Ghostwriter escrita por Moona


Capítulo 2
Parte II




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Se havia algo que Ghost detestava mais do que qualquer coisa eram viagens, principalmente de aviões. Odiava por o pé numa lata fechada que voaria por horas a fio e estava sujeito a uma possível queda. Encostou as costas na poltrona, suspirando. Tinha de ir viajar para uma cidade que ficava a mais ou menos duas horas dali para assinar um contrato, entregar o manuscrito e receber o salário de um de seus últimos trabalhos feitos, uma história de ação e aventura que se passava na idade média. Fazia duas semanas que tentara escrever seu maldito conto de terror e até agora nada... Nem uma única palavra que fizesse sentido. Teria mesmo de precisar de Terror para escrever? Não parecia justo. Talvez tivesse medo do que fosse encontrar nessas páginas assustadoras.

 

Decolara a menos de meia hora mais ou menos e não agüentava mais estar ali. Desejou que seu sofrimento terminasse logo e procurou algum analgésico para a dor de cabeça que começava, vasculhando os bolsos do casaco de couro. Pediu um copo de água para a aeromoça loira que lhe lançou um olhar interessado, mas foi imediatamente ignorada. Ghost não gostava de pessoas, nem de relacionamentos e nem de nada... Sua vida eram suas histórias e nada mais. Encheu a palma com três pílulas e engoliu sem pensar duas vezes, virando para observar a asa do avião ao lado da janela. O breu da noite tomava conta da janelinha e revelava a superfície negra do oceano calmo aos seus pés.

 

Abriu o laptop que jazia sobre seu colo e suspirou, irritado por não conseguir escrever uma história por conta própria.

 

- Escritor? – Perguntou a mulher na poltrona ao lado da vazia ao seu lado.

 

Ela era bonita, tinha os cabelos curtos, escuros e repicados. Ghost analisou-a e engoliu a seco, forçando um sorriso.

 

- Acho que é quase isso.

 

- Hmmm. – Muxoxou pensativa. – E o que está tentando escrever? Um romance?

 

- Não exatamente...

 

Ghost não gostava de falar do que fazia e não sabia conversar, ou melhor, não havia nada do que odiasse mais do que conversar, pois nunca conseguia disfarçar o desastre que realmente era. Um fracassado que supria o sucesso alheio... Nada digno. Tinha o dom da fala, da história e do encanto, mas em troca disso tudo perdera a vida e a sociabilidade. Quem mandara nascer esquizofrênico, não?

 

- Quero escrever um terror.

 

- Interessante. – Comentou ela maliciosamente. – E você não pode escrever algo para mim?

 

- Ah, eu... Bem... É claro. – Constrangeu-se, mas não expôs. Retirou um papel de dentro da pasta de couro aos seus pés.

 

- Quer uma caneta? – Perguntou ela estendendo a ele uma de ponta fina.

 

Ghost concordou sorrindo amarelo e fechou o laptop, depositando o papel sobre o aparelho. Tocou-o com a ponta da caneta e pensou.

 

- O que quer que eu escreva?

 

Tudo para que a mulher parasse de lhe atazanar as idéias. Ela mordiscou o lábio pensativa.

 

- Que tal um.. Terror? Já que estava tentando fazer isso, que tal não consigo ajudá-lo?

 

Ghost congelou quando ela depositou a mão sobre seu joelho. Aquilo estava passando dos limites, porém deveria parecer sociável. A mão tremeu um pouco e ele se concentrou. “Há tantas coisas que eu poderia escrever... mas ela escolheu logo o Terror? Eu preciso de algo terrífico... Algo que traga medo, no final das contas... Algo que eu não consigo escrever.”

 

- Eu lhe ajudo. – Disse uma voz feminina reconhecível ao seu lado, era Terror.

 

Ghost não teve coragem de olhar para trás, pelo visto dessa vez ninguém poderia vê-la além dele, pois a mulher ao seu lado estava esticada sobre o banco vazio entre eles, com a mão em seu joelho e um sorriso malicioso na face volúvel.

 

- Não sei se é uma boa idéia... – Murmurou Ghost de volta.

 

- Tudo o que tem de fazer é escrever... Não se preocupe, não irá se arrepender do conteúdo.

 

O escritor se concentrou e ignorou a mulher ao seu lado, escrevendo a primeira letra e nada mais.

