A Maldição De Shay escrita por Aline Yagami


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura



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Capítulo II

A casa construída nas proximidades do rio Mississipi era bastante confortável.

Como a maioria das casas de fazenda do meio-oeste, era simples, pintada de branca, com uma estrutura de dois an­dares e com uma sugestiva varanda. Em torno, possuía um bom número de árvores centenárias.

À primeira vista, era um lugar acolhedor.

Mas só à primeira vista.

Qualquer estranho que, desafortunadamente, passasse por perto da fazenda, não encontraria ali sorrisos; e a única refeição quente seria ele mesmo.

Felizmente, o lugar era isolado o suficiente para impedir que aparecessem muitos curiosos, e o povo ao redor já apren­dera, havia tempos, que era melhor evitá-lo. Era raro que o pesado silêncio fosse quebrado, a não ser por pássaros.

A localização da casa não era acidental. Debaixo das co­linas estavam escondidas cavernas, que se estendiam por milhas. Havia uma centena de lendas locais relacionadas às grutas. Alguns afirmavam que tinham sido usadas como túneis subterrâneos. Outros, que Jesse James costumava se esconder ali. E outros, ainda, juravam que a área era usada por contrabandistas, os quais preferiam o rio para transportar seus produtos.

Nenhuma das histórias era verdadeira. As cavernas eram o lar de demônios desde antes que os primeiros exploradores tinham chegado.

Em uma das mais profundas da área, olhando para as águas de um poço mágico, estava um esguio duende, trajan­do um manto de cetim verde que combinava com seus olhos. Luvas douradas cobriam suas garras. Parecia fora de lugar, já que os duendes, um dos menores demônios que existiam, somente eram aceitos entre os poderosos seres que habi­tavam a área por causa de sua astúcia e controle sobre as forças mágicas.

Um duende não devia estar enfiado em buracos escuros da terra.

Ainda assim, por um momento, a escuridão lhe servia muito bem.

Balançou a mão sobre a água para dar um fim às visões que ela revelava. Acima dele, a sombra irada enchia a caverna.

— Seu bruxo falhou - a sombra concluiu.

— E o que parece, milorde. - Levantando-se, Damocles cuidadosamente tirou a poeira de seu manto.

— Eu o avisei que Joseph não era o elemento mais capacitado.

— É um idiota, mas a culpa não foi inteiramente dele. - A sombra pareceu aumentar de tamanho.

— Se eu fosse desconfiado, estranharia você tê-lo enviado com dinheiro insuficiente para dar o maior lance no leilão da shalott.

Um fraco sorriso surgiu nas belas feições do avejão. Não que ele estivesse indiferente ao perigo que havia no ar. Somente um tolo acreditaria que a sombra não seria capaz de matá-lo. Ou pior.

Entretanto, ele tinha passado cerca de um século sendo indispensável a esse seu atual senhor. No momento, sentia-se suficientemente em segurança.

— Fico ofendido, senhor - protestou.

— Foi uma surpresa para todos o vampiro fazer um lance tão alto. Além do mais, o senhor confiaria a um criado meio milhão de dó­lares? Por mais leal que Joseph possa ser, não acredito que resistisse à tentação de ter uma fortuna nas mãos. Com certeza teria se apossado do dinheiro e fugido.

Um silvo raivoso chegou aos ouvidos de Damocles.

Ele sabia muito bem que, se fugisse, eu o mataria.

— Claro, mas a ganância é raramente lógica.

— Então agora não temos a shalott, e o pior é que ela está nas mãos de um vampiro.

O duende fez a cara mais inocente do mundo.

— Mas isso não pode significar boas notícias? O senhor tem considerável poder junto aos clãs. Não pode simples­mente exigir que esse Viper lhe entregue a shalott?

— Idiota. - Uma mão invisível atingiu o rosto de Damocles.

— Não posso revelar o meu interesse por ela. Isso despertaria especulações e perguntas que venho ten­tando evitar. Não pode haver qualquer ligação minha com a shalott, até que eu esteja curado. Se meus inimigos soube­rem como me tornei fraco...

Damocles sentiu o sangue fugir do rosto, mas nem piscou.

— Isso nunca vai acontecer, milorde. Não enquanto eu estiver a seu lado.

— Oh, sim, meu doce duende, tanta lealdade... - A voz estava cheia de ironia.

— Ela é mais profunda e infinita do que o mar.

— Tão profunda e infinita como meus cofres. O duende fez uma pequena reverência.

— Todos nós temos as nossas fraquezas, não é mesmo?

— Eu quero aquela shalott. - A sombra se agitou com impaciência.

— Acorde o seu bicho de estimação.

Damocles enrijeceu o corpo, os pensamentos tomando um rumo inesperado. Ele se orgulhava por sempre estar preparado para qualquer eventualidade, e em ler o futuro com incrível habilidade. Nunca era pego desprevenido, des­preparado.

