. O salão principal, presumi. Músicas de tamborins chegavam aos meus ouvidos, junto do som de risos, conversas e até gritos de prazer. Batidas de pés marcavam uma dança. Do outro lado, eu via colunas de ouro e tapeçarias vermelhas. Criados e mesas com comidas e bebidas. Divãs, na parte mais afastada para a esquerda e - mais além - um tablado com o trono dourado e incrustado de parreiras do senhor Dionísio.

Alguém anunciou minha presença. A música parou:

– O General Leecher, das Terras da Grécia!

Entrei, decido, no salão. Era como qualquer guerra, pensei. Era como a hora em eu precisava dizer algo que inspirasse meus homens, mesmo se a situação não fosse promissora. Eu tinha que ser firme - e foi isso que fiz, fui firme. Entrei e a multidão abriu espaço pra eu passar. Dirigi-me calmamente, relaxadamente até o altar do deus. Ele sorriu ao me ver. Fiz a ele uma reverência em sinal de respeito.

As conversas foram retomadas tranquilamente. Dionísio vestia uma túnica branca que cobria apenas a parte de baixo de seu corpo. As bordas eram ornamentadas em violeta e dourado. Ele trazia uma coroa de louros e o cajado de parreira. Tinha uma taça de ouro e rubis na mão esquerda, que erguia sempre que alguém lhe trazia um cumprimento animado.

Postei-me ao lado de seu trono, sem nada a fazer, esperando que Ariella entrasse.

– Gostaria de me perguntar alguma coisa, Leecher? - A voz jovial de Dionísio preencheu meus ouvidos. Ele era jovem, talvez de uns vinte anos. Os cabelos cacheados caíam um pouco na face.

– Na verdade, senhor, estou curioso. - Ele instigou-me a continuar - O que um deus grego faz tão longe no deserto, misturado aos povos do oriente?

– Excelente pergunta, mas não era a que eu esperava - Ele disse - Veja bem, general. As coisas estão feias lá na Grécia. Na verdade, estão feias próxima daqui também. Hesbom foi destruída. Jericó. Hebrom. Seom. E muitas outras. E você sabe que eu não sou um deus de guerra. Na verdade, bem longe disso. E não tinha nada a que ajudar lá fora.

– Mas o mundo pode ser destruído e você não vai fazer nada? Eles podem até atacar esse palácio, não é muito bem protegido.

Percebi que meu tom podia ser dado como insolência, mas o deus não prestou atenção nisso. Estava com os ombros um pouco caídos.

– Eles não vão chegar aqui. Há o Labirinto e as barreiras mágicas. Eu não sei lutar, de qualquer forma. E estarei em qualquer lugar longe de batalhas. Vou onde há riso. Ou júbilo. Observe essas pessoas. Essas moças das terras distantes da Índia. Suas vidas são difíceis, miseráveis, ainda mais em meio ao deserto, e mesmo assim elas encontram o júbilo e festejam. Talvez seja isso que você deva fazer também. Não se pode lutar para sempre, ou em todo o tempo.

Absorvi as palavras que ele dissera, realmente pegando apenas a parte que ele afirmara que não chegariam ali por causa do labirinto. Bem, se eu atravessei, o que impediria outras pessoas de atravessar? E os muros são tão pouco protegidos. Deviam erguer pedras - e torres e... Tentei conter o desprezo que me contaminava. Não seria prudente demonstrá-lo para o deus. Algum dia, quem sabe, com ele desparecendo aos poucos...

Ele tinha razão em um ponto. Não se podia lutar o tempo todo. Porém Dionísio pecara em algo - ele pensara que, esquecendo-se do perigo, o perigo se esqueceria dele. Acontecia bem pelo contrário.

– Compreendo - Respondi, por fim.

– Além do mais - Ele continuou - Estou ajudando sim. Sou eu quem possui a arma da sua leoazinha.

– Mas vai dá-la em troca de um tributo.

Ele negou.

– Tudo tem um preço. E ela precisa passar por isso. Vai ajudá-la no que virá a seguir. E sou levado a acreditar que você vai aproveitar.

Fiquei quieto. O que ela faria? O que ela precisaria fazer?

Então, a música parou. E recomeçou, num ritmo familiar. Um ritmo de tamborins e instrumentos de cordas. Um ritmo como o arrastar e espiralar de uma serpente, um ritmo do deserto, dançante. Lento, intoxicante, viciante, adornado de gritos e vivas em alguns pontos.

