Ghostwriter escrita por Moona


Capítulo 1
Parte I




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Terror. O que é isso na verdade? Era o que perguntava o escritor sentado diante de sua escrivaninha. Ele batucava a caneta no tampão da mesa de madeira, observando o editor de texto vazio na tela do laptop. Suspirou duas vezes antes de coçar os olhos, abaixar o rosto e juntar a xícara de café frio, bebericando um pouco afim de encontrar inspiração naquele líquido negro. Seriam as trevas? Não, idiota demais. Uma assombração talvez... Não, muito passado já. Precisava de uma história chocante, algo que marcasse seus leitores com afinco e os fizessem passar horas acordados e com medo de dormir... E mais medo ainda de ficar acordado. Nada que começasse com um grupo de amigos perseguidos por um assassino em uma casa assombrada no topo de uma maldita colina. Nem monstros... Precisava de algo palpável, algo extraordinariamente assustador.


- Vai ser difícil... – Comentou colocando as mãos na nuca e arredando a cadeira, erguendo a cabeça para fitar a lâmpada amarelada e de iluminação fraca.


Ele era um escritor... Supria um nome famoso, ou melhor, seus maravilhosos contos e histórias eram mundialmente conhecidos. Porém esse nome não era seu, seus textos eram publicados em nome de outras pessoas. Era um sucesso anônimo... Um ghostwriter, alguém que escrevia para o benefício dos outros. Ghost, como se auto denominava, não era alguém sociável e muito menos normal. Tinha uma doença mental séria que o fazia ver pessoas que não estavam lá e que contavam histórias em seu ouvido. Seus médicos denominavam como Esquizofrenia... A doença não era ruim, apesar de privá-lo do convívio em sociedade, mas trazia o seu ganha-pão diário. As pessoas de sua mente contavam as histórias guardadas nos lugares mais obscuros e criativos, aonde nenhum humano comum conseguia alcançar... E não era a toa que conseguia ser tão bom.


Ghost tinha a estatura comum, olhos verdes cor de musgo e cabelos negros como a noite, devidamente penteados para trás. Tinha ares pomposos e repletos de luxúria, mas não passava de um homem simplório que vivia num apartamento alugado em algum lugar onde ninguém nunca o acharia, a menos que quisesse, é claro. Seu rosto era comum como o de qualquer outro que passaria despercebido na multidão. Havia se criado para isso desde pequeno, já que a sua própria existência em conjunto era prejudicial para os outros. Trajava sempre roupas monótonas como um jeans, uma blusa de cor clara e algum tênis. Tinha por volta dos trinta anos e uma vida pouco vivida, sem emoções, amores ou histórias... Com exceção daquelas que ele criava, é claro.


- E então, o que vai ser hoje?


Ele olhou para o lado. Uma mulher de cabelos loiros trajando um vestido azul bebê o observava de soslaio, apoiada na televisão antiga que pertencia a sua mãe. O apartamento em que Ghost vivia era pequeno, lotado de objetos e tranqueiras, caixas, móveis velhos, poeira e com um enorme sofá vermelho carcumido pelas traças no centro da sala, que ficava estrategicamente posicionado de frente para a televisão e a prateleira de mogno com sua maravilhosa coleção de livros empoeirados. Ahh, pensou ele enquanto analisava o pequeno apartamento com uma sala, um quarto, uma cozinha e um banheiro, não havia nada como o lar.


- Não, não quero nenhuma comédia.


Drama, um homem vestido de preto e com expressões tristes, jazia sentado no sofá. Ele secou uma lágrima e fungou o nariz, limpando-o com um lenço.


- O que acha de uma história de guerra?


Ghost meneou a cabeça negativamente. Uma mulher gordinha usando um suéter rosa surgiu da cozinha carregando um prato repleto de bolo de chocolate.


- Um bang-bang estilo faroeste com um pouco de misticismo?


- Escrevi isso da última vez, lembra? – Perguntou o escritor desinteressado.


- Eu tenho uma história de vampiros se quiser... – Retrucou um homem de estatura alta, cabelos castanhos claros lambidos para trás. Olhando de perto parecia ser maior que uma porta. – Faz um tempo que não escreve uma fantasia.