Naquele momento, porém, tinha de admitir: suas habili­dades especiais haviam falhado.

— Meu bicho de estimação? - Ele tocou de leve a corren­te de ouro.

— Certamente ainda não é hora, não é, milorde?  Poderia chamar atenção demais. Tenho vários...                         

Sentiu-se subitamente sufocar sob o poder da pressão de uma força demoníaca.

— Por acaso esqueceu quem é o senhor aqui, duende?  Pontos pretos dançaram diante dos olhos de Damocles, antes que a pressão em sua garganta finalmente diminuís­se e lhe fosse permitido respirar novamente.

A fúria correu por suas veias, mas sua longa experiência fez com que se ajoelhasse e abaixasse a cabeça: o gesto típi­co de um escravo.

Seus planos podiam ser alterados. Afinal, ele era tudo menos um ser sem recursos.

— Claro que não me esqueci, milorde. Será feito conforme o seu desejo. - Bem devagar, levantou a cabeça.

— Ainda assim, não dá garantia de que não aconteçam baixas.

— E por que devo me importar com baixas se a shalott não estiver entre elas?

— O vampiro...

— Um sacrifício necessário.

Democles ficou um momento em silêncio, antes de vol­tar a falar.

— Necessário, talvez, mas não acredito que a Guarda dos Vampiros aceite essa morte com tanta facilidade.

Um sibilar estridente soou na caverna.

— Razão pela qual eles não devem saber de meu plano. Isso está claro?

— Perfeitamente, milorde. Na verdade, eu irei junto para assegurar que não aconteçam erros desta vez.

— Uma decisão sábia. Damocles ergueu-se lentamente, pensando sem parar.

— Mas, primeiro, eu creio que devemos fazer uma visita ao troll.

Houve um silêncio inquietador.

— Por quê? Ele não nos serve para nada. O duende sorriu.

— Não é bem assim. É ele quem detém a praga que man­tém a shalott submissa.

— E daí?

— Se ele morre, ela morre. Penso que seria sábio se ele ficasse sob nosso controle, escapando assim das mãos de nossos inimigos.

— Sim, sim, claro! Eu devia ter pensado nisso. Não posso me arriscar que aquele troll fique por sua própria conta. Qualquer coisa pode acontecer a ele.

— Tratarei disso pessoalmente.

— Ótimo. - A sombra soltou um longo suspiro.

— Agora preciso descansar.

Damocles inclinou-se respeitosamente.

— Certamente, milorde. Mantenha a sua força. Logo terá recuperado toda a sua energia.

Houve um breve silêncio.

— Damocles?

— Sim, milorde.

— Você me mandará o que eu preciso esta noite? O duende escondeu um sorriso de satisfação.

— Tenho tudo preparado.

— Tem de tomar cuidado. Se a Guarda...

— Serei a alma da discrição.

— Bom. Agora vá, antes que sintam a sua falta.

Com uma última reverência, Damocles se afastou da es­curidão. Havia um caminho direto que dava para as caver­nas superiores, mas ele era sábio o suficiente para evitá-lo. Sabia muito bem que os malditos vampiros estavam aten­tos aos seus menores movimentos.

Havia chegado ao caminho estreito que levava à sua própria caverna, quando uma sombra lhe surgiu abrupta­mente à frente. Ele não precisou esperar muito para saber quem era.

Só um ser possuía a arrogância de perturbá-lo desse modo.

— Pare aí, Damocles, quero dar uma palavrinha com você. Damocles olhou para o alto e belo vampiro.

— Qual é o problema, Styx? Cansou-se de ficar assus­tando os ratos do porão e anda em busca de um jogo mais interessante?

As feições do vampiro não se alteraram. Nada parecia perturbar o líder da Guarda dos Vampiros. Insultos, amea­ças, nada! Fato que irritava Damocles profundamente.

— Onde é que esteve? - Styx perguntou. Democles arqueou uma das sobrancelhas.

— Eu estive ocupado fazendo um pequeno trabalho para o meu senhor.

O vampiro deu um passo à frente.

— Eu poderia lhe tirar a verdade a dentadas, caso eu quisesse.

— E eu, levantar asas e voar até Paris se assim dese­jasse - Damocles retrucou, caçoando do vampiro.

— Se você quiser saber a verdade, procure-a junto ao nosso mestre.

— Descubro-a de você. Agora me diga por que entrou por estes túneis como se fosse um ladrão.

Somente os fortes sobreviviam naquelas cavernas e Damocles sabia bem disso.

— Jurei segredo. Quer que eu quebre o meu juramento? O vampiro grunhiu.

— Como se um duende soubesse alguma coisa sobre ju­ramentos e honra.

