A Ilha De Circe: Fênix escrita por Daughter of Apollo


Capítulo 25
O deus-Sol libertado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/356048/chapter/25

Dreah

O dia amanhecia e já estávamos acordadas observando a extensa terra lá em baixo, ocupada pelo acampamento militar. Havia cerca de trezentos mil soldados ao todo, um terço de cavalaria, trinta mil de arqueiros e o restante de infantaria. Quer dizer, assustava um pouco. Nós três contra... Aquilo.

Desde a tarde anterior, quando finalmente havíamos alcançado o regimento depois de uma árdua viagem e dois portais, nós tentávamos achar um jeito de contatar o líder daquela coisa toda e convencê-lo de que deveria levar o exército para a Cidade dos Deuses na Tessália, onde erguia-se o Monte Olimpo.

Como iríamos fazer isso? Eu não tinha ideia, nem Layla ou Jenny, que estavam ali especificamente para isso. Aposto que eu precisarei fazer o trabalho mais difícil, pensei. O azar sempre cabe a mim.

Esperávamos pensar numa forma de fazer nossa missão parecer convincente, porém não ajudava o fato de que eu lutara contra eles em Atenas e matara alguns de seus amigos lá. Não que fosse minha intensão. Quer dizer, era. A culpa era deles mesmo.

Enfim. Jenny, Layla e eu olhávamos a extensão abaixo, em silêncio, agachadas sobre o topo do precipício. A região não favorecia muita coisa. Era realmente arenosa, a vegetação de arbustos e árvores retorcidas prevalecia e eu pensava que o exército devia ter uma boa quantidade de suprimentos para sobreviver ali. A cidade mais próxima, Dokóis, era marítima e não mantinha plantações decentes. A ilha mais próxima, Córcira, eu imaginava que não era fértil também.

Bem, podíamos vencê-los pelo cansaço. Esperar que ficassem sem comida e então oferecer suprimentos em troca de uma expedição ao outro lado do continente. Fácil.

Não, não funcionaria. Eles tinham navios.

Suspirei, interrompendo um resmungo de Jenny sobre areia entrar em locais indesejados.

– O que foi? – Ela perguntou. – Teve alguma boa ideia?

– Penso que devemos ir até lá e... Conversar. Explicar a situação.

Ela olhou para mim, cética.

– Eu disse alguma boa ideia, não tentativa de suicídio. Ainda tenho que receber meu pagamento por isso.

Olhei para Layla, procurando apoio, mas ela não olhava para mim.

– Acho que Jenica tem razão desta vez, Dreah. Desculpe. Não faz muito sentido.

Levantei-me, resoluta. Era o único jeito. Não haveria outra maneira de persuadir um exército inteiro, a não ser atacando o líder.

– Temos que tentar. Não podemos perder mais tempo. Ideias melhores são bem-vindas.

Elas baixaram os olhos, todavia, logo desistiram e se puseram de pé. Pegamos os poucos pertences que tínhamos e eu chequei só mais uma vez meu brinquedinho favorito. Eu esperava que o amuleto de Hécate que eu procurava estivesse ali, pois Poseidon mandara Jenny e Layla para ajudar a ir atrás de um exército. Eu pressupunha que eles haviam roubado a arma em Atenas.

– Vamos lá? – Chamei, já indo à passagem pela qual poderíamos descer e que nos deixaria quase na praia.

– Espera – Jenny chamou – Só quero saber uma coisa. Quem fala com eles?

– Eu falo – declarou Layla – Sou um pouco experiente com isso, por causa das guerrilhas dos clãs aquáticos.

– Certo.

Pegamos nossas coisas e começamos a caminhar rente à borda do precipício. Seguindo a inclinação do terreno, logo encontramo-nos ao nível do mar, a alguns quilômetros dali. Demos a volta. Continuamos em linha reta até podermos ver as primeiras fogueiras sendo apagadas e os soldados andando entre as tendas

Eu pensava que iria ocorrer tudo bem, até que algum deles nos avistou e deu o alarme. Logo, havia uma comitiva para nos receber, mas percebi tarde demais que não era bem isso. Ainda estávamos um pouco longe, dentro da distância de um tiro de flecha, e foi exatamente isso que aconteceu. Eles abriram fogo contra nós.

