As Nem Um Pouco Felizes Histórias De Amor. escrita por Yang


Capítulo 37
Um carro preto e uma morte.


Notas iniciais do capítulo

Eita que esse capítulo ficou "do babado"!! cheio de coisinhas legais, e outras coisinhas tristes... como viram no nome, alguém morre aqui '-' kkk ok, não sei pq eu ri!
Entãooo, divirtam-se.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/352699/chapter/37

#Narrado por Daniel#

Algumas semanas depois...

– Daniel! – gritou Diana no meio da rua, segurando um papel em mãos e saltando de alegria. – A minha história foi uma das aprovadas!

Os olhos dela brilhavam como o de uma criança quando ganha um brinquedo novo. Ela pulou nos meus braços e eu a segurei com força.

– Eu sabia! Eu falei pra você! – disse sorrindo, feliz por ela ter conseguido.

– Mas é só a primeira fase. Eles ainda irão lê-la. Fui escolhida apenas pela sinopse, e isso já é maravilhoso. – ela apertou com força o colar que eu havia dado a ela. – Acho que a medalha deu sorte.

– Tenho certeza que deu.

Eu a levei pra casa, pois ela eufórica mal conseguia pensar em como voltar. Lucas havia saído cedo graças a ausência do professor de seu último horário.

– Sua mãe já sabe do livro? – perguntei enquanto estávamos próximos a casa dela. Seu silêncio prolongado me serviu como resposta. – Ah, Diana! Não acredito.

– Eu vou contar a ela ainda hoje! Prometo. – disse ela, mantendo a esperança com um sorriso no rosto.

– Você vai contar assim que chegarmos a sua casa ou então eu conto. – afirmei puxando sua mão para que ela caminhasse mais depressa.

O nervosismo habitava em Diana agora. Ela mal conseguia achar suas chaves dentro da bolsa. Revira impaciente cada compartimento até encontrar o chaveiro cor-de-rosa no fundo. Dentre as cinco chaves, testou todas (inclusive a minha paciência em esperar ela acertar a chave).

– Pronto! – exclamou ela erguendo a sobrancelha direita.

Ao entrar, a primeira visão que tivemos foi a de Lucas jogado no sofá comendo pipoca doce e assistindo um seriado americano. Ele nos olhou e depois voltou a atenção exclusiva para a televisão.

– Ué, o que houve Lucas? – perguntou Diana intrigada com a reação do garoto.

– Nada. – respondeu ele diretamente.

– Tem certeza? Você não me parece nem um pouco bem. – ela aproximou-se dele e puxou sua panela de pipoca.

– Ah, Diana! Me dá! – gritava ele.

– Não! Primeiro me diga o que aconteceu. Você ainda nem trocou de roupa, está com a farda desde que chegou e eu sei que chegou cedo em casa. Você também estava de dieta, porque está comendo isso? E você nem gosta dessa série. Diz que é violenta demais. – continuou ela.

– Juro que não aconteceu nada. – respondeu ele calmamente, com os olhos claros brilhando em súplica. – agora, me devolve a pipoca.

Ela sabia que ele estava estranho, e sabia também que ele não iria lhe contar sobre nada agora. Cedeu a seu pedido e lhe devolveu a panela com a condição de que depois ele tomasse um banho e trocasse de roupa. O acordo foi fechado. Ela perguntou por dona Daniela e ele lhe respondeu que ela havia saído para fazer compras e que logo voltava.

Diana seguiu para seu quarto e eu a acompanhei. Ela jogou a mochila pesada sobre a cama e eu fiz o mesmo.

– só preciso tomar banho e assim que ela chegar eu conto sobre o livro. – disse ela se aproximando de mim e me dando um beijo.

– ok, faça isso mesmo. – sussurrei.

Diana ficou ali por um tempo, apenas olhando pra mim, pisando a ponta de seus pés nos meus, enquanto seus braços agarravam minha nuca. Ela era tão pequena, até mesmo tentando equilibrar-se perto de mim nas pontas dos dedos.

Eram momentos como esses que sempre me soavam bom demais para ser verdade. Diana soltou-se dos meus braços e pegou a toalha que estava pendurada em um gancho próximo à porta.

– Fica aí, eu já volto. – avisou ela.

