Não Chore Esta Noite escrita por AnaMM


Capítulo 34
Ressaca Moral


Notas iniciais do capítulo

Cheguei! Aqui está o 34, com dona Lia se sentindo Judas, as usual.

Trilha do dia:
https://www.youtube.com/watch?v=mIQsKEryByA

Daqui a pouco tem mais lidinho nessa ficuxa



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– Agora, eu quero fazer a revelação do TV Orelha de hoje. Lia! – Balançou a cabeça em aprovação. – Que isso, hein, Lia? Ai, como eu gosto! Lia, ó, tá de parabéns!

De frente para o computador, a roqueira levou a mão à testa. O que havia feito? Estava de parabéns pela impulsividade, por ter se deixado levar, pela traição à melhor amiga. Não havia bebido na noite anterior, mas a ressaca moral a corroia.

– Gil, vai de cabeça! Vai fundo, cara, porque a Lia é a facinha dos novos tempos! Aproveita, moleque. – Orelha aconselhou em seu vídeo.

Para piorar sua situação, ainda havia beijado Gil, feito o garoto de marionete para afugentar seus problemas. Era uma manipuladora fria e desgovernada. Tudo culpa de Dinho, era sempre culpa de Dinho. Observou como um acidente de trânsito o trecho em que Álvaro Gabriel criticou as atitudes controladoras de Juliana como namorada. Talvez Dinho tivesse seu próprio motivo para ter terminado, talvez Lia Martins ainda não fosse uma destruidora de lares. A esperança não durou muito.

– Vai ver foi por isso que ele explodiu. É isso aí, galera, Dinho, ó pegador, finalmente nos confidenciou sobre sua mais exótica, gostosa, tudo de boa e misteriosa vítima, Lia Martins, nossa musa do rock! Ai, como eu amo essa garota! É por isso que o cara é o meu ídolo!

O vídeo mostrou a filmagem do momento em que Adriano havia confessado o que sentira em relação aos beijos de Lia. Sozinha em seu quarto, a roqueira agradeceu silenciosamente pela ausência de sua irmã e temeu pelo que Ju sentiria revendo a cena no site de Orelha. A parte que ainda não se odiava, no entanto, sentia um calor incomum ao escutar as palavras de Dinho, ao saber o quanto o garoto havia gostado. Por anos havia pensado que Adriano a estava usando, sem sentir o mesmo que Lia sentia ao beijá-lo. Agora, sabia que era recíproco. Gritava por dentro, tentando se livrar do sorriso resultante da descoberta. Não podia se sentir feliz, tranquila, ou nervosa, era Dinho que falava! Dinho, o namorado de Juliana – naquele momento -,o objeto da presente paixonite de sua melhor amiga, o pegador inconstante do colégio.

Flashbacks da noite anterior lhe ocorreram, trazendo de volta à tona as sensações que lhe consumiram ao ser beijada por Dinho novamente, depois de meses de silêncio, de distância automática. Ou não. Pensou em todos os momentos em que Adriano a ajudara nos últimos dias, em suas implicâncias em perfeita sintonia, nos beijos. Não podia. Era Dinho, soubera desde o primeiro momento, desde que o conhecera, que não podia confiar em Adriano. Era inconstante, egoísta, metido, idiota, arrogante... Namorado de Ju. Também era brega com as surpresinhas, falso ao fingir querer um namoro. Sorria demais, tinha amigos demais, sua vida dava certo demais. Do maior erro de seu pai, ganhara um irmão que amava. À noite, tinha o céu e as estrelas a seus pés e mil sonhos por cumprir. Era livre, desimpedido, leve e parecia querer que Lia sofresse com tudo aquilo que queria ser e ter também e não conseguia. Cada sorriso de Dinho lhe lembrava do quanto estava presa em seus próprios traumas, engolida por uma barreira que a impedia de criar amigos por conta própria. Era Ju que a aproximava de pessoas, e mesmo Juliana Dinho parecia querer lhe roubar. Odiava-o, tinha nojo de como o garoto era a prova perfeita do porquê de não se apegar a ninguém. Era como sua mãe, a deixaria na primeira oportunidade. Por que fingia ser tão doce? Por que fingia se importar? Por que a protegera à noite? Por que a cuidara na sala de robótica? Por que a abraçava daquele jeito? Por que a beijava como se fosse a única com quem gostaria de estar? Por que era tão livre, idealista em sua liberdade? Por que conseguia não se apegar a ninguém enquanto Lia chorava em seu quarto, dia após dia, a perda daqueles que um dia lhe importaram?

“E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor?” o dever de literatura lhe perguntou. Não o amava! Podia sentir qualquer coisa por Dinho, menos amor! Como amor? Amor sentia por si, e por isso não o amava, ou sequer se importava com Adriano Costa. Caio Fernando Abreu estava errado. Não gostava de Dinho porque não gostava de Dinho, não porque o amava. Jamais o amaria.

– Lia?

–AH! – Lia gritou assustada, sendo arrancada de seu conflito pela voz da amiga a lhe salvar.

