A Ilha De Circe: Fênix escrita por Daughter of Apollo


Capítulo 23
A casa do Rei




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Ariella

Não ficamos muito tempo abraçados. E eu não sabia que seria tão bom abraçar alguém. Também não sabia que poderia reconhecer alguém que só vi quando era praticamente um bebê. Os braços fortes e quentes de Nohan e Calais eram tão diferentes de quando éramos crianças.

Soltei-me deles e voltei para o lado de Leecher. Naquele momento o soldado inimigo era a única coisa sólida a que eu poderia me apoiar. Não que eu iria dizer isso a ele. Se eu dissesse, o que ele responderia? Eu já fraquejara demais e não iria dar mais pistas do meu coração mole.

– Mas... – virei-me para Castor, tão taciturno – O que aconteceu quando os persas atacaram Atenas? Como vocês fugiram para cá?

Castor desviou os olhos, porém pude notar de qualquer jeito o brilho envergonhado.

– Eu... Pensei que você estava morta quando eles atacaram e vi aquele soldado negro ir na sua direção. Vi ele apontar a espada para você e então a explosão e soube que você já não existia mais. Fiquei desesperado, porque estava um verdadeiro pandemônio lá e eu precisava proteger seus irmãos, que se encontravam comigo. – Ele baixou os olhos – Eu não sabia para onde correr. Havia fogo, morte e destruição para cada lugar onde se olhava, e por mais que os soldados de Atenas defendessem a cidade muito bem, os atacantes negros, os não-persas, se infiltraram e nos perseguiam enquanto eu corria com seus irmãos.

“Não podia porque você estava morta. Eu tinha duas responsabilidades comigo. Mesmo que sua morte tão prematura significasse algo terrível, eu não tinha permissão de perder a esperança e arriscar a vida de Nohan e Calais.

De repente, seu pai surgiu, Ari. Ele tinha lágrimas nos olhos e segurava nas mãos um amuleto com uma mecha de cabelo da esposa. Ele cheirou e beijou aquele símbolo e murmurou palavras de Adeus, depois virou-se para nós e abraçou suas crianças. “Eu amo vocês” ele disse “Nunca esqueçam disso e da honra que isso proporciona”. Depois, virou-se para mim e declarou: “Há um caminho pela muralha leste que vai direto para o porto. Use um barco qualquer, você precisa sair daqui. Volte para sua terra.” “Mas...” Tentei protestar, entretanto suas lágrimas me pararam. Ele estava tão decidido que eu não contestaria. “Proteja-os, por favor, com a sua vida. Eu o amo, irmão. E devo dizer que tive a honra de lutar ao teu lado. Agora é a hora de que sigas em frente, sozinho.”

Não queria deixá-los, ele e a mãe deles. Seu pai voltou para a multidão causando estardalhaço, de modo que os atacantes passaram a prestar atenção nele, nos dando a oportunidade de fugir. Eu fui.

Arrependo-me, algumas noites, de ter fugido e não ter lutado, mesmo que talvez todos morrêssemos se eu houvesse ficado. Eu segui o que ele havia dito, voltei para a única terra que conhecia, Esparta. Nasci aqui e tornei-me adulto aqui, lá em Atenas era apenas um estrangeiro indesejado, e Nohan e Calais também o seriam aqui se eu não tivesse mudado algumas mentes. Alterei também suas idades, para que pudessem ingressar no treinamento de soldados. Oficialmente, eles são um ano mais novos”

– Eu ainda não entendo. Você disse que minha morte faria você perder a esperança. E parece saber por que aqueles soldados negros estavam lá.

Vontade de vomitar. Era o que eu sentia. Minhas mãos tremiam.

Castor levantou-se e veio de encontro a mim.

– Porque, Ariella, há um motivo pelo qual você nasceu. – Ele apontou para mim – Há poder em você. Guerra e destruição planejadas em seu nome.

Olhei para ele com olhos arregalados. Meu estômago empurrou ainda mais bile pelo esôfago.

– Eu não...

– Você está destinada a esta guerra. Não me pergunte mais, pois sua mãe, a mulher que a gerou, não a que a criou, não me disse mais do que isso. Seu sangue tem poder, seja por ser parte divino ou o que for. Ela previu que você voltaria junto de um poderoso guerreiro, e que vocês estavam destinados ao momento de conflito.