Ao mesmo tempo que isso acontecia, era anunciado:

– Recebam as dançarinas e a Senhora Ariella, da Ilha de Circe!

Ao ouvir isso, não pensei no que ocorreria a seguir. Aliás, nunca seria capaz de imaginar. Nem em meus sonhos mais loucos. Qualquer um nem duvidaria: Ariella iria entrar junto das dançarinas. Ariella - separado - dançarinas. Nenhuma ligação entre esses termos ou pessoas a não ser que entrariam ao mesmo tempo no salão de festas.

Ao contrário. E repito que, nem em meus sonhos mais loucos, imaginaria Ariella adentrando aquele salão, logo atrás de quatro garotas de vermelho, o corpo respondendo ao som da música.

Só depois de um tempo, quando reavivei minhas lembranças, é que percebi os detalhas. As dançarinas com saias vermelhas e douradas estavam cobertas de joias e usavam bustiês cintilantes. Pulseiras enfeitavam seus braços e seus tornozelos vibravam suas tornozeleiras. Brincos parecendo pesados pendiam de suas orelhas, dourados. Seus olhos estavam delineados. Elas vestiam coisas diferentes, mas era o mesmo padrão: Vermelho e joias douradas.

É claro que não percebi isso na hora. Na verdade, nem sei como percebi isso depois. Logo atrás delas, vinha Ari, os olhos delineados faiscando como raios e o cabelo ondulando como fios de ouro. Vestia branco e dourado. Joias enfeitavam sua cintura. E, chocado, percebi que ela também vestia um bustiê de ouro, e que eu nunca a vira com tão pouca roupa. Rubis coroavam seus cabelos e braceletes em seus pulsos.

Choquei-me ainda mais quando - pasmem! - ela gingou até o centro do salão e suas pernas eram quase completamente visíveis sob as fendas do tecido.

Minha frequência cardíaca poderia muito bem ser o galopar veloz de um cavalo quando a música se intensificou e ela dançou exatamente no ritmo. Suas curvas moldaram-se à música, e seus pés posicionaram-se perfeitamente. Lembrei-me vagamente de Anuragi mandar que eu batesse palmas juntos dos demais. Obedeci.

Seus olhos encontraram os meus. Eu os sustentei, e ela não parou de olhar para mim. Enquanto dançava, os olhos de todos estavam nela, inclusive os de Dionísio, mas ela sempre voltava o olhar para mim. Sempre. Enquanto girava, seus pés tocavam o chão com leveza, seu ventre ondulava, suas mãos subiam e desciam - ela não estava dançando para mais ninguém. Ela não estava dançando para Dionísio. Estava dançando para mim.

Um tecido dourado estava preso em seus pulsos, formando asas que flutuavam ao seu redor. Ela posicionou as asas à frente do corpo, de forma que os escondesse, mas destacasse as ondas que se formavam enquanto Ariella se movia como uma serpente. Ela então baixou as asas e balançou o quadril. As joias tintilaram e brilharam. Ela sorria. Aquilo era tão intenso. Eu sentia que ela fazia aquilo porque queria. Ela gostava. Tudo que ela sentia, sua tristeza, sua alegria, sua ansiedade, sua intensidade, seu amor, estava ali.

Ela dançava como uma árabe, claro, porém havia algo de grego ali - a harmonia e calma dos movimentos, as cores à medida que ela passeava em posições de adoração, as mãos para cima ondulando como uma serpente.

E havia mesmo uma serpente - viva, enrolada em sua perna esquerda. Como não notei antes?

Minha boca ficou seca. Era arrebatador. Sua forma, seus passos, tudo me chamava. Seus sorrisos e olhares. Eu precisava ir até lá, precisava ir até ela, provar de seus lábios, tocar em suas mãos. Me aprofundar e cair em seus olhos. Como o brilho dos olhos de alguém poderia ser tão intenso? Como um sentimento, uma necessidade, poderia se provar tão forte como fogo?

O tecido dourado me envolvia. Flutuava a seu redor como uma aura.

A música lenta parou num rompante. Ariella despencou ao chão, prostrada, as asas à frente do corpo. Nem vi o que as outras dançarinas fizeram. Ela levantou as mãos, deixando as asas no chão. Seu cabelo, ouro. Seus lábios vermelhos.