 

- Tudo bem, mas me ajude!

 

Terror, que estava falando sozinha no banco de trás, sorriu e encostou as costas no banco, acomodando-se enquanto fechava os olhos.

 

- Hora de fazer o que faço de melhor. – Murmurou simplesmente.

 

- E então? Ainda precisa de inspiração? – Indagou a mulher ao seu lado.

 

- Eu acho que...

 

O avião tremulou violentamente devido a uma turbulência e Ghost enrijeceu os músculos, estático. Odiava aviões, odiava turbulências e, acima de tudo, odiava estar ali com aquela mulher chata. A aeromoça surgiu no corredor, juntou o alto-falante da parede e falou claramente para que todos ouvissem:

 

- Está tudo bem, por favor, continuem sentados... Estamos passando apenas por uma turbulência, parece que estamos passando por uma onda de ar tropical que está vindo do sul.

 

Algumas pessoas, que ficaram de pé, voltaram a sentar e um burburinho tomou conta do lugar. A mulher recolheu a mão, notando que Ghost estava receoso.

 

- Ah... Então tem medo de voar?

 

- É, parece que um pouco... – Disse voltando a prestar atenção na história. – Nada de mais...

 

As luzes sobre as cabeças de todos piscaram três vezes antes que uma das lâmpadas estourassem, arrancando gritos de pavor de quem estava perto. Uma nova turbulência, agora mais intensa, alertou o ambiente. Duas aeromoças entraram correndo para acalmar as pessoas, mas elas mesmo pareciam atordoadas e medrosas demais para isso. Ghost olhou para fora e se assustou quando viu a asa pegando fogo. Levantou de supetão e saiu de perto da janela, secando o suor da testa. Um receio cresceu dentro de si... Não que tivesse medo de morrer, mas um sentimento estranho se apoderava de suas entranhas.

 

Precisava avisar ao piloto do que acontecia. Talvez ninguém tivesse percebido... Um ruído fino e alerta ecoou dentro do avião e uma luz vermelha piscou próxima a cabine de pilotagem. Agarrou uma das aeromoças pelo braço quando as máscaras de oxigênio se desprenderam do teto, apavorando mais ainda quem já estava li dentro. Gritos, pânico, descontrole e caos... Ghost não se importava em morrer, mas toda aquela maldita algazarra o estava afetando de alguma forma, como se pudesse entrar na mente de cada uma daquelas pessoas e sentir o que sentiam.

 

Medo, pânico, raiva... Angústia e novamente mais medo. Olhou para a aeromoça apavorada e a sacudiu.

 

- O que está acontecendo? Eu preciso falar com o piloto, a asa está pegando fogo!

 

Ela grunhiu alguma coisa e desmaiou, obrigando Ghost a depositá-la em um dos bancos vazios e correr para a porta no início no corredor. Alguém ouvira o que Ghost dissera e agora gritava os prantos, ticando ainda mais o formigueiro com vara curta. O escritor empurrou a porta inutilmente, pois estava trancada por dentro. Encostou as costas no metal frio enquanto o ronco barulhento do motor em chamas quase emudecia os gritos apavorados. Levou a mão até o peito e escorregou até sentar, respirando ofegante. Aquelas vozes e sentimentos não paravam de cravar a ferro em sua mente, causando uma repulsa angustiante. Sentia medo... Medo de não viver mais. Medo de não ver mais quem gostava ou de não ter a oportunidade de fazer coisas das quais sempre quis, mas nunca tivera oportunidade. Mas era tudo mentira... nunca desejara tais coisas e não era agora que desejaria.

 

Levantou e correu de volta para sua poltrona, mas antes que a alcançasse, um novo jorro de emoções o fez tombar junto com o avião, que agora dava uma virada brusca, cortando o ar com seus gritos de fera enfurecida. Se Ghost não tivesse segurado firmemente no banco tinha certeza de que estaria morto a essas alturas, vítima de um traumatismo craniano... Não que isso fizesse alguma diferença na situação. Sentou em um banco vago e buscou pelo cinto, fechando ao redor da cintura. Uma explosão barulhenta veio da asa em que estava em chamas, mas não teve a oportunidade de prestar atenção. Tentou tapar os ouvidos, mas as vozes não paravam de murmurar em seus ouvidos:

 

- Mãe, por favor, me perdoe por tudo...