- Suas histórias são doidas demais... – Murmurou um garoto cutucando o nariz com uma mão e tocando os livros parados na prateleira com a outra, afastando a poeira. – Eu quero contar uma história infantil!


Comédia olhou reprovativa para Ghost.


- Nossas histórias nunca foram um problema para você... Então porque nos nega?


- Estou um pouco enjoado de sempre escrever o mesmo estilo. – Comentou Ghost simplesmente ao dar de ombros.


- E quer o que então? – Perguntou Aventura ao lamber o dedo sujo de cobertura.


- Algo como...


Ele se calou enquanto era observado pelas pessoas de sua mente, as únicas companhias de sua vida inteira em que podia confiar.


- Terror.


Os cinco se entreolharam.


- Você é um insensível! – Xingou Drama ao ficar de pé. – Sabe que nenhum de nós pode contar algo além daquilo que sabemos contar. Está vendo algum Terror por aqui?


Ele deu de ombros ao fechar o laptop e suspirar.


- Me deixem em paz, não estou com saco para discutir essa noite. Acho que vou sair para beber...


- Você só sai aos domingos... E hoje é a recém quinta feita. – Repreendeu Ficção cruzando os braços. – O que há de errado com você?


- É o ócio, nada de mais. – Respondeu Ghost simplesmente ao retirar o casaco de couro marrom atirado sobre duas caixas de papelão e colocá-lo. – Vão procurar algum lugar para ficar que não seja no meu pé.


No instante seguinte, a sala estava novamente vazia. Era ele e apenas ele... Precisava de algo novo para suas histórias. Algo que desse emoção a sua vida que se resumia apenas a palavras. Saiu do apartamento e logo deu de cara com sua tia-avó Dona, uma idosa de oitenta e oito anos que não lembrava o próprio nome, mas sabia muito bem os dias em que Ghost deveria pagar o aluguel, já que ela era a dona do apartamento em que ele morava.


- O aluguel, seu bastardo! Deveria ter pago semana passada! – Tachou ela enquanto envolvia os ombros com o lenço vermelho vibrante.


Se algum dia de sua vida Ghost tivesse escrito uma bruxa em seus livros, com certeza era aquela parada diante dele: Corcunda, cabelos brancos vastos, batom vermelho fogo, lápis preto nos olhos afundados nas olheiras, uma verruga acima do olho direito e uma cara marcada por pelancas salientes. O escritor retirou a carteira do bolso traseiro, coletou algumas notas do maço e estendeu a ela.


- Pode ficar com o que sobrar...


E desceu as escadas antes que pudesse ouvir qualquer coisa dela. Estava cansado de ouvir as pessoas reclamar e encher seu ouvido de besteiras. Pessoas infelizes, rancorosas e amarguradas por serem o que são. Saiu pelo portão de seu prédio e parou diante da rua, analisando o movimento ativo de carros durante a noite. Um grupo de jovens passou por ele rindo e gritando, empurrando uns aos outros numa demonstração de alegria. Porém eram eles realmente felizes? Ghost não tinha vida, amigos, um trabalho comum ou sequer memórias... Era um homem que passara todo o tempo dentro de um apartamento construindo histórias para os outros. Vivia para alguém cuja existência se baseava em aparências que escondiam uma farsa.


Olhou para uma prostituta que rebolava na esquina e se gabava dos assobios que recebia. Aquela mulher poderia ter muito mais a dar para a sociedade do que o próprio corpo, porém quem lhe dava a oportunidade? Ghost retirou um cigarro do maço que carregava no bolso, acendeu com o isqueiro em forma de caveira metálica e deu uma tragada, brincando com a fumaça que saia quente dos lábios. Vícios... Outros inimigos cruéis do ser humano. Era como se aquele pequeno artefato entre seus dedos pudessem preencher o vazio que tinha dentro de sua mente, seu coração e sua vida, tornando-o completo enquanto se apoderava de sua curta essência.


Caminhou entre as pessoas sem ser notado. Era uma sombra e fora criado para ser assim, um fantasma em meio a um monte de outros iguais a ele, porém que disfarçavam um pouco melhor. O bar ficava na quinta esquina seguindo para o sul, não muito longe dali. A noite havia a recém começado e prometia muito para todos aqueles que gostariam de se aventurar, revelando os muitos caminhos tentadores com a luz das poucas estrelas. Ghost farejou o cheiro de esgoto, asfalto, fumaça e um perfume barato de camelo durante o trajeto. Passou por um vendedor de churros e fez uma careta, imaginando o estrago que aquilo faria. Não que se importasse de verdade, mas gostava de fingir que era normal quando saia na rua. Ajudava a passar despercebido.


