1996 escrita por Manuzíssima


Capítulo 2
Depois de um fim de ano, há sempre um (re) começo




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Ríamos muito naquelas tardes quentíssimas que foram as dos últimos meses de 1995, conversamos, fizemos mil planos que envolviam desde sequestros a fugas milaborantes. Não colocamos nada em prática, hoje sei que era uma forma de conviver com aquele buraco que estava sendo aos poucos cavado nos nossos peitos sem que nada pudéssemos fazer além daquelas pás inúteis de areia de sonhos.

Um dia antes da família do Daniel viajar, ficamos sós na casa dele, porque a mãe tinha que resolver alguma coisa da burocracia da casa deles. Foi nesse dia que nós tivemos nossa primeira vez. Quase morri de vergonha quando ele tirou minha blusa e não consigo lembrar como foi mesmo que fiquei sem o restante da roupa. Lembro mesmo, e intensamente, dos olhos negros dele nos meus enquanto ele pesava o corpo dele em mim; lembro muito do cheiro dele, das gotas de suor que brilhavam na testa dele e talvez na minha enquanto nos explorávamos na nossa estreia; lembro-me do gosto do Daniel na minha boca, mesmo horas depois enquanto fingidamente assistíamos ao que quer que fosse que estivesse passando na TV esperando a mãe dele chegar; ele tinha gosto de saudade, de paixão adolescente, de biscoito de arroz e de vontade que durasse mais um pouquinho; lembro muito do cabelo que caía no olho; da pele branca, mas que estava rosada naquele momento, não sei se do calor, da timidez que ele nunca me contou se sentiu ou da falta de jeito que nem eu nem ele tínhamos devido à nossa inexperiência.

Não foi mágico como se conta nos filmes americanos, nem pornográfico como se conta nos filmes brasileiros, foi íntimo, dolorido física e metafisicamente e teve gosto de “tchau”.

Agora, nesse novo ano escolar, me sentia deslocada no meio daquele monte de gente conhecida e estranha. Não queria amigos nem amores, tinha gradativamente me afastado do Daniel, as cartas rareavam, minhas e dele. Talvez inconscientemente eu não quisesse prolongar o inevitável, pois amores à distância na adolescência não podem dar certo... ou podem? Resolvi que não pagaria para ver. Queria sobreviver ao último ano na escola sem marcas e sem dores, queria apenas o vazio no peito que Carolainne e Daniel deixaram que chegava a quase ser doce de tão intenso.

Frequentava assiduamente as aulas, caminhava dolorosamente pelas mesmas ruas do bairro, e levava a vida morna que havia escolhido levar. Não queria amigos nem inimigos, era fria, não dava a mínima para o que quer que acontecesse na sala de aula ou na escola. Eu não me julgava brilhante mas mantinha as notas altas para me livrar o mais cedo possível da rotina escolar, aquele ambiente me trazia muitas lembranças e elas nem sempre eram saudáveis.

No meio dessa suposta calmaria, minha tia resolveu que comemoraria o aniversário dela. Achei meio infantil da parte dela e comentei apenas com minha mãe já decidindo não ir, aleguei que seria péssima companhia e enchi a cabeça dela com inúmeros argumentos. Mas, no final, não teve jeito, dona Socorro quando queria não ouvia nada do que lhe diziam, apenas impunha:

– Ok, filha, você vai sim. Já chega de luto, de cara inchada de tanto chorar, de música deprê do rádio. E, no fim das contas, é apenas uma festa. Você vai.

E bateu o martelo. Sofri até o dia da festa. Debatiam-se dentro de mim inúmeras ideias desde traição ao luto pela Carolainne até traição ao amor por Daniel. Apenas sabia que a dona Socorro, minha mãezinha, não se daria por vencida e eu iria.

Coloquei um vestido preto (sim, iria, mas manifestaria indignação!) e fomos. No meio da festa, todo mundo dançando, comendo, bebendo, dando risada, algumas primas que não via a algum tempo que insistiam que eu fosse me divertir, alguns olhares vazios que enviei como resposta e, subitamente, alguém senta na minha mesa vazia.

– Oi!

Nem olhei.

– Oi! – pensei que devia ser um desses primos chatinhos que acham que, porque me viram andando de calcinha quando tinha 5 anos, são íntimos.

– Você estuda na minha sala.

Anh?

– Ok. – então, meu bem, você deve saber que não gosto de conversa, pensei mas não disse, apenas virei em sua direção e lancei meu olhar vazio.

– Pensei que você era mal-humorada só na escola. – disse ele disfarçando muito um ar de riso.

– E quem você pensa que é para julgar meu humor? – ah, era uma maneira muito própria de me divertir e eu sabia fazer aquilo com maestria: afrontar, fazer recuar e rir da cara de espanto de quem quer que fosse. Se ele queria...

– Ah, foi bom você perguntar. Faz tempo que quero dizer para você quem eu sou, mas você não dá nenhuma chance, nem sei como aquele carinha conseguiu.

Carinha? Sério? Ele acha que vai falar assim do Daniel? Naquele momento tinha que escolher a melhor estratégia “espanta-chato”: o silêncio mortal ou a habilidade linguística. Resolvi pela primeira opção.

– Ok – ele continuou olhando profundamente nos meus olhos – eu sabia que você ia fazer isso. Ou isso ou me humilhar com essa sua língua ferina, mas hoje, quando vi você entrar por aquela porta, decidi que era meu dia de sorte e eu não ia desperdiçar. Bom, meu nome é Fernando, eu sento do lado oposto ao seu na sala. Aliás, de lá dá para ver perfeitamente todas as suas reações enigmáticas ao que se passa na sala. Sento na mesma cadeira desde o ano passado, mal pude acreditar quando tive catapora no período das provas finais e acabei perdendo o ano. Era a Providência: eu repetiria o ano na sua sala!


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