As primeiras quase nos atingiram. Layla e Jenny abaixaram-se. Permaneci de pé. Invoquei a energia do amuleto e formei um escudo sobre nós. A próxima leva de flechas, maior que a anterior, o atingiu inofensiva. Agitei os braços no ar, procurando fazer sinal para os filhos de umas porcas promíscuas pararem de atirar.

Houve uma parada e respirei aliviada. A linha de recepção que nos aguardava lá na frente abriu-se para um homem passar. Era alto e devia ter uns trinta anos.

Pensei que tudo estaria bem. Fiquei mais relaxada. Nós iríamos conversar com aquele líder e o convenceríamos.

Que engano.

O gemido de dor alertou-me. Layla e Jenny não se levantaram quando as flechas cessaram. Olhei para baixo, o horror nos olhos da elementalista refletindo-se em mim.

Uma flecha mortal atravessava a coxa esquerda de Layla. A situação inteira, então, resumiu-se naquela ferida e eu tentando reunir qualquer conhecimento de medicina que pudesse ajudar. Prendi a respiração. Paralisei no lugar.

Se atingiu a artéria, não há mais volta. Caso não, ainda há chance, mas deve ser devidamente tratado. Como curar uma coisa dessas? A flecha pode ser envenenada, e eu mal conheço o básico sobre cura com o que temos aqui. Se eu pudesse fazer qualquer poção... Vai infeccionar. Tão perto da artéria...

– Dreah – ouvi Jenny chamar – Dreah!

– O que?! – Gritei de volta – O que foi?!

– Precisamos tirar isso da perna dela.

Neguei.

– Não podemos, pode causar uma hemorragia. E não temos o material para curar.

– Sereias não se curam se alguém jogar elas na água salgada?

– Não, idiota. Se não sereias quase nunca morreriam e estariam dominando o mundo!

A última frase foi ouvida pelo homem que se aproximava. Ele era seguido por uma guarda pessoal e outros dois soldados que pareciam o segundo e o terceiro no comando.

– Quem vai dominar o mundo?

Layla engasgou. Ela tentou se levantar. Jenny a manteve no chão. Sua gata, Bastet, tentou atacar o líder, mas ele a chutou para longe.

– Quem és? – Perguntei, assumindo a linguagem formal diante de um líder ou de uma situação diplomática.

– Sou Kormak, capitão deste exército. Este é Asini, meu braço direito. Agora, já que sois invasoras, o importante é saber quem sois vós.

Relutei em responder.

– Sou Dreah, Guerreira e Mestre de Poções da Ilha de Circe. Esta é – Jenny fez sinal para que eu não revelasse o seu nome – Penélope – o primeiro nome que me ocorreu – Elementalista e esta, ferida, é Layla, guerreira de Poseidon.

Eles sacaram as espadas. Não trema. Continue falando. Vamos, você consegue. Só o faça baixar a porcaria da arma e não matar vocês.

– Por favor, estamos aqui porque todos nós corremos grande perigo. Principalmente teu exército, Capitão Kormak. Rogo que deixe-nos falar-lhe e dar os devidos cuidados a minha amiga a quem feriram.

Isso. A linguagem está boa. Agora, capriche na expressão de vítima.

– Porque eu deveria fazer isso? Vós sois feiticeiras e uma sereia, e estes que praticam magia se declararam inimigos de nossa causa. Devíamos matá-las aqui mesmo e empalar suas cabeças em nossas lanças como aviso aos vossos aliados.

Engoli em seco, subitamente ciente do meu frágil e lindo pescoço.

– Falo a verdade. O mal que nos ameaça é maior do que nossa inimizade e...

– Eu não conheço você? – Disparou um dos soldados, saindo da fala formal que utilizávamos. De repente, lembrei-me dele. Eu o havia esfaqueado no olho durante a luta de Atenas. Seu rosto ostentava uma cicatriz.

E agora, o que eu faço?

– Sim, nos confrontamos na batalha de Atenas. – Respondi, amenizando o que fizera. Kormak analisou nossa pequena equipe. Uma garota baixa que falava bem mas tinha uma ferida em processo de cura na perna, uma sereia com pernas tendo uma flecha atravessada na coxa e uma loira alta com um olhar desafiador.

– Você me esfaqueou.

Baixei os olhos para parecer que estava envergonhada, apesar de não estar. Pensei em uma dezena de respostas para lhe oferecer.

Você por acaso sente dor fantasma no olho? – Acho que eu o havia arrancado durante a luta.