– Calma, sou eu! Se é porque você não queria ser flagrada vendo o vídeo que você provavelmente não quer que eu veja, sim, eu já vi e foi por isso que eu vim. – Juliana se explicou.

– Eu... Ahm... – Tentou recuperar o fôlego. – Eu tava só... É... Eu tava... Eu não vi! O que tem de interessante?

Ju observou a amiga de cima a baixo, cínica.

– Vem cá. – Abraçou a roqueira. – Sim, eu fiquei bem mexida revendo o que o Dinho falou de você, mas o que eu posso fazer? Você tem tudo em cima, mesmo, não sei porque se esconde. Você é linda, e o Dinho seria um louco se não reconhecesse. Vocês ficaram, e, embora eu não me sinta muito confortável com isso, é passado, não é?

Tentou acalmar a amiga, embora ainda mexida com as palavras de Dinho sobre Lia e com a clara demonstração de ciúme do garoto ao vê-la com Gil. Possessão de ex-ficante, talvez? Não costumava vê-lo sequer se importar com as outras garotas, mas Lia era especial para qualquer pessoa que a conhecesse. Nisso tinha ciúme da melhor amiga. Tinha inveja da força de Lia, do quanto a roqueira fascinava a todos a sua volta, de como Orelha não se cansava de elogiar os “atributos” de sua musa do rock, de como Dinho olhava para a garota. Seu corpo tremia, um alarme soava quando via sua melhor amiga e Adriano interagindo. Sentia-se excluída, como se ambos tivessem uma conexão única. Tentou deixar os pensamentos de uma péssima amiga de lado para focar no nervosismo da roqueira. Lia tinha problemas demais, não queria acrescentar-lhe mais o drama de ser alvo do namorado, ou ex, da melhor amiga. Conhecia a garota, ficaria paranoica tentando fugir de Dinho. Mais do que já acontecia, claro.

– Na verdade, eu vim porque eu percebi uma coisa com o vídeo. A gente pode descer pra pracinha? Eu preciso arejar pra pensar nisso direito. – Ju anunciou.

Lia hesitou, mas concordou. Precisava sair daquele quarto, sentia-se sufocada pela própria culpa.

– Vai sair? – Paulina perguntou ao vê-las na sala.

– A gente vai ali na pracinha, vó.

– Ótimo, então você pode aproveitar e levar a Tatá e os amiguinhos! – A avó anunciou, apontando para as crianças.

Irritada, Lia consentiu. Como o dia poderia ficar pior? Péssima pergunta, havia aprendido. Tão logo saíram do prédio, no entanto, a roqueira congelou. Lembranças vívidas da noite anterior voltaram a sua mente, arrepiando-a inadvertidamente. Juliana não pareceu perceber, seguindo em direção à praça. Lia agradeceu por um instante sua sorte. Tentou focar nos próprios passos, ignorando as imagens que a atormentavam e, pior, o desejo de que pudesse voltar para aquela noite, livre de julgamentos, livre de culpa. Queria sentir os lábios de Dinho nos seus novamente e queria cuspi-los, enojada por seus pensamentos.

– Lia, o que você tem? – Tatá perguntou.

– Hein?

– Você parece tensa... A Ju já tá lá na frente, o Juca e a Letícia já até chegaram, e você aí, parecendo uma tartaruga encolhida.

– Não enche, pirralha. Hoje não. – Pediu cansada.

Tatá levou a pequena mão ao ombro da irmã, preocupada. Lia tremeu. Temia que, com um simples toque, a caçula pudesse ler seus pensamentos. O que pensaria a menina sobre a roqueira? Era um péssimo exemplo. Ouviu os amigos de Tatá a chamarem.

– Vai lá, pirralha. Eu vou indo no meu ritmo.

– Você bebeu de novo?

– Que? – Surpreendeu-se com a pergunta. Não esperava que Tatá soubesse tanto.

– Você acha que não faz barulho quando chega em casa? – A menina respondeu irônica. – Você merece mais.

– Eu não mereço nada. Se você soubesse...

– Duvido que seja tão ruim.

– Por que você não vai encontrar o Juca e a Letícia na praça e me deixa em paz? – Lia perdeu a paciência.

– É o Dinho de novo, não é? Eu vejo o TV Orelha.

– O QUE? – Lia exclamou surpresa. – Você tá maluca, Tatá? Como assim você assiste à TV Orelha? Isso é invasão de privacidade, pirralha! E por que você acha que é logo o Dinho? Por que ele me importaria?

– Tecnicamente, o Orelha que está invadindo, eu só assisto com os amigos. Quanto ao Dinho, eu sei como você fica irritada e, ao mesmo tempo, mexida quando o assunto é ele.

– Você tá querendo dizer que o Juca e a Letícia sabem cada passo da minha vida social? – Perguntou furiosa, ignorando o comentário da caçula sobre Dinho.

– Eu estou querendo dizer que a sua vida é emocionante, parece aqueles filmes adolescentes, e que eu tenho muito orgulho de você, Lia, por isso que eu mostro os vídeos pros amigos.