Sentei na ponta da cama e fiquei sem pensar em nada interessante por parte do tempo. Avistei uma pequena bola no canto do quarto e brinquei feito uma criança com ela. E mesmo pequena, a bola saltava alto. De repente a perdi das mãos e ela caiu debaixo da cama de Diana, levando-me a agachar e procurá-la entre caixas de sapatos e uma caixa especial, enfeitada e empoeirada, cujos detalhes me chamaram a atenção.

Não havia nela escrito “não mexa”, e mesmo que tivesse, eu seria curioso o suficiente para bisbilhotá-la. Abri e me deparei com o colar de Diana, o que ela costuma usar escrito “sonhadora”, alguns DVDs e fotos antigas, um livro velho e um envelope. Sentei novamente na cama para vasculhar com mais atenção as raridades que existiam ali. Abri o envelope e vi uma carta. Papel um pouco amassado, letra discreta e comum.

– “Príncipe sem cavalo”? – sussurrei para mim mesmo.

A data ainda entregava que aquilo era coisa antiga, época da infância, mas por que guardar algo assim? Eu sei que lembranças são necessárias, mas as que não tem importância podem ser descartadas. Eu não via importância naquilo. Devolvi ao envelope antes que ela me visse bisbilhotar suas coisas.

Diana entrou no quarto sem muito alarde. Os cabelos ainda molhados vinham sendo secado por ela na toalha branca que ela pegara antes. Ela desconfiou da minha falta de jeito quando entrou no quarto, mas não questionou sobre isso. Mas eu queria saber sobre a história da carta e o admirador secreto com um nome estúpido.

Ela falava algo sobre Lucas estar estranho, mas meu pensamento não estava fixo nessa ideia ainda. Depois, começou e reclamar da demora da mãe. Guardou a confirmação da próxima etapa do concurso na gaveta e então olhou para o chão. A caixa estava boa parte pra fora. Era uma furada e tanto da minha parte.

– Mexeu nas minhas coisas? – questionou ela séria.

Eu murmurei que não, mas ela não acreditou.

– Ok, eu só vi a carta do... Como é o nome mesmo?

Diana respirou fundo, impaciente a minha compostura.

– Príncipe sem cavalo. – respondeu ela.

– Exato! Foi esse mesmo que eu li. – disse a ela.

– Não deveria ter lido aquilo. É vergonhoso demais!

– Por quê? É uma carta de amor bem bonita...

Ela riu da minha tolerância com isso.

– É tão antigo, nem sei por que guardo aquilo ainda. – explicou ela. – acho que é falta do que fazer.

– Não, eu acho que foi a primeira vez que você se sentiu especial pra alguém, mesmo que para alguém no anonimato. – deduzi.

– Mas agora eu tenho você. – afirmou ela puxando a caixa e tirando de dentro dela o envelope. – e não preciso mais disso. – ela o amassou e jogou no pequeno cesto de lixo ao lado de sua escrivaninha.

Sorrimos um para o outro e então ouvimos um barulho vindo da sala. Era Daniela que havia chegado. Cheia de compras na mão, me cumprimentou com um grandioso sorriso e um “Daniel!”, como sempre fazia.

Olhei para Diana, interpretando um sinal de que seria a hora certa para contar a sua mãe sobre a aprovação de sua história para a próxima fase. Em meio a embolações e descompromisso, ela quase desiste de confessar.

– Talvez queira contar algo à sua mãe, não acha? – perguntei a Diana que se retorceu no sofá.

– Não tenho certeza... – respondeu ela.

Lucas parecia curioso com a situação e empolgou-se:

– Quero saber também. – afirmou ele olhando para nós dois.

Dona Daniela que passou por nós ficou tão curiosa quanto Lucas.

– Ok, ouvi algo me envolvendo por aqui... – falou ela sentando-se ao lado de Lucas. – O que é?

Todos olharam para Diana naquele momento, tornando a pressão sobre ela maior. Eu a cutuquei com o braço em sinal de alerta para que logo ela prosseguisse com aquilo.

Diana respirou fundo e contou tudo o que fizera durante quase três meses. Falou sobre o projeto da escola e seu livro. Enquanto isso, a atenção de Lucas e Daniela aumentava na medida em que a história ficava mais interessante até o ponto em que ela contou sobre sua aprovação na primeira fase.