 

- Eu não quero morrer! Socorro, por favor, me ajude Senhor!

 

- Tenho filhos, tenho uma familia... Tenho uma vida, não posso acabar aqui...

 

- Minha vida... Tudo o que eu conquistei vai acabar.

 

Pareciam pensamentos e não queriam se calar. Um pânico fez seu estômago dar uma volta brusca: Iria morrer, entretanto não conseguia deixar de sentir medo, sendo que nunca tivera problemas quanto a isso. Quem se importava com a morte? Todos menos ele. Morrer parecia tão bom e menos sofrido do que continuar existindo. Mas para aquelas pessoas eram diferentes... Tinham uma vida, pessoas que amavam, trabalhos que tanto almejavam, maridos, filhos... Morreriam e suas vidas se tornariam um nada, pois não sabiam o que viria além. Inferno, céu? Que diabos viria a seguir? O nada? O desconhecido... Ghost ofegou pesadamente e quando deu-se conta do que acontecia, o avião estava inclinado para baixo, de bico, e caia verticalmente em queda livre. As luzes não paravam de estourar e os gritos não cessavam. Pessoas oravam de mãos dadas, outras caiam em um pranto copioso. Nada era tão pavoroso do que imaginar como a morte seria. A única certeza em comum era: Todos iriam morrer, sem exceção. Outra nova explosão arrancou um pedaço da lataria direita e abriu um vão aonde o ar rugiu e entrou ferozmente, arrancando algumas pessoas dos acentos.

 

Ghost não conseguiu respirar devido a pressão que caia sobre seu corpo. Era difícil aceitar a morte, de certa forma... Como ficariam suas histórias? Olhou para o lado e fitou a mão e a pequena filha abraçadas, chorando, rezando e implorando por uma segunda chance. O pânico de saber da morte tornava aquele sofrimento mais intenso e aterrorizante. O metal do avião rangeu e mais um pedaço foi para os ares, carregando dezenas de pessoas que ocupavam três fileiras de bancos mais a frente. Ghost enxergava o fogo e a fumaça que eram emanados do motor, pelo menos as vozes haviam se calado... Ou talvez estivessem agora tão altas que não faziam mais sentido. Arregalou os olhos quando uma explosão atrás de si o engoliu em chamas, carregando-o para um inferno na Terra. Olhou para as próprias mãos enquanto as via borbulhar com o fogo. A pele ficou vermelha, os olhos arderam e as dores de milhões de facas ferindo sua pele o carregaram para um estado de pavor. Não poder controlar o que acontecia era muito diferente de suas histórias, nas quais escolhia o final.

 

Urrou de dor e reabriu os olhos, notando que agora o corredor inteiro queimava. Algumas pessoas nos bancos ainda lutavam contra as chamas enquanto o avião pairava no ar em seus últimos instantes de vida. Gritos, pânico, dor. Quis simplesmente desaparecer, mas quando deu-se conta novamente percebeu que boa parte de sua carne já estava incinerada. A dor comia-lhe as entranhas e o pensamento. A mulher que anteriormente lhe cantara agora agonizava no chão, se contorcendo como um animal selvagem. Quis que a morte simplesmente chegasse... Mas ela não via. O verdadeiro medo apenas foi injetado em suas veias quando percebeu que não restava muito mais de si a não serem os ossos. O avião colidiu de frente com a água e a força e impressão do impacto fizeram todos os bancos se abarrotarem, amassando uns aos outros. Estava morto, isso era um fato... mas porque continuava a sentir aquela dor? Porque não conseguia se mover ou largar da maldita casca em que se encontrava? Foi esmagado por um banco e urrou novamente, procurando por ajuda. Ninguém lhe ouvia, ninguém lhe entendia... Não apenas porque estavam mortos, mas porque nada poderiam fazer. A última explosão ardeu o avião inteiro, produzindo um cogumelo de chamas e fumaça no meio do oceano. Destroços e restos do que já foram vidas espalhavam-se pelo ar como uma chuva de objetos cintilantes.

 

Ghost se via agora afundando, caindo mais a fundo no mar. Na escuridão sombria do oceano, aonde a voz não era ouvia. Não se movia, não falava... Apenas ouvia e via. Que tipo de final era aquele? Estaria destinado a ficar preso em seu corpo morto por toda a eternidade? Desejou intimamente que a morte fosse o nada... As sombras o engoliram junto com o fogo que teimava em arder em sua pele.