– ISSO NÃO ME DIZ NADA! – Gritei, não exatamente para ele. Havia algo – que eu não sabia o que era – que me trouxera até ali, e alguém previra isso há muito tempo.

“Uma arma perdida em Esparta.” Nohan e Calais foram para Esparta.

“Talvez até tenha sangue divino.”

“Há poder em você.”

“Descubra o passado, e talvez possa salvar seu futuro...”

Mesmo eu não sabendo quem dissera essa frase, naquele momento em que eu estava prestes a ser unida a Leecher, ela agora brilhava com importância. Havia algo, escondido em meu passado que definiria o futuro. O sumiço dos deuses, a queda do Olimpo e a guerra que assolava o mundo dos homens. De alguma forma, isso tinha algo a ver comigo, e eu sentia que estava intimamente relacionada com Leecher, que tramava a conquista olimpiana.

Tive que segurar em meu ventre para não vomitar.

Pensei que me descontrolaria ali diante deles. Que não conseguiria conter a enxurrada de pensamentos. Eu não entendia porque aquilo se estendia ao nível físico. E não vinha de Leecher, porque senão eu saberia controlar. Leecher estava calmo como uma rocha. Leecher...

Leecher colocou a mão em meu ombro, como um sopro quente. Foi como me apoiar em uma rocha com o mar rugindo à minha volta. Um lugar forte.

– Acalme-se, Ari.

– Tem razão. Desculpe-me por gritar, Castor. Eu estou confusa.

Ele pareceu entender. Nohan se pronunciou.

– Precisamos ir. Logo a Esparta acorda.

Quase havia me esquecido que existia uma cidade fora do templo. Assenti. Leecher retirou a mão do meu ombro.

– Vocês ficam conosco.

– Não é possível – respondeu Leecher – Temos que voltar. Irão perceber que somos estrangeiros e colocaríamos vocês em problemas.

Castor balançou a cabeça em negação e mirou os olhos acolhedores a Leecher.

– Logo à tarde chegará uma parte do exército com escravos conquistados. Quando virem vocês direi que os recolhi de junto deles.

Leecher concordou.

– Certo.

Ainda não havia ninguém nas ruas, pátios, átrios e demais lugares. Alguns soldados patrulhavam, mas nós soubemos nos desviar facilmente com a ajuda de Castor, que conhecia cada canto.

Chegamos a um pátio de colunas. O sol estava começando a nascer. Castor nos levou a um átrio, uma sala com tapeçarias e divãs vermelhos e dourados.

Levantei uma sobrancelha.

– De onde veio isso?

– Saque oriental – Respondeu Castor, depois se virou para meus irmãos – Vão. Voltem para o acampamento.

Calais, que estava com uma mecha do meu cabelo nas mãos, analisando-a, ficou desapontado, mas obedeceu. Ele e Nohan acenaram com as cabeças e se foram.

– Vocês precisam dormir um pouco – Disse Castor – E trocar suas roupas. Meus servos os ajudarão. Eu confesso que também preciso descansar, passei a noite fazendo planos naquele templo.

– Você é um dos reis – Falou Leecher.

Os olhos de Castor se iluminaram com um orgulho reconhecível. De fato, ele não usava uma coroa, e suas vestes eram como as de qualquer espartano que não estava treinando ou em guerra. Chitón, sandálias e braceletes. Sua majestade só era reconhecida na nobreza de seus passos, na postura e na maneira como ele olhava de forma protetora para sua pólis.

– De fato, general. Esparta tem sempre dois reis, e eu sou um deles. Historicamente, em tempos de guerra, esses dois reis se separam. Um deles parte para a guerra para liderar o exército e o outro fica para defender a cidade. Infelizmente, desta vez, eu fiquei. Mas acho que é sorte de vocês.

Bateu palmas. De um portal vieram três empregados. Uma jovem de pele cor de terra e cabelos encaracolados, uma mulher loira e um pouco enrugada de quarenta anos e um homem alto e loiro de uns vinte anos.

– Penélope, Karsa, levem Ariella para o quarto e lhe preparem um banho e a cama. Aicós, leve Leecher. Que eles fiquem em quartos próximos.