– Ai meu Deeeus! – gritou Lucas enquanto chacoalhava as mãos em um ato de euforia. – Não consigo acreditar, Di!

A mãe de Diana estava tão feliz e emocionada que palavras não eram suficientes para ela naquele momento.

– Eu não sei o que dizer filha! Estou muito orgulhosa de você. – ela abraçou Diana e passou suas mãos sobre o rosto dela em um gesto de carinho. Aquele afeto materno me embrulhou o estômago.

Depois de a novidade ser contada também ao pai de Diana (que havia ligado horas depois pra saber se eu e ela já havíamos terminado o namoro), ela deu uma pequena resenha do livro que escreveu ao irmão que curioso por natureza quis lê-lo.

– Eu não posso mostrar. – disse ela certa de sua escolha.

– Por quê? – perguntou Lucas chateado.

– Porque pode dar má sorte.

Foi a resposta dela. Na verdade, qualquer coisa que se falava sobre o livro era motivo para Diana considerar “má sorte”.

– Tem que parar com isso, ele lendo ou não, não ira afetar em nada no resultado do concurso. – repliquei.

– Mas não quero que todos saibam do final do livro ou saiam por aí dando palpite sobre ele. Eu posso acabar achando a história estúpida! – defendia-se ela.

– Você não fala coisa com coisa, Di. – disse Lucas enquanto preparava um chá. Diana apenas revirou os olhos.

Fiquei na casa dela o suficiente para irritá-la a tarde inteira. Perguntava sobre o livro constantemente, e apanhei diversas vezes por conta disso. Levei almofadadas na cara, bofetadas e alguns arranhões.

– Não fala desse livro, eu imploro! – suplicava ela aborrecida.

Concordei em parar e achei que já era hora de ir pra casa. Ela hesitou em me ver ir embora, disse que mal passávamos algum tempo junto, o que era mentira porque sempre que podia eu estava ali com ela.

– Sinto saudades das nossas discussões sobre livros. – murmurou ela.

– Me indique um. Eu leio e digo o que acho sobre ele. – sugeri a ela enquanto pegava minha bolsa da sua cama.

Ela passeava os olhos entre as prateleiras cheias de capas coloridas, esbanjando intelectualidade em quarto de uma adolescente de dezessete anos. Ela retirou um, dois, três... Nada. Parecia deduzir o que iria e o que não iria me agradar. Conheci meu gênero, meus gostos a ponto de não me permitir dar opinião sobre nada. Puxou um grande livro de capa branca com letras pequenas e me entregou. Era de Fernando Sabino: O menino no espelho. Sorri porque ele me pareceu infantil.

– Infantil demais, não acha? – disse a ela enquanto esfolheava o livro que continha alguns desenhos.

– Não é infantil, seu idiota! – exclamou ela, brava do meu comentário e xingando-me pela quarta vez. Mas, idiota não soava como uma ofensa quando ela falava. – Vai ler agora.

Eu guardei o livro na bolsa antes das consequências serem maiores que um simples “puxão de orelha” daqueles.

Fui pra casa. Eu estava cansado, implorando aos céus por banho e que a minha avó não discursasse por uma hora sobre a minha irresponsabilidade de não avisa-la onde eu estava.

Antes de ir para a minha rua, passei no mercado onde Leandro trabalha e comprei alguns salgadinhos e refrigerante. Eu não o vi lá. Talvez ele estivesse no estoque, mas isso não importa.

– Cinco reais, querido. – diz a moça do caixa que fala mastigando um chiclete. Puxo a carteira no bolso e retiro uma nota de dez reais. Entrego a ela e espero que dessa vez ela não me dê troco em balas. Ela aperta na caixa registradora e ela se abre. A moça conta as moedas e me entrega, junto do cupom fiscal.

– Obrigado. – digo.

Saio do mercado e começo a andar pela calçada. Tenho a séria mania de observar o chão, então eu sempre caminho de cabeça baixa, fitando meus pés. Ao dobrar a esquina, percebo que um carro preto me segue sorrateiramente desde o quarteirão do mercado. Paro próximo a um poste e espero ele passar. Porém, o carro não passa. Estacionam do outro lado da rua, bem perto de mim. Eu encaro, forçando a visão para conseguir enxergar a pessoa que dirige, mas não consigo ver. Penso se devo voltar ao mercado ou se devo ir embora, mas a rua está quase deserta e isso parece um filme de suspense.