Damocles poderia lhe dizer que tinha mais segredos do que qualquer outro ser que Styx pudesse vir a conhecer. Em vez disso, encostou-se à parede e inspecionou a barra dourada de seu manto com arrogante indiferença.

— Você me deteve aqui e me faz perder um tempo precio­so apenas para me insultar, ou tem algum outro propósito?

As feições do vampiro endureceram.

— Muito contra minha vontade, meu senhor mandou que você lhe trouxesse a shalott. Até agora você nada fez, a não ser lhe dar promessas vazias. Onde está ela?

Damocles deu de ombros.

— Houve um pequeno contratempo, mas nada que preo­cupe demais. Logo eu a trarei aqui.

Sem aviso, o vampiro agarrou Damocles e o atirou longe.

— Não confio em você, duende, e gosto menos ainda. A sua chegada à nossa porta é uma maldição que não trouxe nada, a não ser desgosto. Traga a shalott, ou eu lhe arran­carei a cabeça.

Sem um olhar para trás, Styx sumiu na escuridão, dei­xando Damocles secando o sangue de sua boca. O duende sorriu, porém.

Era sempre um bom dia quando ele conseguia fazer com que o Príncipe do Gelo perdesse a calma.

Pretendia arranjar outros, muitos outros dias assim.

* * *

Esperando até que Viper tivesse deixado a cozinha, Shay reuniu as vasilhas de comida e aspirou o aroma delicioso. Diabos, ela estava faminta. Nas últimas semanas, mal tinha comido o suficiente para manter vivo um passarinho. Evor adorava pequenas torturas e se divertira ao vê-la se arrastar pela cela tentando pegar as migalhas que ele lhe jogava.

E no momento, mesmo não querendo aceitar nada do vampiro, não conseguia resistir à tentação que tinha dian­te de si.

Esvaziou em tempo recorde as vasilhas com comida chi­nesa, e passava para a galinha frita quando Viper voltou à cozinha.

— Se quiser deixar uma lista para minha governanta, tenho certeza de que ela será capaz de manter a cozinha estocada com a comida que você preferir.

Shay olhou para os pratos.

— Ela fez um bom estoque. Somente ficou faltando torta de maçã.

— Tenho certeza de que isso pode ser providenciado. Shay não duvidou disso nem por um momento. A gover­nanta era daquelas que iam além de seus habituais deveres.

A questão era se a mulher fazia tudo isso levada pelo sentimento de lealdade ou por medo.

— Ela sabe que você é um vampiro? Viper sorriu levemente.

— Os pingos de sangue dentro do refrigerador geralmen­te denunciam a minha identidade.

— A maioria dos humanos se recusa a acreditar em de­mônios. Ou se acreditam, morrem de medo deles.

— A família de minha governanta está comigo há sécu­los - Viper explicou.

— Na verdade, ela tem quatro filhos que trabalham em meus variados negócios.

— Uma dinastia regular.

— Isso simplifica tudo.

— Aposto que sim.

A expressão nos olhos de Viper era de curiosidade, e ele a observou por algum tempo.

— Parece não aprovar que eu empregue humanos. Isso a perturba?

Na verdade não, Shay reconheceu.

— Por experiência posso dizer que humanos e demônios não se misturam.

Ele se aproximou perigosamente.

— Isso não é inteiramente verdade, querida. Você, por exemplo, é uma mistura de demônio e humano.

Shay tentou não se perturbar ao sentir os dedos de Viper em seu rosto.

— Isso foi... diferente.

— Como assim?

— Nenhum dos meus pais pretendia se apaixonar. Um sorriso irônico surgiu nos lábios de Viper.

— E quem é que pretende?

Shay procurou abrir uma distância entre os dois.

— Meu pai estava se preparando para partir, e se unir a outros shalott, quando viu minha mãe sendo atacada por um bando de lobisomens. - Ouvira essa história pela mãe uma centena de vezes.

— Ele salvou-lhe a vida, levou-a para o seu clã, e a ajudou a curar os ferimentos.

— E o destino fez o resto.

— Algo assim.

— E eles foram felizes juntos?

Enquanto falava, Viper continuava a tocar de leve no rosto de Shay.

— Sim, eles se amavam muito.

Viper deslizou o olhar pelo corpo mal coberto pela ridícu­la roupa de escrava de harém.

— E eles criaram você. Eu diria que a união entre huma­no e demônio foi certamente uma criação dos céus.

Ela umedeceu os lábios secos.

— Não foi nada bom ver meu pai ser hostilizado por seu povo, e minha mãe e eu sermos forçadas a nos esconder.

— Mas se eles foram felizes, o que isso importa?

Shay preferiu não argumentar. Ele era um vampiro. Nunca conhecera um dia de medo ou incerteza em sua vida imortal.

— Não quero falar sobre isso.

Ele a observou por alguns instantes, depois concordou.

