A Ilha De Circe: Fênix escrita por Daughter of Apollo


Capítulo 26
As Árvores Sagradas


Notas iniciais do capítulo

Vai haver mudança na sequência dos capítulos.
O beijo Aricher está próximo. E o fim também.
Beijos.



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Caeliora

A escuridão era tão espessa que eu quase podia tocá-la e sentir seu cheiro. Há dias descíamos por aquela passagem, a única luz que tínhamos vinha das tochas encantadas.

Sem ter um objeto em que me espelhar, eu não saberia dizer, mas pensava estar pálida e doentia. Aiden, filho do senhor Hades, não sofria de nada, imerso em sua própria escuridão e pesar.

Era tão irritante! Ele não falava a menos que eu perguntasse, não olhava em meus olhos quando eu lhe dirigia a palavra; ao falar, muitas vezes suas palavras se perdiam no ar e eu precisava lembrá-lo para que continuasse. Como acontecia naquele momento:

– E... Eu... Eles – O garoto parou alguns instantes – Basicamente, a passagem em que estamos é parte do caminho fantasma, que Melione, a deusa fantasma, usa para ir à Terra a noite para aterrorizar os mortais. Houve uma... Uma... Uma vez... – Nova pausa, ele não olhava para mim, do outro lado da fogueira – Houve uma vez em que a morte foi liberada sobre o Egito e os deuses da morte marcharam sobre Mênfis. Hades, Melione, Thânatos, Osíris, Helll, Anúbis... Durou uma noite e logo voltaram para seus reinos com as almas ceifadas, centenas delas. Foi esse o caminho que tomaram. Leva direto ao Mundo Inferior.

Ele parou de falar. Seu cabelo preto caía em seus olhos, também muito pretos e cálidos. Nossas vestes já haviam visto dias melhores. Nossos ânimos, então... Eu não aguentava a falta de luz do sol e o pesar de Aiden. Pensava que, se eu era capaz de guardar o meu, ele também seria.

– Aiden? Aiden!

– O quê?

– Você tem mais a dizer. Como sabe de tudo isso?

– Ah, certo, perdão. São histórias da minha mãe. Enfim. Dizia-se que o deus-Sol, Rá, toda a noite se erguia dos mundos subterrâneos e se elevava ao céu. Depois, ele descia até o outro lado e lutava contra seus inimigos das trevas. Particularmente Apófis, a serpente do Caos. Ele lavava luz, calor e vida aos que viviam no subterrâneo, além dos mortos. Era um ciclo. Ele nascia e morria todos os dias.

Caímos no silêncio. A silhueta de suas costas e pescoço desenhada pela luz. Ele nem olhava na minha direção. Eu não queria ser insensível, mas acabei por fazê-lo.

– Aiden, você tem mais para falar.

Ele não se deu ao trabalho de pedir desculpas.

– Então, além de ser a Estrada Fantasma, era o Caminho do Nascente, ou Nascer do Sol. Há uma cidade inteira a nossa volta.

– Como assim, cidade?

– Foi construída pelo povo Hitita – ou os Frigios, não sei – para que os abrigasse enquanto a superfície era assolada por algo devastador. Um Inverno do Mal, ou uma batalha Apocalíptica do deus Ahura-Mazda, o bem, contra Angra-Mainyu, o mal. Isso é persa, e eu não gosto de coisas persas. Bem – ele tocou a parede – Deve haver vinte andares ou mais para baixo. Estamos quase no último.

– Por que não me contou isso antes?

Aiden deu de ombros, ainda de costas.

– Não achei tão importante. Mas antes que você possa querer me xingar outra vez, o nome da cidade é Derinkuyu. Está a nossa volta. Não tenho mais nada a dizer, agora.

Virei o rosto para o lado, mesmo que ele não estivesse olhando para mim. Meu pescoço esquentou.

– Eu não iria xingá-lo.

Iria sim.