Entrou no pequeno bar devidamente escondido entre dois prédios antigos. A única coisa que o denunciava era uma placa piscante com as iniciais “BO”, Bar do Ócio, como era conhecido. O interior não era chique e nem chamativo, mas aconchegante. Haviam várias mesinhas distribuídas pelo recinto, todas vazias, e um pequeno balcão com prateleiras fartas de bebidas atrás. Um homem gordo que tinha metade de seu rosto quase oculto no meio da bigodeira e da barba sorriu quando o viu. “Falsamente”, pensou Ghost sorrindo de volta. Sabia que o taverneiro só o aceitava ali porque tinha dinheiro e pagaria pelo que bebia, o que não passava de um relacionamento de interesses. Além dos dois mais um casal discutia baixinho numa mesa perto da lareira apagada e outro homem bebia ao assistir televisão na outra extremidade do balcão.


- Parado hoje... – Comentou Ghost sentando em um dos banquinhos alto de madeira.


O cheiro de almíscar infestou as narinas do recém chegado.


- É estranho vê-lo aqui durante a semana... Pois é, as coisas são sempre assim nesses últimos dias. Só enche durante o final de semana. – Respondeu ele enquanto pegava um copo e colocava diante do escritor. – Vai o mesmo de sempre essa noite?


Ghost coçou o queixo.


- Preciso de algo forte e diferente... – Disse pensativo ao analisar as bebidas. – Algo terrífico.


O barman riu e sua papada avantajada por baixo da barba trançada tremulou.


- Entendo... Tenho algo que vai gostar. Espere aqui enquanto eu preparo... É conhecido como “Baba do Diabo”.


- O nome soa atraente. – Sorriu Ghost timidamente ao cruzar os dedos sobre o balcão de mármore escuro.


Olhou vagamente para o casal que trocava carícias abaixo das luzes fracas. Romance... Esse era um de seus gêneros que nunca fizeram sucessos, por isso detestava escrever. Quem precisava disso afinal? Existiam histórias românticas o suficiente por ai. Queria algo forte e impactante, inovador. Tentador, místico e sedutor. Ouviu o arrastar do banco ao seu lado e olhou na direção, fitando a estranha mulher que acabava de chegar. Tinha cabelos ruivos e presos em um coque, olhos azuis intensos, lábios carnudos e vermelhos. Ela usava um sobretudo marrom claro sobre as vestes restantes e, apesar de tudo, era alguma como outra qualquer. Alguém que não chamava tanto atenção, apenas se fosse vista de perto... Admirada com olhos de quem queria algo mais, como não era o caso de Ghost. Mulheres eram bichos complicados e engraçados, que costumavam trazer azar ao seu tipo de vida.


- Oh, você por aqui. – Comentou o barman enquanto preparava a Baba do Diabo. – Já é a segunda vez que vem para essas bandas. Não parece ser do tipo que vive em subúrbio.


A mulher sorriu calmamente.


- Eu estou aonde devo estar, na hora e no momento certo. Vivo aonde minha presença for bem vinda.


- É uma boa resposta. – Respondeu o barman sacudindo a cabeça. – Vai querer beber algo?


- Talvez um pouco do que este rapaz aqui bebe. – Ela pôs a mão no ombro de Ghost como se já o conhecesse de outras histórias. – Ele tem jeito de quem gosta de experimentar coisas novas.


O escritor estaqueou. Não era comum ter contato com outras pessoas... O simples toque o fazia estremecer. Olhou para ela e meramente lhe sorriu, tentando não transparecer o constrangimento que sentia.


- Talvez apenas hoje eu esteja.


Ela assentiu positivamente.


- Você está com sorte, porque eu sempre estou aonde eu devo estar. – Ponderou ela com um olhar fixo e um sorriso maroto.


Ghost pareceu compreender aonde ela queria chegar.


- Acho que não estou interessado no que tem a oferecer... Não costumo chamar esse tipo de serviços, moça. Não me leve a mal, é claro.