— Muito bem. Se tiver acabado de comer, vou lhe mos­trar o seu quarto.

A comida começou a pesar no estômago de Shay, Ela es­tava acostumada com os quartos que eram oferecidos aos escravos. Algemas, barras de ferro. Era o que nunca muda­va, não importava quem fosse o seu senhor.

— Agora?

Viper a olhou com curiosidade.

— Há alguma outra coisa que queira fazer primeiro?

— Pensei em dar uma olhada na casa. Afinal, vou morar aqui. Pelo menos por hora.

— Poderá fazer isso amanhã. Você certamente deve es­tar muito exausta.

— Não preciso de muito sono.

Um pequeno sorriso surgiu nos lábios de Viper.

— Oh, que agradável coincidência, também eu não pre­ciso dormir muito.

Sem qualquer aviso, ele a tomou nos braços e começou a lhe mostrar os aposentos.

— O que está fazendo? - ela protestou.

— Não disse que queria conhecer a casa?

— Posso andar muito bem. Não precisa me carregar...

— Hora, fique quietinha e me deixe exercer minhas obri­gações de anfitrião.

Shay procurou evitar o olhar de Viper. Não era somente a sua fantástica beleza. Mas havia algo de especial nele: em seus olhos negros, nas sensações que estes provocavam.

— Você tem o hábito de carregar no colo todos os seus convidados?

— Você é a minha primeira e única convidada. Shay arregalou os olhos, surpresa.

— Está mentindo.

— Por que diz isso?

— Não posso acreditar que um homem como você não possua um harém.

— Um homem como eu?

— Um vampiro.

—Ah, lamento desapontá-la, mas não possuo harém algum.

Os olhos brilharam.

— A não ser, claro, que esteja se apre­sentando como voluntária.

Droga. Ela nunca estivera tão consciente da presença de alguém. E isso era extremamente perturbador.

— É verdade que nunca teve nenhuma outra mulher aqui antes?

— Venho aqui para ficar sozinho.

— Porque...

— Esta é a sala de visitas - ele foi dizendo.

— Vai gostar da vista para o lago. O assoalho de carvalho polido é nativo deste estado, assim como o das escadas. Há algo fascinante quanto à pedra da lareira, mas devo admitir que não pres­tei atenção quando o vendedor foi enumerando tudo o que havia de especial na propriedade.

Shay deu uma olhada na sala cheia de sombras. Era es­paçosa e, mesmo no escuro, dava a sensação de ser agradavelmente aquecida.

Não. A sensação de calor não estava no aposento, mas na casa inteira. Como se quem ali morasse tivesse tornado a casa um verdadeiro lar.

Perdida nesses ridículos pensamentos, ela levou um momento para perceber que Viper estava agora subindo as escadas.

Mesmo ele tendo garantido não ser seu costume forçar uma mulher a algo que ela não queria fazer, Shay ainda tinha suas dúvidas. Ele era um vampiro...

E isso dizia tudo.

— Certamente há outros aposentos, lá embaixo, que po­deria me mostrar - ela protestou.

— Há, mas nenhum chega a ser tão intrigante quanto o quarto, aqui em cima. - A voz dele soou como um veludo.

— Gostaria que me pusesse no chão. Sou perfeitamente capaz de andar.

E de correr. E de me esconder no quarto mais próximo, Shay pensou.

— Gosto de senti-la junto de mim. - Ele chegou ao alto da escada e parou diante da primeira porta à direita.

— Aqui estamos - disse, carregando-a para dentro de um aconchegante aposento.

Shay observou à sua volta. Não sabia bem o que espera­va encontrar. Possivelmente chicotes. Correntes. Aros pre­sos às paredes.

Em vez disso, encontrou um quarto que possuía o mesmo calor que ela sentira no andar de baixo.

— Este é o seu quarto? - perguntou, olhando a cama enorme e a mesinha onde havia um vaso de flores.

Ela não podia pensar em nada que combinasse menos com aquele elegante e sofisticado vampiro.

Estranhamente, o rosto dele parecia uma máscara. Mesmo os olhos não revelavam nada.

— Na verdade este é o seu quarto.

— O meu?

— Ele é de seu gosto?

— Eu... - Shay umedeceu os lábios secos. Subitamente, aquele quarto charmoso se tornava mais assustador do que se ali houvesse correntes e chicotes.

— Por quê?

— O que quer saber?

— Sou sua escrava. Pode fazer o que quiser comigo. Por que está me tratando como se eu fosse uma hóspede pri­vilegiada?

— É por ser minha escrava que eu a trato da maneira que penso que você merece.

Ela fechou os olhos diante do olhar de Viper.

— Por favor, apenas me diga o que quer de mim - mur­murou.

— Não saber é pior do que qualquer outra coisa.

Houve um momento de hesitação, antes que Viper final­mente falasse.

