Faces Da Morte escrita por Ayelli


Capítulo 4
Um laço


Notas iniciais do capítulo

Começo acreditar que todo mundo precisa de um amigo ou pelo menos uma companhia de vez em quando, todo mundo mesmo!



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Levantei-me e caminhei até a janela do quarto abrindo as cortinas totalmente de um lado a outro. A manhã estava nublada, assim como minha alma nesse dia, tomada por uma tristeza dessas que não se sabe ao certo o motivo.

Realizei as primeiras tarefas do dia automaticamente, como arrumar a cama, tomar um banho, me vestir, escovar dentes e cabelos. Fui até a cozinha e preparei um chá, depois me dirigi à varanda na frente da casa, sentei-me melancolicamente na rede.

Eu sempre gostei de viver relativamente afastada de grandes centros urbanos e aglomerações humanas, isso sempre me proporcionou uma sensação boa de paz, tranquilidade e silêncio o que acabava contribuindo com a minha inspiração para escrever.

Porém, às vezes o silêncio também traz a melancolia que acaba me fazendo sentir necessidade de certo barulho e até um pouco de movimento, talvez para me certificar de que eu ainda não seja a única habitante nesta cidade, ou quem sabe, nesse planeta!

Sentada ali, balançando suave e tranquilamente no embalo da brisa fria que soprava, eu percorria as estradas da mente observando as recordações encostadas em cada esquina. Pude observar pessoas, momentos tristes e felizes e saudades que não poderiam ser saciadas.

Comecei a questionar-me quanto ao estilo de vida quase eremita que eu havia escolhido, talvez por certa misantropia, já que pessoas boas existiam sim, mas pareciam estar sob risco de extinção.

De repente, fui arrancada desses devaneios por um barulho. Pareciam passos nos cascalhos decorativos que rodeavam as árvores frutíferas e as roseiras do jardim. Um esquilo talvez, ou então Mimé, minha poodle, mas, com esse arzinho frio, duvido que a preguiçosa tenha coragem de sair do aconchego de sua caminha na sala, ao pé do sofá. E pensando assim novamente ouvi, eram passos pelos cascalhos, levantei-me para ver se alguém se aproximava, o que era bem improvável.

Do lado esquerdo eu tinha alguns arbustos de Blueberry, olhei diretamente para eles, não sei bem por que, talvez porque sejam meus xodós no jardim, e foi com grande surpresa que a vi parada lá. Não tinha uma expressão preocupada, ou agitada, muito menos de pressa. Na verdade, parecia alguém em um dia de folga. Folga? Ela? Bom seria, pensei.

Já fazia algum tempo que não via aqueles lindos olhos cor de mel, sua característica mais marcante em minha opinião. Eu fiquei parada por um tempo imaginado o que será que ela poderia estar fazendo por ali agora. Nas duas vezes anteriores, havia um motivo, está certo que na segunda vez acho mesmo que ela queria se divertir às minhas custas. Não, eu não fiquei chateada!

Foi então que, mesmo sem pronunciar uma única palavra, ou mencionar fazer qualquer gesto, eu soube que ela queria que eu a acompanhasse. Como sempre acontecia e era inevitável, e acredito que seria para qualquer um em meu lugar, a pergunta de todos os encontros anteriores veio à minha mente, ao que ela acenou negativamente com um gesto de cabeça e um ar meio impaciente como se pensasse: “é só isso que pensa quando me vê?” E o que mais se poderia pensar num encontro com a... morte?

Eu juro que ouvi um suspiro de impaciência ao mesmo tempo em que a senti dizer “venha!”. O quê? Eu “senti”? É isso mesmo, pasme, eu estava me comunicando mentalmente com a... morte. Eu nunca me achara uma pessoa muito normal, mas isso estava ficando estranho até mesmo para mim.

Não tinha alternativa, peguei meu casaco e fomos em direção ao carro. Não! Não me perguntem nada, apenas acompanhem a história.

Enquanto eu dirigia, ela ia dando a direção, sem dizer nada eu sabia exatamente onde ela queria ir: ao centro da cidade. Deve ter me ouvido pensando sobre o silêncio do sítio.

Estacionei em uma rua de pouco movimento, descemos e começamos a caminhar. Confinada no meu paraíso particular de onde eu saía em casos de extrema necessidade, eu quase havia me esquecido de como a vida possuía um ritmo frenético fora de lá.

Mas o que ela queria que eu visse era o que estava por trás de todo esse agito, pessoas extremamente infelizes, em sua grande maioria. Ainda que estivessem em grupos, rindo e falando sobre coisas aparentemente divertidas, seus corações estavam solitários e vazios. As pessoas estavam sempre juntas, mas se abandonavam constantemente.

Eu podia sentir suas palavras me falando sobre as mazelas humanas.