Sim, esta cicatriz ficou ótima em você.

Não se preocupe, as mulheres gostam de um homem com cicatrizes.

Bem, você ainda tem o outro olho sobrando.

Em terra de cego quem tem um olho é rei.

– Isso já passou, Rui – declarou Kormak. Meu nervosismo aumentou. O soldado, trajando roupas de batalha, passou a mão no rosto – Vamos levá-las como prisioneiras. Qualquer feiticeira que esteja aqui deve ser importante o suficiente para servir de refém. Aquele povo valoriza demais as pessoas.

Antes que eu pudesse sequer argumentar, os soldados se puseram à nossa volta, espadas, lanças e flechas apontadas para nós. Inclusive uma lâmina logo ao lado do pescoço de Layla.

– Ela está ferida – disse Rui – A matamos?

– Deixe que pelo menos cuidemos dela – pedi diretamente a Kormak.

Ele ignorou-me por completo.

– Asini, chame o médico e mande que cuide da perna da moça. E quanto a você – ele virou-se para mim. – Entregue a sua arma.

Passaram-se alguns instantes antes que eu percebesse que ele se referia ao meu amuleto, que eu levava no pescoço. Quem sabe eu pudesse enfrentá-los, porém não antes daquela espada decepar o pescoço de Layla. Por isso, recolhi o objeto e, lentamente, entreguei nas mãos de Kormak.

– Revistem-nas.

Os soldados tomaram nossas coisas, deixando a faca que Layla levava escondida em algum lugar da túnica. Amadores. Eles então nos escoltaram para dentro do acampamento. Jenny e eu carregamos Layla, que se esforçava para ficar em silêncio, e eu me sentia completamente desolada.

Fomos levadas até uma grande tenda na parte central do acampamento, do outro lado ficavam os líderes. Soldados nos olhavam intrigados, hora com ódio e hora com lascívia. A tenda se estendia em seu comprimento por alguns metros, como um estábulo, apenas três paredes.

Se chover ao menos não seremos atingidas. Espera... Não sei se aqui chove. É tão desértico. Sei que o Egito é mais desértico.

Uma série de estacas estava fincada na terra em intervalos regulares. Amarraram minhas mãos em uma delas, e poderia dizer que o soldado maldito que fez o nó possuía força nas malditas mãos dele. Quase fez os estragos no meu braço doerem, causados por aquela eternamente maldita esfinge e pelo cachorro que mandou ela.

Eles não tiveram muito mais cuidado com Layla. Logo um soldado mais velho veio, tirou a flecha e cuidou do sangramento.

– Certo, pessoal – disse, por fim, Jenny, que estava amarrada do outro lado, Layla no meio – Todo mundo bem? Inteiro? Layla?

– Vou me recuperar.

– Ótimo, porque eu gostaria de dar parabéns a Dreah pela brilhantíssima ideia.

– Cala a boca, Penélope.

– Você não tinha um nome melhor?

– Tinha, mas achei melhor humilhar você.

– Garotas, garotas – Layla nos acalmou – Minha perna está latejando como o demônio. Por favor, parem de gritar.

– Desculpe, Layla – falamos em uníssono.

– Além disso – continuou a sereia – Por que não quis revelar seu nome, Penélope?

– Eu... hmm... Sabem que eu disse que venho de uma linhagem de elementalistas, meu primo me criou... Então, foi aqui, na cidade mais próxima, Dokóis. Eu não queria que ligassem meu nome a alguma coisa aqui, eu poderia pôr em risco alguém. Se bem que meu nome é muito comum.

– Tem razão – admiti.

– Eu sei que tenho.

– Você é muito arrogante.

– Tão arrogante que minha arrogância vai se levantar para dar uns tapas na sua cara.

– Pena ela estar amarrada agora mesmo.

– Não por muito tempo.

– Garotas, parem com isso!

– Ela provocou, Layla – disse Penélope. – Além do mais, é culpa dela estarmos aqui!

Não aguentei mais.

– Cala a boca! Ao menos fiz algo em vez de ficar só reclamando! – Gritei, alto o suficiente para qualquer um ouvir.

De repente, estávamos todas gritando. Não que eu quisesse especificamente machucar alguém com meus gritos. A situação estava horrível e eu precisava expressar alguma coisa. Eu não tive a intensão de machucar ninguém, e esperava dizer isso a Jenny assim que ela acabasse de xingar.