A música de tamborim e a melodia aguda recomeçaram - dessa vez mais sedutora, chamativa, misteriosa. Pelos deuses, era intensa. Intensa como seu olhar. Ela balançou o quadril novamente, então inclinou-se para trás, formando uma onda - balançava os pés, o quadril e enfim o busto, cintilando em joias. Havia algumas tatuagens em seu ventre.

Ela sorria, como sorria, e como era intensa.

Como eu iria viver depois daquilo?

Ela enfim parou, bem no centro. E parecia extasiada, Ícaro ao encarar o sol voando tão alto. Ela fechou os olhos e colocou as mãos no lugar do coração.

Ela cantou.

Sua voz se elevou, afinada e doce, ao céu, como chamas em um incêndio. Quase caí de joelhos. Sua voz, muito melhor que seu riso, envolvendo meu ser em formas espiraladas. A melodia me atingiu mais forte que uma golpe de espada direto no coração. E foi mais forte que qualquer costela quebrada, que qualquer sopro de areia. Em nenhum daqueles momentos eu senti como se fosse desmaiar, ou como se fosse me render. Mas naquele... O canto me puxava direito para o precipício. Eu iria cair.

A música começou triste, depois passou a nuances esperançosas, duvidosas - em alguns momentos notas acompanhando as letras, depois palavras que não tinham sentido para mim. E assim, uma dúvida aflorou na melodia, que se tornou uma constatação, quase um chamado de amor.

E então, eu só tinha olhos para ela. O canto, os movimentos sincronizados, o ritmo, seu sorriso e seu lamento, diretamente para mim. As vibrações, a adoração, olhos faiscando escuros como o céu noturno, logo antes de o sol cair. Há quanto tempo eu não respirava?

Ela parou. Ouvi o som de palmas, Dionísio sorria. Ari respirava fundo. A multidão encheu o salão, rodeando-as, parabenizando-as. E, por mais alta que Ariella fosse, não consegui encontrá-la. Meus pés me forçaram a sair dali, eu precisava falar com ela. Droga. Eu precisava falar o que? Que aquela fora a coisa mais linda que eu já vira alguém fazer? Que nunca vi alguém usar de hipnose tão bem? Ela não necessitava mais confundir a mente dos homens com truques. Bastavam aquelas notas, fariam o necessário.

Encontrei-a mais na lateral após um tempo, longe dos olhos de todos, menos de um garoto que tentava conversar com ela. A serpente não estava mais em sua perna. Ariella assentia e sorria educadamente, mas sem dúvida não queria falar com ele. Ela viu que eu me aproximava - por que seus olhos brilhavam? - e se afastou do garoto instintivamente. Ele virou-se para trás e eu mandei meu melhor olhar de "Saia, agora". Ele se encolheu e saiu, com um "Adeus" dirigido a Ari.

– Leecher, eu... - Ela começou. Seus olhos arregalaram-se. Parecia assustada. Tão assustada. Mas o que assustaria Ariella? A Ariella que, mesmo diante de um lobo gigante ficou com cara de paisagem?

– Ari, aquilo foi tão...

– Ridículo? É, eu sei. Mas eu tinha que fazer, não tinha? Quer dizer, eu adoro dançar, é uma das coisas que não contei a você, porque achei que teria vergonha de mim. Uma guerreira, dançarina? Porém, eu não via outra forma de me expressar e, ás vezes, eu me sentia tão...

– Ari, calma. Aquilo foi incrível - assegurei-a. Tão próximo agora, seus olhos estavam mais brilhantes, mais cheios de vida que em qualquer outro momento eu vira. Tão diferente da Ariella que não demonstrava nada com olhos e, ao mesmo tempo, parecia mais natural a ela.

– Sério? Oh, Hécate, obrigada. Eu pensei que iria me fazer de boba.

Seriamente, olhei em seus olhos.

– Ari, pensei em muitas palavras para descrevê-la enquanto a assistia e garanto que boba não estava entre elas.

Ariella desviou os olhos e engoliu em seco. Deu pra ver a pele do pescoço brilhar com gotículas de suor. Ari não sentia calor, então eu só podia supor que aquilo era causado por outra coisa.

Quando eu me arrependia por ter dito o que disse, ela voltou os olhos para mim, determinada.

– Vamos lá fora.

– Mas o...

– Ele não vai se importar.