Fingi checar os suprimentos placidamente ao passo que Aiden continuava a marcar um ponto fixo da parede com os olhos. Se fôssemos espertos, duraríamos três dias com o que tínhamos, ele e eu. Não havia caça ali e das poucas ervas que cresciam debaixo da terra apenas algumas eram comestíveis.

Eu não queria ser insensível. Queria dizer que não era hora para ficar se lamentando. Todavia, ele não entenderia. Poderia até insinuar algo sobre mim, mas eu sabia quem nos mantinha em movimento.

Será que Aiden não via que ela se sacrificara por nós? Ou será que ele pensara que Bia fora egoísta demais para viver e resolveu morrer como heroína para sua glória? Como ele não enxergava o que ela havia feito e o porquê disso? Por que ele...

Não. Pensei. Pare.

Novamente, visualizei minha emoção, aquele sentimento, e vi que não era bom. Não nos ajudaria. Por isso, por mais uma vez, o guardei dentro de mim, onde guardava esse tipo de coisa. Depois o abriria e o poria para fora.

Isso acontecia. Sofista, o que esconde suas emoções, o que controla e manipula.

Claro, chegaria a hora em que sairia de controle.

Há poucos dias eu o consolava e sentia compaixão. Há poucos momentos escondi minha irritação. Eu não aguentaria muito mais.

Não nos falamos durante um dia inteiro. Queria pedir perdão. Em vez disso, permaneci em silêncio.

Ao segundo dia, quando nossos suprimentos acabavam, encontramos o lago.

A estrada continuava dentro dele, nos afogando. Uns cem passos adentro, uma parede da caverna descia do teto até um pouco abaixo da superfície negra. Senti um calafrio.

– Aqui é o Lago da Purificação, ou O Lago Sagrado da Purificação. Vamos atravessar. Você sabe fazer o feitiço da visão no escuro?

– Sei.

– Ótimo, claro que sabe, porque não podemos levar as tochas ao outro lado.

– Quanto tempo ficaremos submersos?

– Muito tempo.

– O que há do outro lado?

– Não sei.

Ele parece tão sombrio.

Deixamos as tochas encantadas para trás. Como elas queimariam até a energia do feitiço acabar, o que não aconteceria em breve, torci para que, se alguém chegasse até ali, fosse guiado por elas.

Pegamos as armas e sacolas e eu ativei a magia da visão.

A água era gelada como uma nevasca – não que um dia eu tenha visto uma – contra os meus pés, meus tornozelos e enfim minhas pernas inteiras, à medida que eu avançava.

Imaginei monstros submersos e criaturas malignas, mas não os temi. Aquele era O Lago Sagrado da Purificação, isso devia significar nada de coisas ruins.

Alcançamos a parede, a água atingia meu pescoço. Sem ter como avançar mais a pé, mergulhamos.

Foi a coisa mais fria que já fiz, considerando que as águas do Arquipélago mantinham uma temperatura amena e que eu friamente ficava irritada com o choro de Aiden. Soltei um pouco o ar e comecei a nadar. Controlei-me para não bater os dentes ou tremer. Não via nada além de Aiden, nadando mais à esquerda. Enquanto nadava, sempre esperava vê-lo ou senti-lo por perto.

Tentei chegar à superfície, porém só havia um teto de pedra acima. Nada, a frente. Forcei-me a não ficar desesperada. Não iria morrer afogada. Eu era uma maga treinada, repetia, aguentaria o que fosse necessário. O ar começou a faltar.

O frio penetrava minhas veias e engolia meu coração. Congelava dentro de mim, saía por minha boca, queimava meus olhos. A escuridão e o frio eram muito piores que o caminho fantasma. Roubavam de mim tudo o que eu sentia, mesmo as emoções ruins que eu guardava esvaíram-se. Fiquei vazia, sozinha a não ser pelo frio e a escuridão. Sem nada. Sem lembranças. Sem nome. Tudo se foi.