 

Quando reabriu os olhos, estava de pé, com a caneta na mão e um braço ferido. A mulher que anteriormente estava o seu lado continha uma expressão de pânico no rosto. Ghost ofegou, arquejou e olhou para o braço: A caneta na outra mão pingava com as gotas de seu próprio sangue no chão. Havia escrito tudo o que acabara de passar por todo o seu braço, com letras que rasgavam a pele e recriavam a história de terror que acabara de viver. Uma dor que ardia como o fogo que anteriormente o consumia queimava aonde as letras foram marcadas. Largou a caneta no chão e segurou o braço, percebendo que todos ao redor o observavam.

 

- Você está bem? – Perguntou a moça receosa. – Começou a gritar e então escreveu em seu braço... Nós tentamos segurá-los, mas qualquer um que chegava perto era afastado!

 

Ghost suava em bicas e sua blusa estava grudada ao corpo. Olhou novamente para o braço e depois para o banco vazio de trás. O escritor fez uma careta e passou por todos.

 

- Só... Só preciso ir a um banheiro.

 

- Mas, senhor... Isso precisa ser tratado. – Gaguejou a aeromoça com a mão no peito.

 

- Não, está tudo bem. – Cortou Ghost aflito sem olhar para trás.

 

Todos o observavam com medo e repulsa, admirando o braço quase em carne viva do homem. Ele entrou no banheiro e trancou a porta, ligando a pia e tomando um susto quando viu a mulher encostada no canto do banheiro com um café na mão.

 

- E então... – Perguntou Terror sorridente. – Não foi maravilhoso?

 

Ghost balançou a cabeça e enfiou o braço embaixo da água corrente da pia, lavando o líquido vermelho que escorria das letras pequenas gravadas em sua pele. Grunhiu de dor, admirando a quantidade de detalhes que conseguia passar para seu braço.

 

- O... O que foi aquilo?

 

- Você pediu um pouco de Terror e eu lhe dei, oras bolas. – Comentou ela ofendida. – Não sou como os outros, meu caro... Eu gosto do que faço e sei muito bem como dar ao meu público o que ele precisa!

 

Ghost riu nervosamente.

 

- Quem é você afinal? Porque diabos aquilo aconteceu? Como é possível... Que você exista e não exista?

 

- Eu sou Terror, já falei. Eu estou por toda a parte, em todas as pessoas. Não que eu seja ruim... E por favor, não me compare com as Trevas ou afim. Não gosto dessas temáticas religiosas, são fora de moda! Eu existo e não existo, simples assim!

 

- Assombração? – Perguntou Ghost sem compreender como aquilo era possível.

 

Ela meneou negativamente.

 

- Nenhuma assombração, nem um ser de outro planeta, nem um monstro ou o quer que seja. Talvez não exista uma explicação para mim... Eu estou aqui porque existo em você e em todas essas pessoas. Sou real e ao mesmo tempo não.

 

- Como é possível que viva se não existe de verdade? – Questionou o escritor rasgando a manga da blusa e juntando um monte de papel para limpar o sangue que escorria do ferimento. – E que forma de contar história é aquela?

 

- Quantas perguntas... Não há explicação para mim. Tudo posso, tudo faço e tudo realizo, pois sou o Terror. Sou o medo, a angústia e o pânico. Trago o prazer no Terror, dou a ti o que queres e nada lhe cobrarei, pois vivo daquilo que você faz.

 

- Não faz sentido! – Rugiu Ghost confuso.

 

- Nada nessa vida faz sentido, rapaz. – Corrigiu ela sorridente. – E não se preocupe, nós apenas começamos a nossa história. Tenho muitas mais para lhe mostrar...

 

- Não sei se quero repetir a dose.

 

- Você queria histórias de Terror e eu estou lhe fornecendo o melhor do material. Pare de reclamar e vá dar um jeito no seu braço... Da próxima vez esteja com um papel em mãos e não seu braço, ou quando perceber você será realmente um livro. – Riu ela da própria piada. – Termine ai, estarei lhe esperando lá fora.

 

E antes que pudesse ouvir mais alguma coisa, deu as costas e saiu do banheiro, deixando Ghost a sós com seus pensamentos. Apesar de tudo a experiência fora única e lhe trouxera sentimentos que sequer imaginava existirem.


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