Pegou-me pela mão. Não era a primeira vez que dávamos as mãos, mas era a primeira vez que o fazíamos... Sem motivo. Aquele dia estava cheio de primeiras vezes. Eu a conhecia o suficiente para saber que, como eu, ela não faria aquilo sem motivo. Sem uma desculpa.

Saímos pelo portal e Ari tomou uma estradinha de cascalhos. Sua mão era quente, e, ou era impressão minha, ou ela realmente esquentava enquanto caminhávamos. A estrada seguia para a esquerda do palácio e dava numa parte desconhecida do jardim. Ao longe eu via a fonte do anjo em que eu me sentara mais cedo. Ariella andou para o meio jardim e parou junto a um pedestal tão alto que ultrapassava sua cintura. Mais acima, os olhos vazios da estátua gigante de uma mulher seminua nos contemplava. As únicas partes cobertas de seu corpo eram... Bem, aquelas partes.

Baixei os olhos para Ariella. Estava muito consciente dela, de seu calor, da maciez de sua pele. De seus olhos. De seus lábios abrindo e fechando. Fitei o ardor de sua expressão. Quando aquilo começara? Deuses, como aquilo começara? Como eu deixei que acontecesse? Como pude permitir?

– Ficastes muito bonito nessas vestimentas, General. - Disse ela, com um sorriso no rosto.

Respondi:

– Talvez ainda não tenhas olhado tua própria aparência, feiticeira. Isso sim, é algo bonito.

– Sorri para ela, mas meu sorriso desapareceu logo em seguida, junto com o dela.

– Leecher, eu...

– Eu não sei o que...

Calamo-nos simultaneamente. Suas mãos, lentamente, subiram pelo colete dourado que eu usava e repousaram ao redor de onde ficava meu coração. Como que pedindo permissão, meus dedos hesitaram. Em seguida, toquei a pele exposta de sua cintura, no caminho de suas tatuagens.

Estava quente.

Fui tomado por uma angústia. Havia algo a ser dito. Algo que eu precisava dizer a ela. Algo que eu queria dizer e não queria dizer. Algo que ela precisava me contar. Ariella abriu a boca e a fechou, e acho que cerrei os dentes para não gritar. Ela olhava baixo, o ponto onde suas mãos encontravam-me. Em segundos, nossas testas estavam apoiadas uma na outra, nossas respirações aceleradas misturando-se.

O que havia para ser dito? Como eu diria? Como eu confessaria?

Calei as perguntas, ciente de que, naquele momento, só havia uma delas, e não fui eu quem a fez:

–Tem certeza de que quer fazer isso, Lee? - Ariella perguntou de modo sóbrio, e eu sabia do que ela estava falando. De tudo que veio antes, de tudo que viria depois. Eu sabia das consequências tanto quanto elas. Eu estava disposto a me sacrificar? Ela estava disposta?

–Sim, eu tenho. Você tem?

–Agora sim.

Não saberia dizer se eu a beijei ou ela me beijou. Não saberia dizer quem deu o primeiro passo, ou se simplesmente nos envolvemos um com o outro ao mesmo tempo. Apertei as mãos em sua cintura, e ela puxou meu cabelo. Logo, nos beijávamos, e eu não lembrava de nenhum motivo para não estar ali. Ou por que não desejaria estar ali.

A boca dela era mais saborosa que qualquer coisa que eu já havia provado, e movia-se em sincronia com a minha. Seus lábios eram tão macios como toques de seda. Suas mãos puxaram meus cabelos com força, e eu puxei seu corpo mais de encontro ao meu. Como poderia haver distância? Era tão sublime, que eu sentia que aquilo me queimava por dentro. Que eu a desejava mais do que havia desejado qualquer coisa.

Oh, deuses, eu estava derrotado, completamente rendido, e Ariella fizera aquilo com um único beijo. Um toque daquela feiticeira deixou-me de joelhos. Eu não era mais o General Leecher, e nunca mais seria, eu poderia me pôr de joelhos que não faria diferença. Nunca mais faria diferença, porque eu nunca mais seria o mesmo. Não depois de ser queimado vivo, arder em chamas por causa dela. Ela tirou toda a minha força, e eu a entreguei a ela sem pensar - e entregaria mais mil vezes. Ela tirou minha armadura, minha espada, me deixou completamente vulnerável. E lá estava eu, exposto e indefeso diante de seu julgamento celestial.