– Essa é a sua estratégia pra contornar a situação? - Lia lançou à irmã um olhar severo.

– Talvez?

– Vem, a Ju tá me esperando na pracinha, depois a gente vai ter uma conversa séria sobre isso. E eu não fico mexida quando o assunto é ele, só irritada.

– Pense o que você quiser. – Tatá respondeu dramática.

Chegaram à praça, onde a mais nova se uniu aos amigos e Lia encontrou Juliana sentada na mureta.

– Foi mal, a Tatá aprontou uma em casa e eu só fiquei sabendo agora. Sobre o que você queria falar?

– Cara, você não vai acreditar no que aconteceu ontem. – Ju disse.

– Deixa eu adivinhar: tem a ver com o Dinho. – Comentou derrotada, lembrando-se do comentário da irmã e da confidencia do garoto na noite anterior.

– Como é que você sabe?

– Você não desgruda dele... – Desconversou.

– Ele falou a mesma coisa. – Juliana lembrou incomodada. – Você acredita que ele quase terminou comigo?

– Como assim quase? – Lia perguntou, de repente tensa.

Dinho a havia enganado ao dizer que terminara com Juliana. Típico. Agora havia traído legitimamente a melhor amiga.

– Acho que foi quase, não sei... Ele disse que queria terminar, que não dava mais, mas ele não falou “está terminado”, nem eu concordei em terminar... – Comentou inocentemente.

– Juliana! – Lia exclamou entre alívio e irritação. Como podia ser tão tapada? – Não quero ser chata, mas ele terminou com você. – Tentou deixar de lado qualquer pista de que tivesse encontrado Dinho após a conversa do garoto com Ju.

– Será?

– Se ele disse que não dá mais! Quer dizer, o Dinho é um menino que gosta de ficar solto, né? Tanto que você é a primeira namorada dele, e talvez por isso ele não tenha conseguido ser tão claro com você ontem. Acho que você tem que, sei lá, respeitar o espaço dele e ter um espaço pra você também. – Deu de ombros, tentando não parecer preocupada.

– Ai, Lia, que horror! Parece ele falando!

A roqueira ficou tensa novamente, tentando controlar seus pensamentos. Não queria dizer nada, não eram almas gêmeas, ou seja lá qual nome brega pudesse dar a isso, apenas por pensarem do mesmo jeito. Eram parecidos, mais que pensavam, mas estavam longe de combinar, de poder, um dia, dar certo como dupla, como – e não gostava de usar a palavra – casal. Só porque falavam a mesma coisa ao mesmo tempo, entendiam-se como ninguém e seus lábios se encaixassem perfeitamente não queria dizer nada.

– O pior é que ele não me ligou até agora. Eu fico aqui, segurando, agoniada!

– Então eu acho melhor você desencanar desse celular. – Lia pegou o aparelho com calma.

Para sua alegria, Ju mudou de assunto. Infelizmente, para Gil.

– Me conta, vai, fala de você e o Gil!

– Eu e o Gil nada, Ju. Quem gosta de namorar é você. – Respondeu sem jeito, rindo da animação da amiga. Mas é que... – Desconversou, focando em algo que realmente a importava. – Tem uma parada chata que tá acontecendo, e eu queria te contar.

– O que?

– A Raquel tá chegando sábado, você acredita? – Lia contou desanimada.

– Sério? – Juliana perguntou chocada.

– Cara, eu não sei o que eu faço. Eu to afim de me mandar, de sumir, sei lá!

Queria tanto ser como Dinho, por mais que o odiasse... Queria um pouco daquela liberdade, da coragem de querer sumir pelo mundo sem olhar para trás. E era logo isso, no entanto, que mais a incomodava: Dinho era como Raquel, como a mãe que a deixou sem pensar na família.

– Não tem como fugir, né, amiga?

Tinha. Se fosse Dinho, encontraria um jeito. Nem que fugisse com Dinho. Rapidamente ignorou o pensamento, focando em quanto o odiava por saber fugir e não ter a mesma necessidade de escapar que a roqueira. A vida era injusta, e Adriano Costa era sua representação. Da injustiça, claro. Dinho não era sua vida, nem perto de ser. Pelo contrário, queria o aventureiro bem longe de onde estivesse, de preferência na Sibéria! Que levasse seu riso debochado de quem sempre ganhava sobre Lia para os confins da Rússia e fosse engolido por um urso! De preferência, que levasse Raquel junto.

– Você vai ter que encarar! Afinal de contas, é a sua mãe, né?

E Dinho era apenas o cara com quem havia ficado na noite anterior, com quem havia traído a melhor amiga, que agora a ajudava em seu maior problema. Lia Martins era um monstro. Talvez merecesse a chegada de Raquel.


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Notas finais do capítulo

Agradeço o apoio de sempre, comentários aqui embaixo e sintam-se à vontade pra sugerir, reclamar, elogiar, xingar a Lia, xingar a vida... /