Outros carros passam na rua, mas o carro preto continua parado. Ele está ligado, e eu sei que está me esperando sair dali para me seguir.

Tomo coragem e começo a andar. Meus passos aceleram e percebo que o carro não me seguiu dessa vez. Sinto um alívio e volto a uma rápida olhada, ele continua parado. Quando chego ao final da rua, vejo-o dobrando para o outro lado e indo embora.

– acho que estou ficando paranoico. – murmuro.

Chego à rua de casa, e finalmente a tensão se vai. Abro a porta e vejo a minha avó sentada em sua cadeira de embalo dormindo. Ela ouve o barulho da porta bater e acorda.

– Daniel! – exclama ela assustada. – eu já estava preocupada com você menino! Onde estava?

Eu dou um pequeno sorriso e lhe explico o que aconteceu. Ela compreende, ainda mais por envolver Diana.

– vou tomar banho. – aviso a ela enquanto guardo o que comprei na geladeira.

Era tudo o que eu precisava, de um banho. Enquanto a água gelada me refresca, não consigo tirar o pensamento daquele carro preto. Nunca me aconteceu nada do tipo e eu ainda acho que quem quer que estivera naquele carro queria alguma coisa comigo.

Visto uma roupa amarrotada, solto algumas notas no violão e começo a leitura do livro que Diana me emprestou. Bebo um gole do refrigerante que comprei e penso como sinto falta de bebida de verdade.

Logo no início, o livro me ganha pela simplicidade. Um diálogo define tudo:

“- Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto de sua vida?

– Quero – respondi. O segredo se resume em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:

– Pense nos outros.

Diz que devemos pensar nos outros para obtermos felicidade. Ultimamente, eu tenho feito muito isso. Antes, não me importava com o que as pessoas iriam achar se eu fizesse alguma coisa, mas agora, antes de assumir qualquer atitude, eu penso “o que Diana iria achar se eu fizesse isso?”, e garanto, parte das coisas ruins que deixei de fazer submete-se a esse pensamento.

Meu celular toca. Uma mensagem da Catharina. Reviro os olhos e penso mil vezes se devo abrir e lê-la ou deixá-la ali e apagar depois. Eu encaro o celular por alguns minutos e então abro a mensagem.

Cathy: “Daniel, aconteceu uma coisa horrível!!!”.

Eu releio a mensagem outras três vezes para ter certeza de onde estou me metendo. Seria um problema real ou alguma confusão armada por Catharina? Eu realmente não sei, mas não valia apenas ler um livro que te diz para “pensar nos outros” e cinco minutos depois ignorar uma mensagem dessas. Catharina não era a mais certa das garotas do mundo, mas devo muito a ela.

Dan: “O que houve?”

Ela demora para responder, e alguns minutos depois, a mensagem chega explicando uma situação tenebrosa e digna de atenção.

Cathy:” O Renan! Ele tá sendo perseguido pelos traficantes e os caras já sabem onde ele mora, os caras já sabem onde todos os amigos dele moram! Disse que se ele não pagar até amanhã, o inferno na vida dele vai começar. Daniel, hoje eu vi um carro me seguindo aqui perto de casa, e eu estou com muito medo! E se forem eles? Eu não estou ficando paranoica. Acho que Renan me meteu nessa furada, e eu não sei o que fazer!”

Minha garganta fica seca. Meu coração dispara e eu pareço estar perdendo os sentidos:

– O carro... – murmuro a mim mesmo.

Dan: “Como era esse carro?”.

Cathy: “Ele era preto, não sei qual era a marca, mas era grande. E não dava pra ver ninguém lá dentro.”.

Era a descrição exata do carro que eu vi me seguindo há algumas horas. O arrependimento bate a porta: porque não vi a placa?

Dan: “Se ele te meteu nisso, me meteu também. Um carro preto me seguiu hoje também.”.

***

Sigo para frente de casa e encontro Catharina quase que em um surto psicótico.

– Dan, acho que tudo deu merda cara! – exclama ela com as mãos na cabeça.

– Ei, ei! A gente ainda não sabe de nada. Calma! Pode ser que tudo não passe de uma coincidência. – eu queria acreditar, mas aquele meu consolo não servia de nada.