— Muito bem. - Ele deslizou os lábios pelo pescoço dela.

— Eu a quero debaixo de mim, gritando o meu nome ao al­cançar o clímax - sussurrou, a boca se movendo pela pele macia de Shay e lhe provocando mil arrepios.

 — Quero be­ber o seu sangue e me banhar em seu calor. Quero me en­roscar em você até que pare de assombrar os meus sonhos. É isso o que queria saber?

Shay fechou os olhos, lutando contra o desejo de enros­car as pernas na cintura de Viper e implorar que ele a pos­suísse exatamente como lhe descrevera. Ele não era o único perturbado ali.

— Não era exatamente o que eu esperava ouvir.

— Não se preocupe. Não forço mulher alguma. Temos uma eternidade para saciarmos os nossos desejos.

Ela estremeceu mais uma vez.

— Você não sabe nada sobre os meus desejos.

— Pretendo descobrir.

Uma tristeza enorme a envolveu, ajudando-a a se afas­tar um pouco daquele clima louco em que se via presa ao lado do vampiro.

— O que eu desejo, você não pode me oferecer. Viper sorriu levemente.

— Nunca duvide de mim, Shay. Sou um vampiro de in­críveis habilidades. - Ele a beijou com chocante intimida­de, depois a colocou no chão e saiu do quarto.

Ele não a amarrara na cama. Tampouco a fechara den­tro do armário. Nem mesmo trancara a porta.

Sem acreditar no que estava acontecendo, Shay balan­çou a cabeça.

Que diabo era tudo aquilo?

Viper caminhou pela casa escura rumo ao escritório. Estava fechado ao amanhecer, mas ele ainda tinha alguns poucos detalhes a tratar antes de ir para a cama.

Pena que um desses detalhes não fosse a bela shalott so­zinha no quarto, pensou com um suspiro. O corpo doía com o esforço que tinha lhe custado deixá-la e se afastar.

Mas tinha certeza de que não demoraria muito tempo para Shay se oferecer sem hesitação. Bom seria se fosse cin­co minutos a partir daquele momento.

Entrou no escritório e se aproximou de uma estante cheia de livros, apertando um botão que lhe deu passagem para a sala de segurança. Lá, a série de monitores o encheu de orgulho. Diferentemente de muitos de sua espécie, ele nunca tinha deixado de valorizar a mais moderna tecnologia. Seria estúpido ignorar as mudanças que ocorriam no mundo.

Além do mais, se fosse perfeitamente honesto, admitiria não ser igual aos demais. Sempre quisera ter os mais caros  e melhores brinquedos.

Um vampiro com cabelos vermelhos olhava os monitores, atento. Levantou-se de pronto ao perceber Viper entrando.

— Pode ficar à vontade.

— Mestre. - O vampiro inclinou-se respeitosamente.

— Algum problema?

— Nenhum. Tudo está bem quieto. - Os olhos verdes se estreitaram.

— Estava esperando algum problema?

— Há a possibilidade de eu ter sido seguido esta noite - Viper disse.

— Quero que a guarda seja dobrada e que todos fiquem alertas.

— Claro.

Viper sorriu com a demonstração de obediência. Nenhu­ma pergunta. Nenhum argumento. Nenhum olhar contraria­do. Seus empregados eram muito melhor treinados do que sua nova escrava.

— Quem estará em serviço depois de você?

O vampiro consultou uma lista colocada ao lado de um dos monitores.

— Santiago.

— Ótimo. - Santiago podia ser bastante jovem, mas era um vampiro muito bem treinado, e capaz de pensar por conta própria. Nada passaria por ele.

— Quero que o alerte para ficar bastante atento à área em volta da casa.

O vampiro de cabelos vermelhos o olhou com curiosidade.

— Devo manter a atenção em alguma coisa em particular?

— Tenho uma hóspede comigo - Viper confessou com um sorriso.

— Uma hóspede muito especial. Temo que deci­da dar suas voltas enquanto eu dormir.

— Ah. O senhor quer que a capturemos e a coloquemos no interior da casa.

Viper sacudiu a cabeça.

— Não. Se ela for vista tentando sair, devo ser acordado imediatamente.

O vampiro dirigiu ao seu senhor um olhar admirado.

— Não quer que ela seja detida?

— Não, a não ser que Santiago suspeite que ela possa estar correndo algum perigo. - Viper olhou os monitores.

— Penso que será interessante descobrir onde minha hós­pede pretende ir.

* * *

Não devia ser surpresa alguma o fato de Shay ter dormi­do além da conta.

Ela andara de um lado para o outro no quarto por uma hora, antes que finalmente aceitasse o fato de Viper não vir procurá-la.

Acab

ara dormindo e se chocara ao acordar, percebendo que já era mais do que cinco horas da tarde.