Os servos obedeceram. Pareciam confiáveis, pois não arregalaram os olhos ou demonstraram suspeitas. Segui a morena e a velha, pensando em como seria dormir em uma boa cama depois de tanto tempo. Se bem que ficamos apenas dois dias dormindo naquela caverna, tão próximos um do outro que eu ás vezes esbarrava em Lee.

Eles nos levaram por um corredor com algumas portas. O quarto de Lee ficava de frente para o meu. O jovem loiro abriu a porta e o general passou, com um olhar para trás, contemplando-me.

A velha cutucou meu braço, para eu passar pela porta que me foi designada. Eu passei.

O quarto parecia simples e bem arrumado. Era grande o suficiente para duas pessoas, porém só havia uma cama grande, um baú uma mesa, um jarro e uma bacia de água. Uma tapeçaria vermelha, com um javali grande de Ares, enfeitava a parede. Uma janela tampada por uma cortina branca. Só.

Era um bom quarto.

A velha olhou para o jarro e a bacia de água. Havia um pano e um balde de flores em suas mãos.

– Gostaria de ajuda em seu banho? – Ela perguntou solícita e gentil.

Neguei com a cabeça.

– Não, obrigada. Eu posso fazer isso sozinha.

Ela assentiu e chamou a outra garota. Saíram do quarto e deixaram o pano e o balde de flores. Suspirei. Banho no rio não seria a mesma coisa. Eu me sentia tão suja e infectada de germes...

Despejei um pouco mais de água na tigela, despi-me lentamente das roupas sujas que eu vestia. Uma vez aquilo fora uma túnica branca, mas já estava toda manchada. Mergulhei o tecido na água e lavei-me lentamente, temendo que qualquer movimento súbito ou vigoroso demais me traria ânsia ou dor novamente. Depois de lavar todo o corpo, misturei as flores à água para que ficasse perfumada e usei-a para lavar meus cabelos. Eles passavam da cintura, já. Hora de cortar.

Abri o baú para ver se havia algo de vestir dentro. Para minha sorte, tinha algumas túnicas brancas. Vasculhei até achar uma que me servisse e, para minha surpresa, ela era moldada como aquelas túnicas da minha Ilha. Era exatamente igual. Branca, simples, de bom caimento e a tira em volta do pescoço com o pingente prateado.

Castor já esteve na Ilha de Circe. Ele só pode ter pego isso lá. Não há outra explicação. Ele sabe mais do que está contando a mim.

Decidi que, por hora, eu não o pressionaria. Eu não confiava nele. Absolutamente. Ainda mais ele sendo o gêmeo perfeito e Pollux e não o ter mencionado.

Peguei a faca que havia trazido comigo e comecei a fazer uma pequena tentativa de ajeitar o corte de cabelo, todavia, logo na primeira estava ficando torto. Bufei. Agora vou ficar com o cabelo estranho. Ótimo.

Deitei-me na cama. O sol já estava nascendo, meus olhos pesavam. Contemplei o teto, inquieta com meus pensamentos. Eu não estava confortável em minha pele, minhas unhas queriam arranhar meus braços, mas eu precisava dormir. Eu queria tanto dormir e esquecer, porque tudo parecia tão escuro e frio naquele quarto. Estava apertando minha garganta, como um dos demônios do sono.

Será que há alguém lá fora observando-me agora? Será que esse alguém uniu-me a Leecher por maldade?

Peguei-me pensando em Dreah. Em Caeliora. Em Aiden e em todos aqueles que eu deixara para trás. Eles não saíam dos meus pensamentos, e só desta vez eu gostaria que me deixassem, para que eu dormisse só um pouco. O perfume das flores inebriava-me e não me permitia descansar. Talvez meu corpo quisesse se manter em movimento.

Castor... Castor... Castor... Pollux. Castor e Pollux. Qual a ligação além do sangue? Que outro motivo levou o irmão do homem me treinou durante anos a vir para Esparta, porque eu sei que há outro além do que ele me conta.

E Leecher... Quase havia me esquecido dele.

A ânsia de vômito voltou com tudo quando pensei nele, tanto que levantei da cama e tentei ir para fora da casa para vomitar. Parei no meio do pátio de colunas e caí, uma força puxando meus pés para trás.

Mas que droga! Maldição! Essa ligação com Leecher nunca antes foi tão irritante!

Pensei em ir acordá-lo. A força se afrouxou um pouco e virei-me para trás, ainda no chão. Leecher, vestido de branco, estendeu a mão para mim.