Ela fica calada enquanto senta na calçada e aperta as mãos, ainda nervosa. Eu queria acalmá-la, mas eu precisava me acalmar primeiro.

– Quem contou essas coisas a você? – perguntou a ela.

– Foi a mãe do Renan. Telefonaram pra lá ameaçando a família toda e falando que iriam acabar com os amigos deles também. Ela tinha meu número e perguntou se eu sabia de alguma coisa. Depois ela me alertou pra ter cuidado, mesmo que eu não tivesse envolvimento com isso. Aí hoje, depois da escola, um carro preto me seguiu.

Eu continuava sem expressão, mas meu rosto estava gelado demais.

– E o Renan? Onde ele está?

– Ele não aparece em casa há quatro dias! Os pais já deram desaparecimento na delegacia, mas ontem, no mesmo dia que os caras ligaram para ameaçar a família, ele ligou também. Disse que tava na casa de um amigo e que não podia voltar, pois iriam matar ele! – respondeu ela com lágrimas nos olhos.

Eu não sabia o que dizer. Levei as mãos ao rosto e esperava acordar de um sonho ruim. Sentei ao lado de Catharina e ambos encaramos o vazio. Eu não sei o que ela pensava, mas eu pensei em mim, no Renan e no Felipe. Na época em que éramos amigos de verdade. Ao certo, eu não sei se sempre fomos amigos, mas cada momento ao lado deles tinha sido intenso.

Lembrei de quando pulamos o muro da escola para fugir de uma prova. Quando íamos até são Conrado para observar as pessoas que saltavam de asa-delta. Quando Felipe “roubou” o carro do pai e dirigimos em um túnel, ouvindo música no rádio e gritando como loucos. Das festas em que éramos convidados por sermos “legais” e “chapados”... E lembrei de um dia.

“Estávamos bêbados, pra variar, e os dois tiraram um maço de cigarros do bolso e começaram e soprar fumaça na minha cara. Eles me achavam careta por não fumar, mas eu não via graça naquilo.

Caminhávamos em uma rua pouco movimentada do Rio de Janeiro. Eram duas ou três horas da manhã, e Felipe na época estava aprendendo a andar de skate.

– Saca o lance! – disse ele colocando o skate no chão e se preparando pra subir.

– Cara, isso não é uma boa ideia. – deduzi. Ele estava bêbado e chapado, mal conseguia ficar de pé no skate, mas insistiu em subir.

Andou poucos metros e na rampa improvisada, caiu de cara no chão. Eu e Renan rimos a ponto de nos jogarmos na calçada.

– Porra! Eu não consigo respirar! – gritava Renan, rindo como uma criança, porém, bêbado.

Felipe levantou-se com dificuldade e seu nariz sangrava.

– Acho que quebrei meu nariz. – disse ele com a voz fanha.

O riso eufórico voltou, agora Felipe também ria, mesmo que seu nariz estivesse doendo. Ele puxou um pano da bolsa e colocou no nariz para estancar o sangramento.

– Você tem que ir ao médico. – avisei.

Ficamos ali, os três jogados na sarjeta feito mendigos. Bebemos mais um pouco e Renan levantou-se para um discurso do qual não esqueceremos:

– À nós, um brinde! Por sermos pessoas sem escrúpulos, sem vergonha e sem dignidade! – exclamou ele erguendo a bebida.

– Ei, eu ainda tenho dignidade! – replicou Felipe.

– Sua dignidade se foi, junto com seu nariz. – afirmou Renan rindo. – E nesta noite, a cidade ainda é nossa. Somos a loucura da noite, os garotos perdidos! E no fim de nossas vidas, ainda lembraremos esse momento. Do agora! Sabe por quê? Porque não desperdiçamos um único momento da nossa vida pensando nos outros! Somos reis de nós mesmos! Não precisamos de ninguém além de um ao outro, parceiros. – ele encerrou com um último gole e jogou a garrafa longe que se quebrou fazendo um barulho estrondoso.

A garrafa ficou ali, em pedaços. E nós fomos embora.”.

Olhei para Catharina e agora ela chorava. Eu coloquei um braço envolta dela e ela pôs a cabeça no meu ombro. Ficamos ali esperando sabe deus o que. Talvez uma notícia ou a coragem de ir até a casa de Renan e saber como a família dele estava.