Observe aquela senhora, dizia ela, indicando uma mulher que andava semi- arqueada carregando sobre si o peso de seus talvez 80 anos. Seus olhos negros pareciam poços profundos, opacos, tristes, tinha vontade de morrer.

Mais adiante, uma jovem caminhava toda vestida de preto, cabelos coloridos, olhos borrados de preto, não era uma produção como as que se vê por aí de jovens que se produzem de acordo com o estilo de vida de gostam, mas uma desorganização geral, como alguém que grita pedindo atenção, seu estado alterado era evidente, possivelmente sob o efeito de drogas ou álcool, e sozinha...

No outro lado da rua, uma mãe e seu filho deficiente. O amor e a dedicação dela eram evidentes, mas sentia falta de uma vida própria. As limitações de seu filho eram também impostas a ela, claro que ela poderia escolher estar feliz e acreditar que tudo aquilo poderia ser um presente para seu próprio crescimento, mas preferiu estar sozinha...

No bar em outra esquina, um homem bebia àquela hora da manhã, amargurado, desiludido, desempregado, um trapo humano. Ele não via luz no fim do túnel, mas sequer procurava por ela, escolheu estar sozinho...

Paramos numa praça, em frente a um orfanato. Crianças brincavam no pequeno parque dentro dos limites das grades. Ela olhava um garoto em especial e queria que eu o olhasse com muita atenção. Assim que coloquei os olhos sobre ele, percebi uma luz dourada que emanava de todo o seu corpo, não entendi nada.

É simples, ela me disse, esse garoto assim como todos os outros aqui, tem uma escolha, a diferença é que a dele já está feita e me parece óbvia.

As pessoas escolhem sofrer, independente do que lhes aconteça elas podem escolher de que maneira querem enfrentar a vida, da maneira mais fácil ou da maneira mais difícil. Escolher ser feliz minimiza o problema. Amar ao próximo e cuidar dele com alegria, minimiza mais problemas ainda. Você seria capaz de me dizer quantas luzes viu por aí enquanto caminhávamos? Perguntou-me ela, olhei em volta mais uma vez e em meio àquela multidão que passava o tempo todo para lá e para cá, havia talvez meia dúzia de gente brilhando.

Voltamos ao automóvel, ela me olhou dizendo com o pensamento ”vai voltar sozinha, tenho um compromisso”. Virei-me ao perceber uma agitação diferente no final da rua, havia um aglomerado de pessoas. Quando voltei para olhá-la, ela havia sumido, fui em direção às pessoas e no centro do grande círculo estava aquela velha senhora, caída no chão. Automaticamente, ergui os olhos a tempo de vê-la dobrando a esquina, carregando a senhora nos braços. A morte de folga? Claro que não!

Eu já conhecia aquela cena, o desenrolar da história, portanto. Sabia que tanto a minha presença ali como a de todos os outros não teria mais utilidade, peguei meu carro e me dirigi ao orfanato. No caminho pensava no que ela queria me dizer: eu tinha uma bela casa, uma vida boa, não fazia mal a ninguém, mas também não fazia o bem. Abri mão da convivência com outras pessoas por acreditar que o silêncio me faria mais feliz, no entanto, às vezes ele me incomodava bastante, e provavelmente eu morreria sozinha como aquela senhora. Mas a escolha era minha.

Chegando ao orfanato, me ofereci como voluntária. No início eu ia uma vez por semana e passava o dia lendo e contando histórias para as crianças. O garoto, Antonio era seu nome, tinha nove anos e costumava me esperar no portão para me ajudar a carregar os livros. Depois passei a ir duas vezes por semana e no fim ia três. Montamos uma mini- biblioteca com a ajuda que consegui dos comerciantes da cidade para adquirir livros e mobiliário. 

Afeiçoei-me tanto a Antonio que decidi adotá-lo. Lembro-me como se fosse ontem de todos esses acontecimentos. Me tornei uma escritora de certo prestígio e Antonio se formou primeiramente em medicina e depois em letras ajudando nesse mesmo orfanato tanto como médico voluntário como contador de histórias uma vez por semana.

Ela me fez entender que ninguém pode ser feliz criando um mundinho perfeito e vivendo nele sozinho, que o silêncio não traz toda a paz necessária, às vezes é preciso um pouco de barulho para se sentir em paz e que eu tinha uma escolha.

O que lamento é que agora a “minha hora” está cada dia mais próxima, talvez seja pelo fato de eu estar completando 85 anos. Vou lamentar muito se não puder mais vê-la depois que ela me levar, seja lá para onde for que ela costume levar as pessoas, isso ela nunca me disse.

Bom, essa não foi a última vez que a vi. Não sei por que, mas acho que entre nós criou-se uma espécie de laço, fico pensando que talvez “ela” se sentisse muito sozinha, talvez devido ao seu tipo de trabalho, eu não sei.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem!♥



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