E a isso, e não à falta de ar por tanto tempo, que atribuí o meu desespero. Eu queria luz, queria calor.

Esforcei-me mais, nadei mais rápido. De onde eu tirava forças? Aiden acompanhou meu ritmo. Não adiantava. Não havia luz, direção. Apesar de todo o treinamento, da minha condição de maga, dos anos mergulhando no mar que costeava a Ilha, eu estava a tempo de mais sem oxigênio.

Pensei que ia morrer, ali, afogada, nunca sepultada.

Até que vi a luz.

Era a coisa mais bonita em que eu já pusera os olhos. Um ponto luminoso a umas vinte braçadas de distância. Uma esperança.

Forcei-me a nadar, a seguir em frente. Forcei-me a não respirar, porque a qualquer momento minha mente retomaria a respiração por conta própria. Aiden ficava para trás, quase desmaiando. Tomei sua mão e o puxei.

Frio. Falta de ar. Uma luz, uma esperança.

Logo todo o lugar inundava-se em luminosidade. Eu via a sua forma. Era um lince de pelos vermelhos, como o que havia na casa de Selinos. Ele flutuava na água. Quando chagamos perto o suficiente para tocá-lo, virou-se e nadou para cima. Eu e Aiden o seguimos com novo ímpeto. Eu podia ver a areia branca abaixo de meus pés e a cor azulada da água. E a superfície.

A superfície.

Um pouco mais, só um pouco mais.

Rompemos a água e entramos naquele estado de cuspir líquido/sugar ar/tossir. Meus pulmões ardiam. Só algum tempo depois chequei se Aiden estava realmente comigo. De certa forma, tê-lo ao meu lado me confortava.

Esperei que ele parasse de tossir e o abracei. Naquele abraço coloquei todo o alívio que sentia por havermos sobrevivido. Era uma felicidade tamanha que engolia a alma e substituía o vazio e o frio. Um sentimento tão bonito que cativava em mim a vontade de guardá-lo para levá-lo sempre comigo. Mas o deixei livre para passear entre nós. Era além de alívio. Era... Era vida. Como e o lago tivesse me dado vida.

– Des... Desculpe, Ca.

– Eu o perdoo. Espero que me perdoe também.

– Sim, com certeza.

De repente, percebi que não sentia mais nada de ruim sobre ele.

O que uma experiência de quase morte não faz.

Olhei em volta. A superfície azul cobria uma boa distância até a margem. O céu era azul, porém não havia sol. Montanhas ainda mais distantes cortavam a visão com suas covas. Grama. Céus. Eu via grama e flores coloridas na margem. O lince desaparecera.

– Vamos – tossi – Ou morreremos de frio.

Na verdade, ali era mais quente e mais agradável que antes. Lamentei que não fosse um espelho d’água, pois fui tomada por um terrível desejo de ver meu reflexo.

Nadamos/andamos/corremos para a margem, molhados, as roupas grudentas, sujos, pálidos, fedendo e tremendo de frio. Procurei um jeito de secar o mais importante, como nossas espadas.

– Não há nem sol para nos secar – Constatei em um lamento. Ao menos havia grama e não resisti ao impulso de tirar as sandálias apenas para sentir a doce e fresca vegetação na sola dos pés. Árvores múltiplas salpicavam a paisagem. Mais a frente havia uma floresta verdejante e saudável e à direita um pomar. – Onde estamos?

– Não sei. Pelo menos – disse Aiden – Há algumas árvores frutíferas ali adiante.

– Não podemos comer dos frutos do Mundo Inferior – Lembrei-lhe. – Ou vamos ficar presos aqui para sempre – Não havia muito o que salvar. Nossos suprimentos se foram. Um pássaro das cores violeta e pôr-do-sol guinchou acima. Uma fênix, um bom sinal. Animaizinhos e insetos remexiam na grama e nas flores, como na casa de Selinos.

– Que paraíso.