Leandro chegou. Viu a cena incomum minha com Catharina e franziu a testa em dúvida:

– Algum problema Daniel? – perguntou ele.

Catharina ergueu a cabeça e nós nos levantamos. Eu queria dizer a ele o que estava acontecendo, e que era melhor tomarmos cuidado, mas sabia que provavelmente ele recorreria à polícia.

– Não, nenhum. – respondi.

Ele olhou para mim e depois para Catharina que enxugava as lágrimas discretamente.

– tudo bem então. Boa noite Cathy. – disse ele.

Me despedi dela e lhe disse que no dia seguinte iríamos juntos a casa do Renan para mais detalhes da situação.

Naquela noite, eu não consegui comer. Não consegui dormir. Também não fui à escola na manhã seguinte, e acho e Catharina fez o mesmo.

– O que houve, não se sentiu bem hoje? – perguntou a minha avó me servindo uma xícara de café. Sentei a mesa e pus as mãos na cabeça. Ela parecia um relógio bomba prestes a explodir a qualquer momento.

– dor de cabeça. – respondi.

– Vou pegar um remédio pra você.

Ela foi até o armário de medicamentos e voltou com uma cartela. Retirei dois e ingeri.

Não consegui tomar café ou comer qualquer outra coisa. Meu estômago revirava aos poucos. Fiquei horas no banheiro como se a água fosse levar embora a dor de cabeça e as preocupações que a acompanhavam.

Olhei o celular: mensagem da Diana.

Di: “Porque não veio pra escola? Aconteceu alguma coisa?”

Eu confiava tanto nela, mas tinha medo de lhe contar. Quanto menos gente envolvida nisso, melhor.

Dan: “Eu não ouvi meu despertador. Perdi algo importante?”

Di: “Não, apenas exercícios de rotina mesmo. Eu fiquei preocupada.”

Dan: “Tá tudo bem, te amo.”

Di: “Eu também te amo.”

Não enviei mais mensagens. Fui até a casa de Catharina onde a mãe dela me recebeu muito bem.

– Ela está no quarto. Vou chamá-la. – disse dona Rita.

Catharina desceu as escadas rapidamente e sorriu ao me ver.

– Daniel! – exclamou ela. Cathy me abraçou. – Você também não foi à escola...

– Não tenho condição psicológica de ir à lugar algum em meio a essa tensão. – disse.

Ela concordou. Pediu que eu sentasse e esperasse ela falar com a mãe dela e então poderíamos ir à casa de Renan.

– Você contou a sua mãe sobre isso que tá acontecendo? – perguntei sussurrando.

– Sim, ela está preocupada, mas não contou ao meu pai. – respondeu ela vestindo uma jaqueta. – Você tá com cara de que não contou a ninguém, nem mesmo a sua namoradinha. –continuou. Ela tinha razão, mas eu não disse nada.

Saímos dali e fomos para o ponto de ônibus. Renan mora no mesmo bairro que Diana, separados apenas por poucas esquinas.

Atravessamos a rua e encontramos o pai de Renan na frente de casa, limpando a calçada.

– Bom dia gente. – cumprimenta Diogo tímido. Ele nos convida para entrar. A mãe de Renan está dando comida à filha, irmã de Renan, que é autista.

– Olá dona Maria. – cumprimenta Catharina.

– Catharina! Como é bom ver você! – ela levanta-se para um abraço. – Daniel, quanto tempo!

Eu a cumprimento e logo a alegria se vai.

– Vieram saber notícias do Renan, certo? – questiono Diogo. Eu e Cathy assentimos. – Fiz um empréstimo ontem, mas não foi aceito. Nossas esperanças se foram.

Maria e Diogo parecem abalados demais. No fundo, amam incondicionalmente o filho e farão de tudo para salvá-lo.

– Quanto ele deve, vocês tem noção? – perguntei.

– Os caras que ligaram disseram que ele deve mais de dois mil, pois ele pegava droga escondido pra distribuir para os amigos e pra vender em festas. Porém, gastava o dinheiro em um só dia com bebida e besteiras. – respondeu.

Mais de dois mil reais? Como o Renan pode?

– Sinto muito. – digo a eles. – Eu também não tenho recurso algum pra ajudar, minha família nem sabe disso.

– É, eu também. – afirmou Catharina.