Bom Deus. Ela não havia apenas dormido, mas seu sono fora profundo e sem qualquer pesadelo. Uma novidade em sua vida. Devia ter sido o colchão macio. Ou o silêncio que reinava na casa, ela tentou se convencer, enquanto seguia para o banheiro. Certamente não podia se sentir em paz na casa de um vampiro. Isso seria ridículo.

Encontrou no armário uma escova de dentes nova, as­sim como uma pasta. Desfez a trança e escovou os cabelos. Trançou-o novamente e seguiu para a cozinha.

Sem ter uma troca de roupa, foi forçada a usar as mesmas calças de harém e o top brilhante. Mas notou o manto de veludo, que Viper tinha envergado na noite anterior, pendura­do em uma das cadeiras, e decidiu vesti-lo. Não era sensível demais ao ar frio, mas não sendo uma verdadeira shalott, não tinha a capacidade de ignorar os elementos do tempo.

Não era nem humana por inteiro nem shalott, pensou, desgostosa. Era uma aberração.

Vestiu o manto, procurando ignorar o cheiro tão peculiar de Viper. Tinha de cumprir a promessa que fizera, e não podia agora perder tempo com distrações. Muito menos com sua reação inusitada ao maldito vampiro.

Deixando a casa sem fazer ruído algum, passou pela área que Viper garantira ser vigiada. Uma vez diante das grades altas do portão, tirou o casaco, subiu com facilidade e chegou ao outro lado.

Era sua última barreira. Vestiu o manto e seguiu apres­sadamente em direção à cidade. Mais precisamente, à casa de leilão.

Localizou a linha do horizonte de Chicago, e manteve a vista presa na torre da Sears enquanto cruzava a área rural que havia nos arredores da cidade. Esperava que os trolls estivessem dormindo quando ela chegasse lá. Os trolls es­peravam anoitecer completamente para se recolherem. Assim, sem qualquer barulho, conseguiu chegar ao andar inferior e descobriu Levet ainda em sua forma de estátua.

— Levet, acorde - chamou, rezando para que ele a escu­tasse.

— Droga, acorde!

Por um longo momento, não houve qualquer sinal de que o amigo tivesse acordado.

— Levet!

Finalmente, o gárgula se agitou dentro da cela.

— Pelo amor de Deus, fique quieto - Shay sussurrou.

— Shay?

— Sim, sou eu.

Levet deixou as sombras e se aproximou das grades.

— O que está fazendo aqui? Mon Dieu, já foi devolvida? Shay sorriu levemente. Não podia culpar o gárgula por chegar à conclusão de que o novo dono dela já a havia dis­pensado após algumas horas. Ela não era uma escrava por natureza. Detestava receber ordens, tinha gênio ruim, or­gulho demais. Era hábil em artes mortais e inclinada a lu­tar contra o destino, em vez de aceitá-lo com complacência. Mas devia haver escravos piores do que ela.

— Eu lhe disse que voltaria para pegar você. Não faço promessas que não pretendo cumprir.

Levet ficou parado, imóvel, como se tivesse voltado à for­ma de estátua.

— Você voltou por mim?

— Claro.

Vagarosamente, ele caiu de joelhos, aliviado.

— Oh, graças a Deus. Obrigado!

— Silêncio. - Shay deu uma olhada para o lado das es­cadas.

— Temos de tirar você daqui antes que Evor acorde.

— Como? Não pode tocar as barras e não sou forte o su­ficiente para quebrá-las.

Shay tirou de dentro de uma sacola que trouxera um pe­queno pote de cerâmica. Com grande cuidado, abriu a tampa.

— Dê um passo para trás. Levet recuou bem devagar.

— O que pretende fazer?

A fumaça já começava a sair do pote. Nunca era um bom sinal. Com um bater de asas, ele alcançou o fundo da cela, en­quanto Shay virava o pote na direção das barras de ferro. Houve um chiado e o ferro começou a derreter.

— O que é isso? - Levet perguntou, chocado.

— Uma poção que roubei das bruxas. Levet balançou a cabeça.

— Shay?

— O que foi?

— Da próxima vez em que decidir me libertar, por que simplesmente não rouba a chave? Não sei se deveria usar essas poções.

 — Vai ficar aí, criticando minhas técnicas, ou virá comigo?

— Estou indo, estou indo... Shay olhou em volta, apreensiva.

— Não sinto a presença de trolls aqui por perto, mas devemos nos apressar. Não demora e eles estarão se preparando para a noite.

— Espere. - Levet apontou para uma pequena abertura nos fundos da cela.

— Por aqui.

— Isso só vai nos levar aos calabouços mais abaixo - ela protestou. Não sabia o que Evor escondia naqueles cômodos.

— Há uma porta secreta. 

— Como você sabe disso?