Não tive tempo para isso. Mais adiante, Rui, o soldado que me questionara sobre um olho arrancado, aproximava-se. Ele expunha a cicatriz da facada. Não era tão ruim, na verdade, o deixava charmoso.

Tivemos apenas tempo de mandar olhares significativos umas as outras, e já sabíamos o que fazer.

– O que foi aquela gritaria?

– Nada, senhor, estávamos somente nervosas. Desculpe, não vai mais acontecer. – Respondeu Penélope.

– Então agora você fala? Pensei que fosse muda e só sua amiga maga é que falasse por vocês.

– É difícil articular palavra quando se está diante de alguém tão poderoso. – Jenny galanteou com ares de admiração.

Contive a ânsia de vômito porque a bajulação realmente funcionara. O olho bom de Rui brilhava, castanho claro.

– Acho que, afinal de contas, as feiticeiras não são tão ruins. Você é Penélope, certo?

Na verdade, corrigi-o mentalmente, feiticeira é o termo errado. Penélope é elementalista, eu sou feiticeira porque faço feitiços.

– Sim, e você é Rui.

– Com certeza. Que surpresa você lembrar-se do meu nome.

– É impossível não lembrar seu nome ou o seu rosto. Você é impressionante.

O soldado ficou vermelho.

É impossível não lembrar o nome ou o rosto de alguém que você esfaqueou e que voltou para assombrá-la.

Ao voltar a falar, sua voz saiu um pouco lenta e gaguejada.

– Eu.. Anh, eu... Acho que... Obrigada... Anh...

– E, sabe, é tão intimidador estar aqui. Sinto que não temos chance. Mas seria tão bom se pudéssemos falar civilizadamente com Kormak. Aposto que, se você estivesse no comando, já teria toda a situação resolvida – a voz de Penélope era tão melosa e doce que poderia atrair abelhas.

– Claro. Eu... Ahn... Eu... Acho que posso fazer algo por você... Vocês. Posso falar com Kormak.

– Ah, isso seria tão bom!

O soldado assentiu, as orelhas rubras. Pensei que ele diria mais alguma coisa, mas foi interrompido subitamente com uma gritaria vinda de alguma parte do acampamento. Ele se voltou para ir, depois virou-se e olhou para sua mais nova paixão, então, indeciso, olhou para o lado de fora.

– Vá, acho que o herói precisa resolver algo.

Ele corou uma última vez e correu.

– Bom trabalho, Penélope – elogiou Layla, reclamando um pouco de dor ao se virar para observá-la melhor.

– Obrigada. E até que gostei do nome. Mas antes de qualquer elogio preciso vomitar um pouco.

Não consegui evitar de rir. Estávamos presas naquela situação humilhante e alguns instantes antes eu praticamente jogava xingamentos em Jenny. E agora Layla, ela e eu ríamos como velhas amigas em um passeio. Estávamos bobas de tantas coisas ruins acontecerem.

As risadas cessaram. Ouvimos um som estranho, um guincho misturado com grito e sibilo enfurecido. A agitação dos soldados continuava.

Empalideci e olhei para as garotas. Layla silenciara e Jenny tremia, branca leite. Tive um péssimo pressentimento.

– Jenny – Chamei cautelosamente – Você sabe o que foi isso?

Ela assentiu, porém não me deu maiores explicações de imediato.

– Lembram-se de que eu disse que meu pai foi morto por causa de uma serpente? Bem, lembro-me desse barulho quando ele morreu. Sei que, agora, devemos torcer para estarmos longe o suficiente.

Ela fechou os olhos e recitou alguma coisa. Eu queria sair dali, era necessário agir, mas tudo que eu possuía era uma sereia incapacitada e uma garota tendo um ataque de pânico.

– Jenny – chamei novamente, gentilmente – Aquela sua faca, você consegue alcançar?

Ela tentou sacudir o quadril para a faca sair – e de fato funcionou, a faca escorregou de sua túnica e foi parar no chão ao seu lado. Infelizmente fora de alcance de suas mãos ou pés.

Concentrei-me. Imaginei a faca, como ela estava, vindo para mim. O objeto flutuou. Mandei que se dirigisse para o meu lado. Lentamente, a faca viajou no ar e pousou delicadamente às minhas costas. Peguei-a com a mão e cortei as cordas.

Depois de livre, libertei Layla e Jenny.