Subitamente senti uma presença perto de nós. Meus olhos vasculharam a paisagem. Aiden também sentiu. Nos viramos de costas um para o outro, as armas em riste.

Ouvi o barulho de quando meu companheiro foi atingido. Aiden caiu inconsciente, por pouco impedi sua cabeça de atingir o chão com força.

– Aiden!

Acima dele pairava uma figura branca, pálida e brilhante. Seu vestido branco esvoaçava e reluzia e seus cabelos prateados fulguravam no ar.

Seus olhos eram muito vazios, cinzentos como uma pedra. Uma estátua teria olhos mais calorosos. E seu rosto – quase sem nenhum traço, como se fosse um borrão de tinta – olhava para mim sem qualquer expressão.

Saí do torpor e foquei em Aiden. Não parecia ferido. A respiração estava calma e regular, assim como seus batimentos cardíacos. A moça não se pronunciou enquanto eu checava meu amigo. Como não produzia nenhuma energia, eu não saberia dizer o que ela era. Deusa, mortal, semideusa, demônio, ninfa, fantasma...

Fantasma. Um espírito.

Até que não aguentei.

– O que você fez?

Ela deu de ombros, sem se importar.

– Apenas o deixei inconsciente. Precisava falar contigo a sós, e ele não se afastaria se eu mandasse.

– Por que quer falar só comigo?

– Porque ele não entenderia, jovem Caeliora, como tu entenderias. Que blasfêmia, deveria dirigir-se a mim com mais respeito!

Reconheci-a quando ela disse blasfêmia, mais por sua voz do que por já tê-la visto. Ela era a mulher, a Voz, que acordou o guardião que matou Bia e que nos guiou até a caverna. Aquele rosto sem cor parecia ser completamente adequado para ela, senão o rosto de uma avó rabugenta e ditadora. Porém, como eu não sentia o pesar pela minha falecida colega, era incapaz de sentir raiva da Voz por haver, indiretamente, causado sua morte.

– É por isso que queres falar somente comigo – constatei – Não estarei cega pelo ódio ou outros sentimentos.

– Isso mesmo, minha jovem. És melhor do que ele nesse assunto. Agora, ajoelhe-se diante de mim, pois me deves respeito. Sou Melione, a deusa fantasma.

Fiz a reverência necessária por obrigação. Nunca gostei de me ajoelhar. Na verdade, nunca havia me ajoelhado a nenhum deus. E também pouco conhecia sobre fantasmas, pois não mostrei interesse por necromancia ou qualquer coisa assim quando as aulas foram dadas. E Melione fazia me arrepender disso. Parecia perigosa o bastante para provocar-me medo.

– O que desejas, deusa?

Esforcei-me para lembrar o que Aiden havia me contado sobre Melione. Ela levava os mortos para a terra pelo caminho fantasma. Fora isso, não aprendera nada sobre ela. Deusa fantasma, só.

– Assim é melhor, mortal – Declarou em tom de desdém – Agora, levanta-te e ande comigo.

– Mas e Aiden?

– Não há alguém aqui para incomodá-lo.

Relutei em deixá-lo, sentindo que o estava traindo. No final, pensei que seria melhor acompanha-la. Fui, pingando pelo caminho.

O lugar era estonteante. Árvores frutíferas, insetos dourados, grama fresca e fofa, frutos exuberantes e a água azul do lago. O canto melódio de várias espécies de pássaros. Pedras coloridas como flores. Lírios, cravos, rosas...

A deusa guiou-me para a floresta que havia visto. Senti que atravessava uma barreira mágica. Ao abrir e fechar os olhos, não estava mais na mesma floresta de antes. Havia duas árvores gigantescas e lindíssimas no meio de uma enorme clareira elevada. Seus troncos eram tão grossos que precisaria de vinte pessoas grandes para abraçar cada uma. Meu queixo caiu.

– Como não as notei antes? Ao longe?