Vulnerável. É, a palavra nunca se encaixara a mim antes, porque nunca ficara vulnerável a ninguém. Mas ela me via agora, como ninguém nunca tinha visto.

Nos separamos, respirando. Ariella arfava. Aquela era uma primeira vez para ela, também. Ela passeou os dedos por meu rosto. Não perguntei se aquilo fazia parte do tributo. Tinha medo da resposta, pois sabia a verdade.

Finja, só por enquanto. Finja que nada ao redor importa.

–O que nós fizemos, Ariella? - Questionei, em tom de derrota. Havíamos confessado.

–Eu não sei. Mas você não gostou?

–É claro que gostei. Na verdade, foi muito além de gostar.

–Eu sei -disse ela - Para mim também. Na verdade, é meu primeiro beijo.

Sorri em meio ao turbilhão de emoções:

–Tem certeza? Eu diria que foi muito bom para uma primeira vez.

–Sério? - Ela não pareceu entender que eu estava brincando - É, bem, é estranho, por causa dos meus votos e... Ah, entendi.

Senti que ela sorria também, boba. Fechei os olhos, inalando o aroma de sua respiração. Era picante e doce.

–O que são os votos? Aquilo que você disse a Ártemis?

–Algumas meninas em treinamento fazem os votos a Ártemis de que serão castas até a maioridade e prestarão culto a ela. Em troca, ela nos dá assistência e sabedoria, também força e um pouco de sua magia. Fiz os votos aos dez anos, junto de Ca e Dreah. Nós usávamos então a túnica com o selo prata, como a que eu usava na casa de Castor.

–Mas você me beijou agora, e Ártemis deu a entender que você ainda mantinha os votos.

–Sim, mas abri mão deles hoje de manhã.

–Então quer dizer que... Oh, feliz aniversário, Ari.

Ela sorriu novamente.

–Obrigada. Agora, vamos voltar lá para dentro? Há uma coisa que quero mostrar depois e, quanto antes acabarmos com isso, melhor.

Assenti. Senti que tinha uma ligação com ela. Seus olhos agora estavam apreensivos.

–Lee, antes de ir... Eu gostaria de saber se... Bem, você sabe o que o beijo significa para nós, quer dizer, da nossa cultura e bem, da minha...

–Se isso quer dizer que temos algum tipo de compromisso? Podemos dizer que sim. Agora que pensei melhor, vi que você vem me conquistando aos poucos desde que nos conhecemos, e que eu gostei disso. Gostei de você. E não quero perder isso. Quero ficar com você, Ari. Você me conquistou.

Seus olhos brilharam. Ela olhou para mim, um sorriso no rosto.

–Você me conquistou, também, guerreiro Leecher

Se ela soubesse a reação que tive interiormente, ou o que suas palavras provocaram, talvez não as tivesse dito. Talvez ela não soubesse que iria derreter por dentro, ou quase perder a respiração como se ela tivesse me beijado.

–Vamos - Puxei-a pela cintura - Vamos à celebração.

Ariella tinha uma taça de ouro nas mãos, e eu tinha outra. O vinho estava muito bom, mas eu não beberia muito. De seu trono, enquanto cantava alguma coisa muito festiva e ria, Dionísio de vez em quando nos mandava olhares maliciosos. Nós fingimos que não vimos. Quando adentramos o salão, fomos recebidos com flores jogadas em nossas cabeças. Elas se espalharam pelo salão.

Ari postou sua taça na mesa onde serviam as bebidas. Estávamos observando a festa um pouco de longe. Um grupo de pessoas variadas dançava.

–Lee. - Ari chamou em um tom sóbrio. Ela sempre era tão sensata, séria.

–Ari?

–Venha dançar comigo.

–Não sei dançar - Disse eu, sem pestanejar.

–Está mentindo. Sei que os guerreiros aprendem as danças cermoniais- Ela alisou o colete da minha roupa, meticulosamente.

–Certo, estou mentindo. Vamos colocar de outra forma. Eu tenho vergonha de dançar.

–Por favor. - Ela pediu, ao mesmo tempo em que brincava de passar os dedos pelo meu tórax.

–Tudo bem - Cedi - Mas só uma vez. Depois, não me peça mais nada.

Ela sorriu, sabendo que iria pedir alguma coisa depois.