– O que houve com você? Acordei sentindo dor e um puxão no estômago.

Aceitei a mão que ela me oferecia e ergui-me.

– Eu preciso vomitar.

– Acho que eu percebi isso. Vamos.

Fomos para os fundos da casa e eu não aguentei ir mais longe. Pelo menos vomitei na terra, e não no chão limpo de Castor. Leecher segurou as madeixas de meus cabelos.

Não entendo o que há de errado. Não posso estar infectada. Durante os dias que ficamos na caverna não fizemos nada de errado. A água que consumimos foi devidamente filtrada e fervida antes do preparo da comida. Não comemos nada cru. Nenhum peru selvagem ou peixe. As frutas não eram envenenadas. Não posso estar doente.

Limpei a boca depois de esvaziar o estômago. Leecher largou-me.

Olhei para seu rosto. Uma de suas sobrancelhas estava levantada.

– O que houve com o seu cabelo? – Ele perguntou.

Olhei para o outro lado.

– Tentativa de cortar. Não deu muito certo. Mas o que você tem a ver com isso?

– Você tem a sua faca aí? Acho que posso consertar isso.

Bufei, um misto de indignação e descrença.

– Jura? Você sabe cortar cabelo?

– Pelo menos sei fazer com que não pareça que alguém arrancou um pedaço do seu cabelo com os dentes.

Estreitei os olhos e algo em mim se agitou, mas não achei que fosse ânsia de vômito novamente.

– Certo, está no meu quarto.

No caminho de volta, notei o que não havia notado enquanto corria quase botando o estômago para fora. Havíamos passado pelo Gineceu, o lugar das mulheres na casa, que por enquanto estava vazio. A cozinha ficava ali, meu quarto estava na ala dos homens.

Entramos no meu aposento. Leecher estava descalço, assim como eu, e não acordamos ninguém. Ele vestia uma túnica normal, de mangas, não da tira envolta no pescoço, como a minha. Peguei a faca deixada sobre a mesa e entreguei a ele.

– Nada de truques, Lee. Se eu receber uma facada você morre junto.

Uma risada irônica saiu de seus lábios. Ele não respondeu.

Sentamo-nos na cama, eu de costas para ele. Ouvi o ruído da lâmina cortando os cachos. Mais nada. Comecei a ficar com sono, remotamente percebendo que todos os outros pensamentos haviam deixado a minha mente.

Ele soltou o cabelo e se afastou na cama, permitindo que tivesse espaço suficiente para deitar e ele mesmo assim ficasse ao meu lado. Puxei as mechas loiras para ver o resultado. Não estava mais torto.

– Acho que eu mereço um agradecimento, não é Ari?

– Bom trabalho. Muito obrig...

Dormi no meio da frase.

Acordei algumas horas mais tarde com o sol à pino. Alguém batia na porta do quarto. Eu sabia que era Leecher.

– Entre.

Ele abriu a porta e disse:

– Venha comer. Ah e é melhor dar um jeito no seu cabelo.

Olhei feio para ele, mas Lee tinha razão. Procurei um pente no baú que me ofereceram e felizmente encontrei um.

Rapidamente penteei o cabelo e trancei. Ele quase chegava à cintura, agora. Devolvi o pente ao seu lugar. Eu talvez pudesse arranjar uma cinta-liga e colocar a faca em minha perna para disfarçar. Talvez não. Ali era seguro o suficiente. E só havia empregados na casa, além de Castor. As reuniões com os soldados se realizariam em conselhos nos templos e casas de reuniões, eu cogitava.

Leecher me conduziu ao átrio com os divãs, as tapeçarias e a mesa. Sentamos e a comida nos foi trazida. Peixe, carne de carneiro e alguns legumes. A moça morena serviu-me vinho antes que eu pudesse fazê-lo por mim mesma, então apenas agradeci. Comi com avidez, assim como Leecher.

Antes da primeira garfada, porém, senti algo mexendo em meus pés e os puxei para cima da cadeira. Olhei para baixo. Nathán, aquele coelho branco, me olhava reprovador de debaixo a mesa.

– O que ele está fazendo aqui? – Perguntei – Eu o havia deixado na floresta.

– Castor o trouxe – Respondeu Leecher – E mandou que cuidasse melhor de seus bichinhos.