– Há um escudo dimensional na orla das Árvores. Tu nunca conseguirias chegar aqui se eu não a atravessasse.

– Essas... Oh, deuses, essas árvores devem ser muito antigas! – Balbuciei, boquiaberta – Elas são... São enormes!

– De fato, elas têm a idade da Terra, mas tua visão só a enxerga superficialmente, minimamente. Vamos, recolha o queixo.

Obedeci. Aquelas deusas haviam visto a criação. Seus galhos não se tocavam, mas eram entrelaçados. As folhas de uma eram brancas e as da segunda, azuis.

– Essas são A Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Não posso revelar qual é qual, para que não coma de seus frutos. Mas – Melione frisou a palavra, ainda sem expressão – Como é necessário que estejas aqui e sobreviva, e isso implica alimentação, darei a ti um dos frutos do conhecimento. Se vós comerdes dele, os demais frutos daqui e do Jardim de Perséfone não exercerão efeito sobre vós, de modo que possam ir e voltar. Também digo isso quanto a água.

Ela estendeu a mão para mim. Nela havia uma esfera de luz brilhante branca de tamanho da palma de sua mão. Relutei antes de pegá-la. Não havia nenhuma textura, ou cheiro.

– Os dois primeiros seres humanos da Terra penaram por aceitarem um desses. E, coincidentemente, aquilo também começou com uma mulher. – Disse ela.

Não fechei meus dedos em volta da coisa. Tremi ligeiramente, sentindo que, de alguma forma, aquilo era errado e as árvores me observavam.

– Sei como isso terminou da primeira vez. Uma desgraça. – Respondi.

Ela negou, sem nenhuma pena ou pesar. Seus dedos longos e pontudos fecharam-se sobre os meus, senti apenas uma brisa gelada. Seus olhos cinzentos estudaram os meus com desprezo.

– Talvez não desta vez. Não nasceste aqui. E, por mais que seria bom para vós ficar presos nesse jardim para sempre, a vossa missão é para com os homens, e os homens não podem mais voltar para cá.

Analisei a situação, controlando o instinto de engolir em seco. Eu nunca faria isso.

– Como chegamos aqui, então?

– Eu abri a passagem.

– O que acontecerá quando comermos, além da isenção do efeito do feitiço dos alimentos?

– Creio que nada. O Conhecimento do Bem e do Mal já está em vós.

Suspirei, esfregando nas mãos molhadas aquela coisa tão perigosa. Como Melione, não emitia nenhuma onda de energia, nada que me indicasse algum poder.

– Diga-me o que mais preciso saber.

Inúmeras raízes saltavam da terra e mergulhavam de volta, formando outras árvores menores, porém com poder. Melione sentou-se em uma dessas raízes, de modo que sentei-me ao seu lado. Como se fôssemos amigas. Eu estava ciente de que qualquer sujeira se grudaria na parte de tecido fino da minha túnica molhada. Isso não ajudava meu humor.

– Não sei se é do teu conhecimento, mas ninguém passa por aquele lago e vive. Aqueles que entram estão mortos, e os que saem morrem ao sair. Todavia, vós ambos estão vivos, mesmo depois da água purifica-los. Isso significa que receberam a ajuda de alguém de dentro, e não fui eu.

– Imaginei que quisesse que chegássemos aqui. – Disse eu e ela lançou-me um olhar que dizia: Por acaso eu perderia meu tempo ajudando qualquer pessoa? – Bem, quando pensei que íamos morrer afogados e perdidos, vi uma luz na escuridão. Nadei naquela direção e notei que tinha a forma de um lince brilhante de pelos vermelhos. Ele nos guiou à superfície e desapareceu.

Melione sacudiu a cabeça.

– Nunca vi algo assim aqui. De qualquer forma, esse é o menor dos problemas, Jovem Caeliora. Escute-me agora. Esta dimensão está prestes a ser destruída.

– Como assim?