– Nós compreendemos. Vocês não tem responsabilidade alguma e sentimos muito pelo Renan ter metido vocês na história. – disse dona Maria.

– A culpa não foi toda dele. Andávamos com ele, éramos amigos. Não sabíamos que iria dar nisso. – continua Catharina.

Ela tinha razão, éramos amigos... “Diga-me com quem tu andas e direi quem tu és”. A frase martelou a minha cabeça naquele momento.

Ficamos lá por uma hora e então, quando saímos de lá, um carro preto estava estacionada a alguns metros de nós. Catharina apertou a minha mão com força, e eu tremia e temia.

– Voltem, entrem! – ordenou Diogo.

Nós voltamos e ele trancou a porta. Observamos o carro passar em frente a casa devagar, como quem escolta outra pessoa. No final da rua, ele acelerou cantando pneu.

Catharina ligou para a mãe e ela veio nos buscar de carro. Voltei pra casa determinado a contar o ocorrido a minha avó.

***

– Jesus do céu! – exclamou dona Amélia, desesperado com o que eu lhe contara. – Daniel, como esse garoto é um desalmado!

– Eu acho melhor você tomar cuidado também vó. – sugeri.

Fiquei a tarde trancado em casa, com medo do exterior, com medo de dar um passo em falso e ser pego. Eu lembro da placa, mas do que adianta? Provavelmente é um carro roubado ou uma numeração falsa. Sempre é assim.

Fechava os olhos e tentava me acalmar. Pensar não resultou em muita coisa além de mais preocupação. Agora, estava sendo compartilhada com a minha avó, e eu me arrependia de ter colocado ela na história, fazendo-a sentir medo também.

Diana estava salva. Era nisso que eu acreditava e confiava. A única parte da história que não me fazia entrar em desespero absoluto.

Liguei pra ela, seu “alô” serviu de calmante imediato. Na verdade, fora a sua voz.

– Oi, tá tudo bem? – perguntei.

– Sim, e você? Sua voz está... pesada. – disse ela.

– Eu estou bem. – respondi.

*Silêncio*

– Na verdade, não estou. – disse a ela. – Não estou nada bem.

– O que aconteceu? – perguntou ela nervosa.

– Eu não quero contar, não quero te envolver nisso, você não precisa se preocupar. Mas, eu não posso te ver por uns dias. Acho bom não nos falarmos na hora da entrada e da saída, na rua, perto de onde pessoas de fora possam ver. Também não posso ir a sua casa tão cedo. Desculpa, to te dando medo né? Desculpa. – falei com a voz trêmula.

– Dan, o que tá acontecendo? Você fez alguma coisa errada? – perguntou ela quase chorosa.

– Não. – respondi. – mas, tem que ser assim tá bom?

– Não! Não tem que ser assim! Eu gosto muito de você cara, como posso ficar sem te ver? – perguntou ela me deixando desolado e sem resposta.

– Desculpa Diana. – respondi. – Eu preciso desligar.

– Dan...

Antes que ela pudesse completar mais alguma coisa, apertei a tecla do celular e encerrei a ligação. Muitos me culpariam errado, me julgariam um sem noção, mas Diana mora perto de onde o covil está formado. Se eu apareço por lá e aquele carro me segue, os caras vão perceber que há jeito de se conseguir o que querem.

Isso é um empilhado de peças de dominó. Uma peça cai sobre a outra, afetando toda a construção. De certa forma, Diana é uma peça. Os caras já me marcaram. Se não conseguirem o que querem com Renan e sua família, vão partir para os amigos. E esses amigos têm família e outras pessoas em seu meio... É um beco sem saída, e eu estou surtando.

***

No dia seguinte na escola, Diana tentou falar comigo, mas eu não conseguia explicar. Ficávamos bem enquanto estávamos dentro da escola, mas dali em diante a realidade era outra.

– Catharina e Diana. – chamou a pedagoga da porta da sala. As duas levantaram-se e foram até a secretária. Com certeza era algo envolvendo a festa de despedida dos formandos pela qual elas eram voluntárias.

No intervalo, sentei a mesa com o mesmo pessoal de sempre e tentei parecer normal. Com todo mundo ali a vida parecia uma fortuna sem fim. Eles riam, conversavam. A imagem deles passava na minha cabeça sem áudio algum. Eu olhava ao redor, e na minha cabeça a voz de Renan soava.