– Arranjem abrigo – mandei – Eu vou ver o que está acontecendo. Layla, cuide sua perna e Jenny, ajude Layla.

Saí sem esperar resposta. Quer dizer, amedrontar-se não era anormal. Todos têm medo em algum momento da vida. Por isso não pedi que a loira me acompanhasse.

Organizei minhas prioridades. Primeiro, procurei uma arma qualquer dentre as barracas. Graças à Hécate não havia quase ninguém na parte central do acampamento, e os que estavam lá não prestaram atenção em mim. Consegui uma espada em algum lugar e corri na direção dos gritos.

Meus ouvidos levaram-me até a praia. A maioria dos homens encontrava-se lá, assistindo algo. Como era muito baixa para ver, não percebi de início. Empurrei os soldados para o lado. Eles estavam muito petrificados para se importarem, apesar disso sentia-me nua sem a arma que possuía antes.

Cheguei lá na frente, junto a Kormak. Ele não notou minha presença. Seus olhos se punham no mar distante. Ao mirar a mesma direção, orei para me lembrar de xingar Jenny depois, por não me contar que a serpente que matara seu pai era... bem... Aquilo.

A coisa encontrava-se no mar aberto, a uma distância enorme do acampamento, apesar de claramente visível. A cabeça, elevada no ar, possuía o tamanho do rochedo que nós escaláramos. Isso era o que eu conseguia enxergar, pois a maior parte do seu corpo se arrastava abaixo da água como se fosse uma simples poça.

Um navio era esmagado em sua boca. Depois de engoli-lo inteiro, a coisa começou a vir lentamente em direção à praia. Ela poderia devorar todo aquele exército em uma dentada.

– Tragam as catapultas! – Bradou em alta voz Kormak, visivelmente nervoso.

Os encarregados foram cumprir a ordem. Kormak notou minha presença.

– O que você está fazendo aqui? – Ele explodiu comigo.

– Eu posso ajudar.

Não seja estúpida. O que você pode fazer contra aquilo?

– Como você poderia ajudar?

Kormak era pelo menos cinco palmos da mão dele mais alto do que eu e tinha umas três vezes a minha largura. Era forte, muito forte e sua barba escura deixava seu rosto mais largo. É claro que ele não via como eu podia ajudar.

– Se você me devolver minha arma, terei minha magia. Penélope é elementalista de água e Layla é sereia.

Ele pensou a respeito e passou a mão pelo rosto. Como líder, a responsabilidade de não cometer erros pesava sobre ele.

– Escuta, eu não estou planejando nada. Ambos aqui temos algo sob nossas mãos e que pode ser destruído se não agirmos. Acho que você entende disso. Se você não me devolver o amuleto irei sem ele, mas seria melhor se me devolvesse.

Ele grunhiu algo e tirou o colar do próprio pescoço. Com relutância, entregou-o a mim. Nesse mesmo instante chegaram Penélope e Layla, um pouco correndo e um pouco mancando. A loira ancorava Layla.

– Hey, sereia, acha que pode nadar? – Perguntei.

Ela precisou de um instante para pensar sobre a informação e perceber que aquele monstro realmente estava lá.

– Consigo – respondeu, por fim – É mais fácil aguentar o ferimento na água.

Olhei para Jenny. Sua pele, doentiamente pálida, brilhava de suor.

– Consegue nos levar até lá pela água? – Questionei-a. Ela não hesitou antes de assentir.

Layla prontificou-se a pegar seu colar de conchas, que a transformaria, mas impedia-a.

– Você tem cavalos? – Perguntei a Kormak. Eu já sabia a resposta, pois vira sua cavalaria. Prontamente Rui chegou com as rédeas de três cavalos marrons.

– Você sabe cavalgar? – Ele se referia a Jenny, olhando chocado para ela. Acho que ela não aguentou muito bem, pois olhou cética para ele como se ele houvesse perguntado se o céu era azul.

– Você está falando sério?

Ela tomou as rédeas das mãos dele e entregou uma a mim e outra a Layla.

A loira suspirou, ainda pálida. Controlei a vontade de rir, porque sabia o que ela faria. Seu rosto avermelhou-se. Jenny puxou o peitoral da armadura de Rui e seus rostos se encontraram em um beijo, que ela limpou da boca com a mão ao separar-se dele.

– Não foi tão ruim – ela constatou – Se eu morrer ao menos beijei alguém.