– Além da fronteira há sombras malignas. Há meses eles nos cercaram, e há algumas semanas eles tomaram a forma de guerreiros e atacaram nossas fronteiras.

– Continua.

– O Reino de Hades sucumbiu. Consegui escapar para cá com alguns de meus servos. Outros foram para as Ilhas dos Abençoados. O resto tornou-se um pandemônio. Mortos e sombras em um furacão de destruição, indo para a superfície. Sem mim para guiar as almas eles se perdem e não voltam mais. Hades está ruindo, sendo destruído.

– Por que não vai lá para ajudar?

Ela negou com a cabeça.

– Não interrompa-me enquanto falo, criança. Certamente seria esse o esperado, e eu o faria, se não fosse o problema que temos aqui. – Ela fez sinal para que eu não questionasse o que iria questionar e apontou as Árvores.

“Veja estas árvores. Suas raízes seguram as fundações da Terra e sustentam a superfície. Dela vem o teu... Bem, É aqui que se inicia e se finaliza o ciclo da vida e da morte. A primeira vida veio daqui, deste jardim. Se as sombras atacarem, entrarem aqui, derrubarem estas árvores e contaminarem o lago – e tu vistes o veneno que foi disseminado na floresta da superfície – tudo desabará, aqui e lá em cima. Será um desastre, pois a água não será mais pura e liberará a morte. Ele alimentará os outros rios da Terra, pois corre para a superfície. As almas serão convertidas em seres de maldade e ódio. Vagarão através da terra vivos e mortos, o ciclo rompido.”

– Deusa...

– Se um dia me visses sem estar aqui, talvez entendesse por que não passo de uma sombra. Toda a energia que tenho, empenho nas fronteiras, sustentando um escudo que nos permite sair, não entrar. Foi com dificuldade que os encontrei, que mandei Selinos, que os testei e os deixei mais fortes. Sabendo ou não, a morte daquela menina foi importante para o vosso crescimento, e eu precisava saber se conseguiriam entrar aqui.

Dispensei o assunto.

– Quanto tempo mais consegue segurá-los?

– Alguns poucos dias.

– O que é preciso ser feito?

Seus olhos brilharam – o único sinal de vida que eu sequer vira.

– Sou levada a crer que eles possuem e utilizam uma grande fonte de poder, senão não poderiam haver derrotado Hades. E isso só é possível com um de seus preciosos amuletos. Enfim. O lago origina o rio Pisom, que se divide em dois braços, um continua até a superfície, o outro, menor, desce em um grande poço e origina o rio Lete, do Mundo Inferior. Aquele que causa o esquecimento. Seguireis o rio até o Lete e até Hades. Lá reinará o Caos. Aiden precisará controlar os mortos e retomar o lugar para que consigam roubar a fonte de poder das sombras. E tu é que a roubarás. Não te esqueças que a escolhi porque pode harmonizar teus sentimentos e colocar as emoções de lado, pois sabemos que Aiden não é capaz disso. De ser como um fantasma. Tu és.

Segurei a respiração na última declaração. Então, era assim que ela me via? Que ele me via?

Não pensei na possibilidade negativa daquilo. Caso o fizesse, talvez voltasse atrás. Pensei em Melione, que era a deusa fantasma e sacrificava sua energia para segurar as fundações da Terra. A maioria dos deuses seria muito mais egoísta.

Ela continuou:

– O salão de julgamento é o melhor lugar para canalizar poder, tanto em vossa vantagem quanto para vantagem deles.

Assenti.

– Obrigada.

– E jovem Caeliora... Não engane a si mesma pensando que faço isso por altruísmo. Faço isso porque, se os espíritos se tornarem em caos e fugirem de meu poder, serei destruída.

Concordei. É, ela era egoísta como todos eles.

Levantei-me com uma reverência, memorizando cuidadosamente cada palavra do que a deusa dissera. Ela pareceu tão mais cruel quando matou Bia. Não, lembrei-me. Não fora ela a autora da morte.