– Daniel! – gritou diana.

Despertei. Parecia que estava dormindo.

– Oi, o que foi? – perguntei desentendido.

– Você quer? – ela me oferecia biscoito, mas eu recusei com um sinal.

A aula acabou e na saída olhei para Diana indicando uma despedida de longe. Ela não sorriu, segurou as mãos de Lucas e virou as costas para mim. Ela não entendia a situação e eu não iria julgá-la por isso.

***

Estamos no meio de outubro e hoje recordei Diana e eu em junho, uma semana de recesso escolar e eu a conheço no outro turno. Lembro daqueles olhos assustados que me viram e reviraram sempre que eu a encarava. Lembro das nossas brigas nas duas primeiras semanas e do nosso relacionamento conturbado. Dela dançando. Do beijo no muro um dia depois do seu aniversário. O inicio pra tudo. Sinto saudade.

– Preciso vê-la. – murmurei. Faziam apenas quatro dias que eu não a visitava, mas eu precisava daquele abraço ou então eu iria surtar.

Fui a sua casa no sábado e ela me invadiu de felicidade. Sorriu, contou as novidades. Eu quis ficar ali até o fim da minha vida, mas era impossível. Fiquei poucas horas em sua casa e fui embora.

– Quando volta? – perguntou ela triste e de cabeça baixa.

– Em breve. – respondi. Ela me abraçou e sussurrou que me amava muito. – Sinto sua falta. Muito, muito. – disse a ela.

Fui embora, observando tudo ao meu redor. Ao chegar à rua da minha casa, avistei de longe Catharina aos prantos, chorando no colo da mãe, e a minha avó que chorava também. Corri na direção delas, e seus rostos entregavam o pior.

– O que houve? – perguntei desesperado.

Catharina caiu nos meus braços e chorou. Eu não entendia o que ela queria dizer, pois soluçava muito, mas sua mãe foi firme e entregou o jogo:

– Renan está morto.

Eu não consigo definir aquele momento. O impacto das palavras, as lembranças que passavam por mim. Quando me dei conta, estava sentando no sofá de casa, ainda sem ter noção sobre nada ao meu redor. E a cada piscada que meus olhos davam, eu parava em outro lugar. Era como se o tempo acelerasse, e então eu estava de pé, na frente dos pais dele que choraram amargamente.

Vi seu corpo em um caixão dois dias depois. Descobri que lágrimas são salgadas, pois eu chorei o suficiente para senti-las. Diana segurava a minha mão, mas meus olhos estavam voltados a Renan, ali, deitado naquela caixa de madeira. Parentes dele que eu nunca vira antes choravam. Sua mãe debruçada sobre o caixão azedava a minha mente. É a pior imagem que você pode ter na vida. Era doloroso pra mim, quanto mais pra ela.

A irmã dele parecia não compreender. O pai chorava e gritava aos céus “porque meu Deus, por quê?”. Todos sempre gritam isso, esperando que Deus responda. Ele não responde.

Leandro também foi ao velório. Ele conhecia Renan, e pareceu não acreditar que eu havia escondido toda aquela história. A ficha de Diana caiu junto com a dele, e ela foi quem mais me compreendeu.

Catharina chorava no canto da porta. Ficou assim o velório inteiro. Seus pais lhe consolavam, mas ela não queria ninguém além de mim para abraçá-la. Diana cedeu seu lugar nos meus braços e me entregou a ela, compreensiva como nunca antes.

Por fim, Felipe. Eu não o via há muito tempo, e não esperava encontrá-lo em uma situação assim. Nós três nos abraçamos e ficamos ouvindo as pessoas ao redor fazendo orações em nome de Renan.

Fiquei até o final. Passei a mão sobre o rosto dele. Era a última vez que iria vê-lo. Não tinha coragem de ir ao cemitério ver seu enterro. Tudo meu esgotava ali.

– Somos a loucura da noite, os garotos perdidos. – sussurrei.

E então, tudo ficou escuro, e Renan já tinha ido embora.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

aaaaaah, esse foi o maior capítulo até agora, mas eu acho que terá outro maior que esse! lol Espero que tenham gostado, e comentem para me fazer feliz!

twitter: @the_biaoliveira



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "As Nem Um Pouco Felizes Histórias De Amor." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.