Entramos na roda de dança, indo de um lado a outro. Foi até divertido, considerando que eu não tropecei nem esbarrei em ninguém. Ariella dançava com graça. Não saberia dizer por que, mas ela se destacava do resto do grupo. Seria sua altura? Seriam suas roupas, uma vez que era uma das poucas pessoas vestindo branco? Seriam seus cabelos dourados?

Depois de um tempo, eu estava rindo, o quadril de Ari balançava debaixo de minhas mãos. Ela se soltou de mim, e eu peguei outra garota, uma mulher morena que estava acima do peso. Depois dela, uma ninfa de pele verde tão magra que talvez eu até a quebrasse se a segurasse ou dançasse com muita intensidade. E então uma mulher que usava véu vermelho, que me surpreendeu ao se revelar Anuragi, minha criada.

–A senhora Ariella tem sorte - Disse ela, enquanto me rodeava - O senhor é tão forte, bonito, articulado e até sabe dançar.

Fiquei desconfortável na hora.

–Ah, eu nem sou bom nisso - Desconversei - Você é melhor, Anuragi.

Ela sorriu.

–O senhor é um homem que parece carregar grandes responsabilidades nos ombros. Estou certa? - Ela não esperou resposta - Deve ser difícil e, no entanto, aqui está o senhor, dançando. Tenho certeza de que um dia serei muito feliz se encontrar um homem que seja metade do que o senhor é.

–É, com certeza, claro, você merece o melhor.

Engoli em seco, quase suspirando de alívio quando trocamos de par novamente. Recebi uma mulher idosa, e tentei ser gentil com os movimentos. Ariella dançava com o garoto que eu expulsara de perto dela antes, quando queria falar com ela.

Depois daquela dança, fiquei com Ariella de novo. Ela ria como se fosse a primeira vez que fazia algo tão divertido. Bem, falei isso como se eu não estivesse rindo também, talvez até mais que ela. Toda aquela vida de treinamentos, responsabilidades, disciplina... Poucas vezes fizera algo em que me sentisse tão solto.

A dança acabou. Nós batemos palmas. Após aquela vieram outras e mais outras e até o deus anfitrião participou. Suor escorria por minhas costas quando chegamos na quinta, e na sétima eu precisava beber alguma coisa.

Saí ali do meio e peguei uma taça que um dos criados ofereceu. O salão, cheio de coroas de louros, brilhos, joias, ouros, gritos e risos se enchia mais à medida que o dia passava. Escureceu de repente, mas ninguém perdeu a energia. Pelo contrário, pareciam mais dispostos. Em algum momento, acrobatas chegaram e preencheram o salão de vivas. Tomei da taça. Tinha gosto de morangos, a fruta favorita de Ariella.

Falando nela, a garota se aproximou, arfante, de onde eu estava.

–Vamos - Ela chamou - Eu disse antes que queria mostrar uma coisa.

Ariella puxou-me pela mão e me guiou novamente até a estradinha de arabescos. Dessa vez, porém, tomou um caminho diferente e nos levou até a areia. Deixamos o chão de pedra e pisamos em areia. Fiquei um pouco preocupado, lembrando do labirinto, mas ela estava confiante. Um oásis se abria para nós, pouco iluminado ao pôr do sol. Havia um lago azul, palmeiras e um poço de pedras. Próximo dali um camelo pastava. Um caminho de tochas queimando nos lavava à entrada de uma barraca, mas dizer barraca seria pouco. Aquilo era uma tenda real, daquelas que os reis de povos peregrinos utilizavam. O tecido era vermelho com desenhos em dourado.

Era um lugar muito bonito, um lugar mais familiar para mim que o quarto gigantesco que Dionísio oferecera, e um lugar que eu sabia que Ariella gostaria.

Ela entrou na frente e eu atrás. O interior era ainda melhor. Cortinas separavam uma tina, uma área de banho e uma arca, no canto. Uma mesa com alguns suprimentos e uma cesta de frutas ocupava outra parte. Incenso queimava em algum lugar. E havia uma enorme cama, coberta de peles e tecido rico. Uma única cama.

De repente fiquei muito desconfortável.

Ela se recostou na beira da mesa, ainda segurando minha mão.

–Bonito, não é? Anuragi me mostrou esse lugar logo que eu voltei... Bem, ela achou que... Bem, Dionísio mandou que ela me mostrasse. Ele pensou que assumiríamos um compromisso sério.

Assenti. De repente, me lembrei de algo. Essa coisa que eu normalmente me esquecia. Olhei em volta, não sei se curioso se ela teria feito aquilo ou não, ou esperançoso de que ela não tivesse feito.