A mulher congelou por uns instantes e assimilou o que lhe fora dito. Então começou a rir baixinho, até gargalhar. O barman entregou duas taças com uma bebida tão negra quanto a própria escuridão. Bolhas avermelhadas grudavam no vidro e estouravam na superfície, produzindo um cheiro adocicado e suave.


- Aí está... A baba do diabo. Aproveitem com moderação.


O barman sorriu e se retirou, sumindo após passar por uma portinhola ao lado da prateleira.


- Você está achando que eu sou uma profissional da noite, então? – Perguntou ela assim que parou de rir.


Ghost não compreendeu. Queria apenas beber, ganhar inspiração e ir escrever, nada mais.


- Me desculpe se entendi mal.


- Não que eu não goste disso, é claro, mas meus negócios aqui são outros. – Sorriu ela enquanto deslizava a mão pelo ombro dele. – Vim aqui porque você me chamou.


- Acho que você está enganada, moça, eu não faço idéia de quem...


- Terror. – Disse ela num sibilo de lábios. – Você me chamou, não chamou? Não está interessado em minhas histórias?


Uma reviravolta no estômago de Ghost o fez levantar de súbito.


- Isso é uma brincadeira?


Ela meneou a cabeça negativamente.


- Não, não... Sou tão real e verdadeira quanto você mesmo. – Retrucou Terror ofendida ao apanhar a taça com a bebida. Cheirou um pouco e aproximou da boca, estendendo a língua para provar a Baba do Diabo. – Hmmm! Isso é o que eu chamo de algo terrífico!


Ghost abriu a boca, fechou e não encontrou palavras.


- Como... Como, digo... Você é faz parte de mim?


- Faço, mas não completamente. Uma porcentagem apenas, como em todos os humanos... Eu existo porque sou algo em comum entre as pessoas, mas também não estou completamente presente. Você está me vendo, eu estou aqui... Aliás, eu sempre estive. Acompanho seu trabalho de perto há muitos anos... O conheço como a palma de minha mão.


Ela estendeu a mão alva.


- O Barman falou com você...


- Sim, falou. – Concordou. – Eu estou aqui, não estou? Agora beba um pouco disso... É maravilhoso!


Ghost precisou de alguns instantes para compreender o que acontecia.


- Terror. – Balbuciou ele sentando novamente. – Então veio me contar uma história?


- Digamos que sim... Tenho planos para você. – Concordou ela parcialmente. Bebeu um gole e fez uma careta, sorrindo em seguida. – Quente como o inferno!


- Que tipo de planos?


Ghost ergueu a mão e apenas segurou o copo.


- A história não é melhor quando é surpreendente? Se eu lhe contar o que acontecerá, não haverá graça. Como um bom escritor deveria saber disso. Então, vai aceitar minha ajuda?


Ele levou o copo à boca, bebeu e o atirou sobre o balcão, tossindo assim que a bebida desceu ardendo por sua boca. Terror levantou e deu tapinhas em suas costas, suspirando reprovativa.


- Você e fraco, não?


Ghost fechou a cara assim que se recuperou, bateu no peito e atirou uma nota de dinheiro sobre o balcão.


- Desculpe, mas... Tenho que trabalhar.


Ele deu as costas e ela segurou sua mão.


- Espere! Vai dar para trás? Quem me chamou foi você! Não sabe como eu esperei por esse momento.


- Eu não acho que...


Terror pôs o dedo indicador no lábio dele e pediu por silêncio.


- Eu tenho o que você quer... Posso lhe garantir que terá pleno sucesso com minha ajuda. Conto-te uma história se achar preciso... Caso goste, ai nos acertaremos.


Um silêncio se fez. Ghost retirou a mão dela de perto, procurando manter a maior distância possível daquela mulher.


- Vou pensar no seu caso... Agora me deixe ir.


- Pense bem, meu amigo. A sua vida precisa de um pouco de emoção e histórias. Quando decidir que deseja falar, me chame.


Ghost não olhou para trás e continuou andando. Estava cansado... Ou melhor, repentinamente exausto. Acendeu outro cigarro antes que o vazio tomasse conta de seus pensamentos mais uma vez. “Terror” pensou ao tomar a rua, “Nunca vi nada igual.”


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