Peguei-me perguntando: Se eu voltasse para a Ilha, Circe me deixaria ficar com ele?

Abandonei o pensamento e permiti que o coelho se enroscasse em meus pés.

Nathán estava decepcionado por eu tê-lo deixado.

No meio da refeição Castor se juntou à nós.

– Você não tem uma esposa – disse Leecher a ele, o que me fez levantar uma sobrancelha. O que o levou a questionar a vida íntima dele?

Castor realmente levou a pergunta em consideração e também teve a decência de explicar-me.

– Ela morreu há um ano – Ele deu de ombros e olhou para mim – Aqui, devemos casar e receber terra logo que completamos trinta anos de idade, quando nos tornamos adultos.

Subitamente, me veio à cabeça uma pergunta que eu devia ter controlado.

– Você a amava?

Ele balançou a cabeça sem hesitação.

– Não da forma que você está pensando. Ela era uma boa amiga, e eu um bom amigo. Nós cumpríamos nosso dever. Só isso. – Ele sorriu – Ás vezes ela gostava de me tirar algumas horas da função do exército apenas pelo prazer de me ver contrariado. Era um direito dela, assim como de todas as espartanas.

– Como você pôde se casar com alguém que não ama? Não é muito invasivo?

Eu estava sendo muito impertinente, eu sabia, mas a curiosidade toldava qualquer senso de preservação. Eu queria ver as reações dele. O mundo fora da Ilha era tão estranho, e os homens que viviam no continente mais estranhos ainda. Resolviam coisas com dinheiro, travavam guerras por terras e matavam a mando de reis. Casavam para continuar as gerações de seus povos, e não por amor. Ou praticavam o sexo apenas por prazer, sem amor. Qual das situações seria pior?

– Na verdade não é invasivo. é apenas... Casamento. Ter filhos. Essas coisas.

Leecher terminou de mastigar um legume.

– Seus filhos estão no acampamento de treinamento?

– Meu único filho de sangue, Péricles. E, para todos os efeitos, Nohan e Calais também.

Acabei de comer e beberiquei um pouco do vinho. Era um pouco forte, rústico. Não muito preparado como as bebidas de Atenas ou das cidades que não eram tão focadas na arte da guerra.

Meus dedos brancos estavam malcuidados. Se bem que era bobagem eu prestar atenção em algo tão fútil quanto o estado de minhas mãos. Diziam que leite ajudava um pouco. Eu não tinha certeza. Sempre fora a garota que ficava mais tempo diante de feridas do que diante do espelho. A ala de curas da Ilha me era mais familiar que o quarto coletivo da ala feminina.

Não sei por que o assunto me veio à cabeça. De repente imaginei Lee, na Ilha de Circe, treinando os menos experientes e mais novos nas lutas corporais. Pensei nele trazendo um novato até a ala de curas, até mim, para que eu o ajudasse, porque o garoto se machucara. Ele diria algo animador ao garoto ou zombaria um pouco dele. Tal cena era tão natural que tornava a situação atual estranha.

Talvez a conversa sobre casamento tenha me afetado, mas, fora a guerra e tudo o que está acontecendo, Leecher seria um bom amigo para se casar. Felizmente na Ilha não é permitido nenhum casamento que não haja amor.

Suspirei. Lembrei de uma pergunta que deveria fazer.

– Castor – chamei.

– Diga, querida – A forma doce com que ele pronunciou querida me fez derreter por dentro e ter vontade de abraçá-lo. Provavelmente não era permitido chamar ninguém de “querida” em Esparta, onde todos eram tão duros.

– Você tem um irmão? – Perguntei.

– Sim – Ele respondeu, sem olhar para mim – Você o conheceu, não é? Pollux.

– Sim. Por que não falou dele ontem?

– Nós não... Somos chegados, na verdade. Ele me odeia e eu o odeio.

Pollux é um homem tão doce quanto Castor, o que me leva a suspeitar de por que eles se odeiam.

O que os levou a isso?

– Assuntos do passado, Ari. Não deve se mexer neles. São muito dolorosos. Agora, sairei para um conselho de guerra. Parece que há um exército não identificado vindo Norte, da Macedônia.

Ouvi um pequeno movimento. Os olhos de Leecher reconheceram alguma coisa, mas parecia algo ruim.

– Vindo da Macedônia? – Ele repetiu – Mas não é possível.