–Ari, cadê o coelho?

Quase me arrependi no momento que eu disse. Uma tristeza cortante passou por seus olhos. Ela baixou a cabeça e suspirou.

–Foi parte do tributo.

Aproximei-me dela, que recostou a cabeça loira em meu peito. Deliberou se contaria ou não. Por fim, se abriu:

–Aquilo era só algo representativo. Uma pequena cerimônia. Só eu estava lá. Precisava matá-lo, queimá-lo e espalhar as cinzas na areia. Foi terrível, eu quase vomitei ao perceber o que iria fazer, mas de fato, fiz. Ele disse que eu precisava ter fé, e eu tentei ter. Tentei pensar que ele tinha um alma e talvez fosse para o paraíso dos coelhos, eu não sei. Ele não era uma pessoa. Era só um animal, nem meu animal de estimação ele era, realmente. Mas fiquei triste de qualquer forma. Eu podia tê-lo levado comigo, podia ter ficado com ele se um dia voltasse à Ilha. Eu lhe daria um pingente para que fosse identificado, e brincaria com ele e escovaria seu pelo.

Ari fungou um pouco.

–Dionísio disse que eu nunca ficara de luto pela minha família. Por mais que fosse inteligente, eu era muito nova na época, e não assimilei totalmente a dor. Eu a ignorei. Eu a transformei em coisas ruins. Não a vivenciei ou a superei. E mesmo que a morte do coelho seja um acontecimento bem menor, me ensinou que eu tenho que enfrentar. Acabei carregando a morte deles diante de meus olhos durante toda a vida, e assim não abri meu coração a receber esse tipo de amor novamente. Não me permiti ser adotada. Fui criada esporadicamente na escola. Não me permitia liberar aquele amor, nem mesmo para minhas irmãs. E agora percebo o quão tola fui, que podia ter feito, ter dito mais a elas. Mas não o fiz porque não tive coragem. Porque não enfrentei a tristeza da morte.

"Você precisava ver, Lee, ele não lutou. Não esperneou. Parecia confiar que eu não o machucaria. Talvez não fosse isso. Eu não sei. Sei quer era só um bichinho, não uma pessoa, mas não consigo evitar de entristecer-me por ele. E não preciso que me diga nada, apenas preciso que essas palavras que eu disse fiquem com você. Eu não conseguiria guardá-las só para mim, elas me sufocariam..."

Senti quando as lágrimas caíram de seus olhos, cristais transparentes de sua dor, preciosas manifestações de suas emoções. Ela olhou para cima, para meu rosto, e eu pude fitar seus olhos dourados brilhantes, brilhantes de tristeza. De repente entendi por que a canção que cantou teve um início tão melancólico - ela cantou primeiro sua tristeza. A alegria, a intensidade vieram depois. No que seriam inspiradas?

Os olhos pareciam botões de ouro. Será que eu os imaginava daquele modo ou eles estavam simplesmente daquele jeito? Deixei para lá. Ariella provavelmente não estava com vontade de ouvir sobre aquilo - ou qualquer coisa relacionada.

–Desculpe por estar sento tão sensível. Tenho certeza de que você não gosta de tantas lágrimas assim. - Ela tentou sorrir.

–Pelo contrário - Repliquei - Posso não conhecê-la muito, mas sei que você não demonstra seus sentimentos. É uma honra que tenha me escolhido para compartilhá-los.

Ela secou os olhos e se afastou um pouco. Fui totalmente sincero ao falar, mas ela pareceu gostar verdadeiramente das minhas palavras.

–Obrigada por dizer isso. A verdade é que não contaria isso para mais ninguém. Mas você me conquistou de uma maneira... Senti que devia fazer aquilo. Você é tão forte para aguentar as coisas, tão seguro diante dos perigos, e carrega sua espada como parte do seu corpo. E ainda assim dança com uma leveza admirável e determinação. Desde que o conheço, sei que tenho sido mais corajosa para enfrentar as coisas de que temo. Você me ensinou a não ignorar o medo que sinto delas, a enfrentar, a deixar. São coisas tão pequenas, mas de fato as temo, e você é tão seguro que me traz o equilíbrio de vê-las de frente. Eu, tão insegura, e você, tão forte...

Peguei sua mão e a coloquei sobre o meu rosto. Suspirei ante sua pele macia e quente.