Já ia sair quando ela me chamou novamente.

– Ah, criança, quase esqueci-me. Tome.

Ela colocou algo muito macio em minha mão livre. Uma fita vermelha de seda brilhante.

– Para que serve? – Perguntei, curiosa e hesitante em aceitar qualquer presente. Aquele fruto já era uma armadilha suficiente.

– É tua arma, Rainha Caurdie.

– Do que me chamou?!

Um sorrisinho surpreendentemente secreto abriu-se em seu rosto, enchendo-o de traços.

– Rainha Caurdie. Talvez ninguém tenha contado a ti o que realmente és. Semideusa? Sim. Feiticeira? Sim. E Rainha Caurdie, a guardiã que cativa a razão, o coração e a alma. Caurdie.

– Não, sou uma feiticeira.

Ela sorriu mais.

– Não só feiticeira. E, além disso, só uma Rainha Caurdie poderia segurar essa arma. Não é um título para uma monarca. É para uma guardiã.

– Eu não entendo – franzi a testa – O que isso quer dizer? O faz uma Rainha Caurdie?

Ela deu de ombros, desinteressada.

– Descubra. Vai saber mais quando encontrar suas irmãs.

– O que elas têm a ver com isso?

– Três das pessoas mais poderosas da Terra, unidas em irmandade apenas por coincidência? Não seja tola, jovem Caeliora.

E ela despareceu, assim, no ar. Se mais nem menos. Sem nenhuma explicação. Em um instante estava lá e, no outro, eu estava de volta ao lado de Aiden, segurando o fruto brilhante do conhecimento do bem e do mal e uma fita vermelha.

Aiden abriu os olhos, tão confuso quanto eu. Seus olhos arregalados me fitavam. Ele se sentou no chão, ainda tonto.

– Ca, o que aconteceu?

Virei-me para ele como se o visse pela primeira vez. Postei-me a seu lado e lhe dei uma versão resumida do que acontecera. A cada instante ele parecia mais chateado. Decidi que não contaria sobre o Rainha Caurdie. E amenizei as coisas que ela disse sobre nos testar. Estava omitindo fatos? Sim, estava. E não me arrependeria, não enquanto mantivesse na memória o cenho franzido e olhar de desaprovação do garoto que era normalmente tranquilo.

– Tem certeza de que é seguro comer este fruto?

– Não. Mas eu faço primeiro. Se nada acontecer, dou a você, porque é o único que poderia atravessar o Hades sozinho.

Afastei-me dos protestos de Aiden. É claro que não era seguro. É claro que eu estava confusa quanto às informações que Melione soltara. Rainha Caurdie? É claro que me sentiria, algum dia, ofendida por causa do que ela disse sobre eu ser como um fantasma. É claro que ela desejava me deixar confusa e irritada com o que falou.

E é claro que, quando ela disse que não haveria efeitos negativos se comêssemos daquilo, quando disse que nada mais aconteceria, estava mentindo. Eu vi.

Mordi o fruto.


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Notas finais do capítulo

Ok, informações históricas, vamos lá.
Ahura-Mazda e Angra-Mainyu são deuses do Zoroastrismo, uma das religiões mais antigas do mundo. Ela separava as coisas entre bem e mal.
A cidade de Derinkuyu existe realmente, fica na Turquia.
Se ninguém adivinhou, o lugar que Aiden e Caeliora estavam era o Jardim do Éden, apesar de não ser bem assim. Eu inventei o lago, mas o rio Pisom está na Bíblia. "é o que rodeia a terra de Havilá, onde há ouro"(Gênesis 2, ver. 11). O rio que forma o Pisom também se divide em outros braços, que são o Giom, o Tigre e o Eufrates (esses dois últimos são os rios importantes da Civilização Mesopotâmica).
As duas árvores também estão na Bíblia.
Até amanhã.



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