 — Posso sentir a noite. Ela fala comigo.  Shay não estava disposta a discutir com um gárgula que podia falar com a noite. Podia ser teimosa, mas não era estúpida.

— Muito bem, vamos pelo seu caminho.

Sem demora, o pequeno demônio passou pela estreita abertura. Shay evitou um suspiro e o seguiu.

Como ela esperara, havia muitas e muitas outras celas naquelas profundezas. Não tinha idéia de que tipo de demônios estava sob o controle de Evor. Mesmo assim, queria poder libertá-los.

Não. Não podia fazer isso no momento. Não sem colocar a vida de Levet em risco.

Ela se preocuparia com os demônios prisioneiros em ou­tra noite.

Seguiram em silêncio pelos túneis, e Shay precisou, vá­rias vezes, inclinar o corpo inteiro para passar, já que a al­tura era mínima.

Por fim, chegaram à rua.

Mesmo ela havia duvidado que conseguiria libertar Levet. Não com Evor e seu bando de trolls por perto.

Sua alegria cessou nesse exato momento e um tremor percorreu seu corpo.                                       O ar gelado só podia pertencer a uma única criatura...

— Levet, voe - ordenou. No instante seguinte, viu-se diante do vampiro.

— Que prazer vê-la de novo - Viper murmurou, o rosto bem junto do de Shay, as mãos fazendo dela sua prisioneira.

Shay começou a lhe socar o peito.

— Largue-me já! - ela exclamou, preparando um golpe que sempre dava certo com os homens.

Mas Viper não era um homem, e sim um vampiro.

O sorriso dele se alargou quando ela fez um novo movi­mento para deixá-lo sem equilíbrio. Ele a surpreendeu mais uma vez, colocando as mãos no chão e, com um movimento suave, voltou a ficar de pé. Desta vez, aprisionou as pernas dela e, em seguida, a tinha totalmente em seu poder.

Viper devia estar irritado com a tentativa de Shay es­capar, mas tudo o que sentia era a forte atração física por sua linda shalott. Fizera de tudo para que ela se sentisse confortável em sua presença: ordenara todos os tipos de co­mida, decorara o quarto em um estilo feminino, enchera os armários de roupas. Devotara semanas, sem mencionar a pequena fortuna que tudo isso lhe custara, para agora se ver diante da ingratidão dela.

E, além disso, comportara-se como um perfeito cavalhei­ro, não querendo fazer nada contra sua vontade.

Mantendo-a cativa nos braços, ele sorriu para os olhos dourados.

— Quer continuar, ou já se divertiu o suficiente? Shay ficou imóvel.

— O que eu quero é que me coloque no chão.

— Não antes que tenhamos uma pequena conversa. Shay tentou se libertar dele, mas isso só fez Viper gemer de prazer.

— Droga, Viper, coloque-me no chão!

— Não. Você já tentou escapar uma vez esta noite. - Os braços dele a seguravam com força.

— Uma vez é tudo o que você vai conseguir.

A expressão no rosto de Shay deixava bem clara a sua irritação.

— Não fugi.

— Esperou até que eu dormisse e escapou de minha casa. Como posso chamar isso?

Shay balançou a cabeça, irritada.

— Eu tinha algumas coisas a fazer. Certamente me será dada certa liberdade?

— Isso depende. O que estava fazendo aqui?

— Deixei uma coisa para trás.

— O quê?

Se ela não tivesse os braços presos, certamente teria lhe dado um soco no nariz.

— Um amigo - explicou, rangendo os dentes. Amigo? Viper virou a cabeça e deu com o pequeno gárgula, o qual tentava se esconder nos galhos da árvore mais próxima. Tinha visto o demônio saindo pela fresta, mas nem pensara mais nele depois que avistara Shay. Ela conseguia fazer com que ficasse totalmente distraído quando estava por perto.

— Está se referindo ao gárgula? - perguntou, surpreso.

— Sim.

— Ele pertence a Evor?

— Pertence.

Viper comprimiu os lábios.

— Se tivesse me pedido, eu o teria comprado na noite passada. Não havia necessidade de se expor ao perigo.

Shay arregalou os olhos, admirada com as palavras gen­tis. Seus músculos relaxaram, como se ela se esquecesse temporariamente de que ele era seu inimigo.

Viper saboreou silenciosamente a proximidade do corpo pressionado contra o dele.

— Evor jamais colocou Levet em leilão. Ele prefere ter um brinquedinho que seus criados possam torturar.

Viper afrouxou o abraço.

— Por um preço certo, Evor venderia até a própria mãe. Seus olhares se encontraram.

— Eu não esperava que você estivesse disposto a conce­der um favor à sua escrava - confessou Shay.

Ele deslizou os dedos por sua nuca.

— Por que está tão determinada a se considerar uma escrava, quando eu absolutamente não a vejo como tal?

Ela se surpreendeu mais uma vez.