–Ari, desde aquele primeiro dia, em que tentamos nos matar... Eu acho que preciso dizer. Você me melhora, me faz mais forte, mais corajoso. Senti mudar nesse tempo. E talvez isso seja algo pequeno, talvez não faça diferença depois. Porém, não posso deixar de pensar que deixamos marcas nas vidas um do outro. Você espera não parecer fraca e medrosa diante de mim confessando sua tristeza ao perder algo de que gostava, e eu te digo que não posso ver uma pessoa mais forte que você. De onde venho, mesmo os mais bravos tremem e fogem diante dos perigos que enfrentamos. Que você enfrentou. Não sabem o que é honra, ou o que sacrifício significa. E são todos homens. Entende que eu não quero rebaixá-la por ser mulher? Mesmo que no início quisesse, você me ensinou que a coragem não vem disso. Nem da força que temos, nem do que deixamos para trás. Vem de algum lugar mais interior, e sei que disso você tem muito. E espero que não me veja como fraco por contar-lhe isso.

Ela arfou, depois negou com a cabeça.

–Não, Leecher. Não. Você é a pessoa mais forte que eu conheço.

E, com isso, mais um beijo foi trocado. Na verdade, mais dois, e três, e quarto além daqueles. Ela se aventurou em meu rosto, arranhando meu pescoço distraidamente, e eu provei de seu pescoço, sabendo que nunca tivera tanta ousadia. Tanta intensidade. Suas veias pulsavam, esquentavam como brasas debaixo de meus lábios. De repente, meu aperto em seu quadril a ergueu e ela estava em cima da mesa, as pernas envolvendo minha cintura.

Eu podia jurar que queimávamos do modo mais literal possível, ou que eu fora transportado por algum tipo de limbo, onde seus cabelos cobriam minhas mãos como seda e se espalhavam por mim como cordas douradas. Ariella arfava, eu devorava sua boca como uma fruta saborosa, escorria sobre mim como mel.

Passamos muito tempo assim, aos beijos ou simplesmente em um abraço cálido. Eu sentia seu coração bater, rápido como o bater de asas. Ele entrava em um ritmo perfeito com o meu. Quando o sol se fora há muito, e a luz das tochas do lado de fora já não era mais suficiente, nos separamos e acendi o braseiro e as lâmpadas a óleo.

–Durma comigo essa noite, Lee. - Ela pediu.

–Não vou desrespeitá-la, Ari.

Ela negou.

–Apenas fique ao meu lado.

E me puxou para ela.

Meus olhos se abriram no dia seguinte, ainda era bem cedo. Ariella não estava na cama. Na verdade, não estava em lugar algum.

Reclamando um pouco, procurei alguma roupa que me servisse ali. Encontrei na arca uma túnica normal, grega, e a separei. Depois, despi-me daquela coisa estranha que chamavam de vestimenta árabe e lavei-me na tina. Fazia muito calor. Agradeci muito pelo tecido leve.

Quando acabava de colocar a roupa e pensava comer uma das frutas da cesta, depois voltar para o palácio, encontrar Ari ou Anuragi, eis que a garota que eu beijara apareceu.

–Lee, você acordou.

–Sim, e vejo que você acordou cedo.

Ela assentiu com a cabeça, parecia preocupada. Notei um brilho em sua aura. Havia um colar dourado rodeando seu pescoço, no centro uma pedra rubra incrustada. Ela percebeu meu olhar e dirigiu as mãos automaticamente para lá.

–Precisamos conversar. Depois, vamos para Heliópolis.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Anunciamentos padrão:
1 - Sobre o beijo: Tive que fazer a cena em um lugar com algum resquício de cultura indiana ou árabe, porque, se fosse só grega, Ari e Lee nunca iam se beijar. Os gregos beijavam seus familiares, aqueles beijinhos de mãe em filho e tal. Só isso.
2 - Esse foi um dos capítulos mais difíceis de se escrever, tanto que tive que pensar nele muito antes de Ariella e Leecher se gostarem.
3 - A dança do ventre normalmente era dançada por homens - devia ser um pouco diferente - mas peguei uma licença poética. Até porque a dança grega era muito harmoniosa, cheia de movimentos com as mãos para cima para apontar os deuses. Era uma dança de adoração, e isso não me servia.
Bem, é isso. Beijux.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Ilha De Circe: Fênix" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.