Deixamos um Rui estupefato para trás, subimos em nossas montarias e percorremos a distância até a praia à galope. O vento agitava meus cabelos. Eu sentia neles o sol. Eu podia sentir tudo naquele momento. Tão rápida que ninguém me alcançaria, tão forte como uma tempestade. Era inalcançável por qualquer coisa, mesmo a morte, que provavelmente me aguardava.

Alcançamos a orla e descemos dos cavalos. Corremos para o mar. Jenny fez erguer-se uma onda que nos sustentou no ar e nos levava em direção à coisa.

A cor era verde escura, como algas. Eu podia distinguir cracas e outras formas de vida em sua pele.

– Layla – gritei – Veja se você consegue enxergar o corpo abaixo da água. – Tinha um pressentimento sobre aquela serpente.

A sereia saltou em um clarão de luz branca. Quando seu corpo atingiu o mar, ela já tinha sua cauda negra de volta.

Quem ousa aproximar-se de mim? Questionou a voz da Serpente, clara e límpida como um espelho. Nada de sibilos ou guinchos. A voz veio de dentro de mim para fora, balançando-me.

Quem és? – Gritei.

Eu sou a Píton, Senhora de Todas as Serpentes e Causadora da Escuridão. Vós não podeis se aproximar.

– Quem nos obriga? – Gritou Jenny.

Olhei para baixo. A sereia negra nadava abaixo de nós com dificuldade, sangrando.

Pedi que Jenny desacelerasse.

– A barriga dela está brilhando! – Berrou Layla – E está inchada. Ela comeu alguma coisa muito suspeita!

Assenti. Sussurrei meu plano para a loira e gritei para a sereia nos acompanhar de qualquer jeito. Seguimos mais devagar.

A sombra da serpente pairava sobre nós. Devastadora. Senti perder minha coragem. Resisti. Não pensei em mais nada, deixando a magia agir por meio de mim em vez de eu usá-la como ferramenta.

Pegue minha energia disse eu a Jenny, em meu estado de total plenitude. Ela aceitou. Lembrei-me de proteger Layla um instante antes que acontecesse.

A água começou a descobrir o corpo da serpente lentamente. Uma onda gigantesca se formava atrás dela, praticamente paralisada no ar. Aquilo parecia tão grande e eu tão pequena. Jenny rangia os dentes com a força exercida.

Fale, Layla.

– Eu ouso aproximar-me da Senhora das Serpentes! – Bradou a sereia – Sou um ser do mar, pertencente ao domínio salgado das águas! Vós não sois daqui, não pertenceis a este lugar!

A lugar nenhum pertenço, criança do Oceano. O mundo é meu por direito, pois por esta terra rastejo desde antes da raça dos homens ter sido criada. Seja por terra, mar, deserto, floresta ou gelo, tais lugares já percorri e já fui onde homem nenhum esteve.

A língua da serpente tocou a água que restava. Uma onda engoliu Layla, que ressurgiu depois.

Sinto o gosto de teu sangue, criança. Seja para o pós vida ou para esta vida, tens a minha benção porque provei de teu sangue.

Layla se esforçava para se manter à tona. Seus cabelos negros escorriam por seu busto. Seus lábios tremiam.

– A bênção da Píton de nada vale àqueles que servem aos deuses.

Nenhum filho do Oceano serve aos deuses, criança. Sabeis disso tão bem quanto eu. O mar é selvagem e não pode ser domado.

Jenny enrijeceu.

– É a mais pura verdade.

De repente, a onda pairou sobre a serpente. Jenny não podia mais controlá-la. A força da água se rebelou e caiu com fúria sobre Píton.

Um rugido soou em meus ouvidos, pior que qualquer coisa que eu já houvesse ouvido. O guincho da serpente superou até mesmo o bradar das águas que lutavam contra ela, o Oceano a expulsando de seu interior.

O corpo da serpente poderia cobrir a Terra. Ela seria a mãe de todas as cobras?

A corrente mudou a direção do mar, rodopiando ao redor de seu centro. A cabeça da Senhora das Serpentes elevou-se em sua altura e ela abriu o capelo. Veneno vermelho como fogo foi esguichado.

Um instante antes, Jenny nos jogou para cima e o plano foi posto em prática. O veneno passou por baixo de nós e Jenny começou a cair. Eu, por outro lado, pairei no ar, brilhando em violeta.