– É sim, meu caro.

– Não – Lee negou novamente – Mesmo os meus soldados estavam perto de Atenas. E o restante no litoral e em barcos. E nós somos os únicos não identificados.

– Ao que parece – disse Castor – Não são mais, porque mensageiros dizem que esse exército é realmente grande e não segue sob bandeira nenhuma. Apenas as armaduras negras são algo em comum. Nós os chamamos de Os Negros, mas os sobreviventes das cidades que eles atacaram os chamaram de Guerreiros da Morte.

Prendi a respiração. Era um exército que Leecher não conhecia e que não tinha nada a ver com ele. Usavam armaduras negras.

Soltei a borda da mesa. Não percebi que a estava segurando. Não com tanta força.

– Ari – chamou Lee – Diga o que está pensando. Ficou nervosa de repente.

Castor me olhava ansioso. Ele sabia o que estava pensando. Comecei a murmurar coisas sem sentido.

– Circe e os informantes dela disseram que achavam que a localização do exército inimigo estava na Macedônia. Que havia algo lá. Os soldados que me atacaram naquele dia, em Atenas. Eu lembro. Vestiam armaduras negras, como você disse – referia-me a Castor – e tentaram me matar.

– Sim – ele respondeu – E há algo a mais a extrair disso.

– Eles estão atrás da Ari? – Perguntou Lee num tom de voz que sugeria que era algo idiota.

Castor levantou-se.

– Pode parecer ridículo, todavia, penso que é a verdade. Da primeira vez que se ouviu falar de Guerreiros Negros da Morte eles foram a Atenas e tentaram matar Ariella. Eu, a mãe dela e o pai dela sabíamos disso, porque eles só se concentraram em nós durante o ataque. Também a mulher que gerou Ari estava sendo perseguida antes de entregar o bebê à mulher que o criaria. Não sei se a localização de Ari é do conhecimento deles desta vez. Mas se há um Guerreiro Negro no horizonte novamente, acho que haverá alguém em busca de Ariella.

– Por que? – Perguntei – Você não sabe o motivo disso?

Ele negou.

– Não. Se descobrir, tenha certeza de que será a primeira a quem contarei. Agora, é hora de eu ir. Podem ficar aqui o tempo que quiserem. Recomendo que saiam apenas nas horas de pôr-do-sol, pois não há ninguém em torno para ver. Até mais tarde.

Assenti. Peguei meu prato e o levei ao Gineceu depois que ele saiu, mas a menina negra apareceu e o tomou de minhas mãos.

– Pode deixar que eu faço isso.

Voltei e peguei Nathán, que ficara no lugar onde eu o deixara momentos antes. Eu o acariciei no meu colo.

Olhei para Leecher. Ele havia revelado importantes informações militares para mim e tinha ciência disso.

– Pare de me olhar assim, Ariella – Ele recostou-se à mesa. Um sorriso pequeno tingia sua face como vinho – Não estou comandando exército nenhum no momento e você não está lutando contra ninguém aqui.

Torci as mãos e fiquei em silêncio. Ele não era general nenhum. Era meu amigo. Um bom amigo para casar.

Eu nunca diria isso a ele.

Nunca.

Eu pensava em como a situação estava estranha. Lee me admitira como amiga e eu esquecera as coisas que estavam acontecendo no mundo lá fora.

Nós conversávamos muito. Sobre tudo. Política, filosofia, anatomia, biologia e artes. Conversávamos sobre o passado. Sobre como ele perdera a irmã. E eu lhe falava sobre minhas irmãs.

Ele dizia que estava tendo um ótimo tempo. Tanto Lee quanto eu não contaríamos para ninguém o quanto gostamos da estadia em Esparta, mesmo saindo tão pouco da casa do rei que tornou-se um grande amigo nosso. Castor disse para ficarmos até ele ter mais informações sobre o que fazer. Ele falava conosco todas as noites, diante do fogo, e ficava maravilhado quando eu mexia com as chamas sem me queimar.

Automaticamente nutri uma enorme afeição por ele.

Percebi, também, que fora da guerra, longe das coisas que nos separavam, Leecher e eu nos tornamos tão próximos quanto amigos podem ser. Isso era ruim, porque teríamos que nos separaram logo, mas nenhum de nós disse nada.

Isso era pior.


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