Inseto. Disse a Serpente.

Não.

Ela abriu a boca diante de mim. Suas presas eram tão maiores do que eu. Provei meu medo, minha coragem, minha determinação, minhas fraquezas movendo-se dentro de meu ser. Entreguei tudo.

Fechei os olhos. Não havia mais nada lá fora. Deixei suas presas se fechassem sobre mim. Seu interior possuía cheiro de morte, mas não era um cheiro ruim. Era como sentir o medo acabar ou o sofrimento cessar. Cheirava a jasmim e a chuva fresca, que eu tanto adorava. Tudo era escuridão. Meu tato se foi junto de minha visão.

Deslizei pela garganta do monstro durante uma eternidade. Então senti algo. Alguém segurou minha mão.

Liberei a magia.

A energia pulsou por todo o meu corpo e eu não entendi como não matei a pessoa cuja mão quente envolvia a minha.

Não se podia escutar nada, porém eu juraria que o monstro soltou mais um de seus guinchos assassinos. Apurei a mente e aquela força multiplicou-se por mil, ardia como uma fogueira. Senti sede e me senti saciada ao mesmo tempo. Eu queria mais e dei mais, aquela onda dentro e fora de tudo.

Fomos empurrados para cima. Meus pulmões doíam por não respirar. O peso do mundo desabava em minhas costas. Talvez eu morresse antes de ver a luz. Impossível saber.

Nesse momento, alguém falou.

Pegue minha energia.

Aceitei.

Outra onda percorreu as entranhas da serpente, que finalmente nos cuspiu para cima. Respirei o mais rápido e profundamente que conseguia, saltando em direção ao céu. Lá de cima, eu não via a pessoa cuja mão eu segurava. Via apenas o rosto enorme de Píton fitando-me pronta para esguichar seu veneno mortal em nós.

Em cima de sua cabeça, havia uma mancha. Layla, na forma humana, empunhando a espada que eu roubara e que provavelmente deixara cair. Esquecera-me do objeto. Ela saltou sobre o olho esquerdo de Píton e cravou a espada nele. A cobra no começo não deu a devida importância ao machucado, todavia, Layla deslizou com a lâmina cravada no órgão por toda a sua extensão. A serpente sacudiu a cabeça com violência, quase acertando-nos enquanto caíamos.

A água bateu em minhas costas. O estranho não soltou minha mão. Puxou-me para cima, acima da água. Layla e Jenny, então juntaram-se a nós.

A serpente não proferiu mais palavras. Afastou-se, a cabeça coberta de sangue. Foi-se enterrando na água em direção ao horizonte. Seu corpo escamoso desapareceu, lentamente, mar adentro. O redemoinho havia cessado.

Finalmente, permiti-me olhar para a pessoa que estava ao meu lado.

Ele brilhava, literalmente. Parecia a aurora na pele de um homem. Era bastante alto, os braços eram bem fortes. Não trazia nada além de uma túnica curta e um cinto. O cabelo, castanho, descia em pequenos caracóis sobre seus olhos e ele pisava na água com os pés nus.

Quando olhou para mim, percebi que seus olhos eram de sol e que seu rosto sempre seria o mais lindo rosto masculino.

Apolo.

Não sabia se poderia me ajoelhar estando de pé sobre a água e não iria perguntar se era possível. Algum bom senso ainda restava. Fiz uma mesura, acompanhada de minhas duas amigas.

– Não sei por onde começar – disse o deus – As saúdo por haverem me ajudado com a Grande Serpente.

– Foi apenas nosso dever, Senhor – respondeu, tensa, Layla.

– Não fiques nervosa, sereia. Nessa guerra temos o mesmo objetivo. Por isso concedo-vos a cura. E a minha bênção na direção de vossa jornada.

Não entendi o que ele quis dizer.

– Não irás pelo mesmo caminho que nós.

– Não. A Serpente não foi derrotada. Voltará e as perseguirá por terra. Eu preciso levá-la de volta ao lugar dela.

– E que lugar seria?

– Há segredos neste mundo, criança, que mortais não devem saber. A morada da Grande Serpente fica além desta realidade, e só a luz pode viajar para qualquer lugar. Eu, mais uma vez, lhes agradeço por...

Não aguentei permanecer de pé. Talvez tenha desmaiado xingando Apolo em minha mente por ter sido tão pouco específico...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Ilha De Circe: Fênix" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.