— O que mais eu poderia ser? Comprou-me de um ven­dedor de escravos, e está de posse de um amuleto que me mantém presa a você.

— Preferiria que eu a devolvesse a Evor? Gostaria de possuir um dono diferente?

— Importa o que eu possa querer?

— Responda à minha pergunta.

Apesar da escuridão que os envolvia, Viper percebeu a emoção que tomou conta do rosto de Shay. Confusão. Embaraço. E, por fim, uma aceitação relutante.

— Não - ela murmurou tão suavemente, que se ele não fosse um vampiro, não a teria escutado.

Viper capturou os lábios carnudos, enquanto suas mãos buscavam-lhe os quadris. Testou o calor e a vida que ema­navam dela. Um doce sabor, capaz de seduzir um vampiro. Ele a desejava ali, naquele instante. E a intensidade de seu desejo era tanta, que chegava a assustá-lo.

Entreabriu gentilmente os lábios dela com a língua. Gemeu quando Shay retribuiu o beijo com a mesma neces­sidade frenética que o dominava.

O calor pareceu envolvê-los, até que Shay caiu em si e procurou se afastar.

Ele engoliu a decepção, mas ali não era o melhor lugar para possuí-la.

— Tem razão. Não temos tempo para distrações agora. Shay aspirou o ar e procurou recuperar a calma.

— Como me encontrou?

— Eu lhe disse que tenho guardas vigiando a casa.

Shay franziu a testa.

— Fui seguida?

— Claro que foi.

Viper, deliberadamente, se voltou para um vampiro alto e silencioso que estava por perto, nas sombras. Shay sentiu-se embaraçada. Santiago era uma figura impressionante com suas calças de couro e camiseta preta revelando os músculos. O rosto era estreito e os olhos, de um tom castanho profun­do, como seus ancestrais espanhóis. Bastou apenas um olhar para saber precisamente o que ele era: um guerreiro treina­do, que poderia matar para proteger seu clã.

Ela engoliu em seco.

— Ele é um vampiro, mas não podia estar patrulhando quando saí, senão eu teria percebido.

— Não estamos mais na Idade da Pedra, Shay - Viper observou.

— Minha casa é guardada por um sistema high-tech que inclui sensores, armas silenciosas, e uma série de câmeras que são constantemente monitoradas. Santiago estava no subsolo quando a viu saindo.

— Por que não tentaram me deter?

— Mandei que não fizessem isso.

O olhar de Shay era cheio de suspeitas.

— Por quê?

— Sabia que poderia segui-la sem problemas.

— Queria me espionar.

— Admito que estava curioso, mas, o que eu queria mes­mo era provar que é bobagem tentar escapar de mim.

A expressão do olhar de Shay endureceu.

— Sei que não vou conseguir escapar. Não precisa de um guarda. Pode simplesmente usar o amuleto e serei forçada a voltar.

— Não é esse o ponto.

— E qual é?

Mais uma vez, Viper acariciou-a no rosto.

— Há uma força poderosa que vem tentando captura­-la. Até que eu descubra o que é, não permitirei que fique andando por aí.

 Ele  estava preparado  para uma reação  de  raiva. Escrava ou não, ela ainda era uma espécie de demônio que não aceitava qualquer tipo de restrição. Mesmo que se referisse à sua segurança.

Surpreendentemente, porém, Viper não pôde ler nada, a não ser preocupação, nos olhos de Shay.

— Acredita que eu esteja em perigo?

— Você não?

Ela mordeu o lábio antes de soltar um longo suspiro.

— Está bem, tem razão. Fui uma idiota em sair do jeito que fiz. Mas agora pode me colocar no chão.

Satisfeito por ela deixar que a lógica pesasse mais do que sua natureza independente, Viper sorriu.

— É uma pena. - Ele a tocou de leve no pescoço.

— Pensei em ter você nos meus braços por mais tempo... Claro que minhas fantasias não incluíam nenhum de nós dois com roupa, muito menos um gárgula nos rodeando.

— Eu já disse que...

Shay interrompeu-se ao sentir a aproximação de Santiago.

— Mestre - ele chamou.

— Sim, Santiago, eu também senti o cheiro.

— Cheiro do quê? - ela quis saber.

— De sangue fresco.

Shay sentiu um arrepio. Até poucos momentos, ela se esquecera de que algo ou alguém estivesse tentando, captu­rá-la. Nem chegara a pensar nisso quando decidira cumprir sua promessa de libertar Levet. Não se lembrara nem por um segundo de que tinha agora um novo inimigo.

Era uma estúpida.

— Você matou Evor e os trolls? - Viper perguntou em um tom de voz que denotava apenas curiosidade. Como se não desse a mínima se ela tivesse chacinado as criaturas.

— Não, nem mesmo os vi.

— Nenhum deles? Não ouviu nada?

— Não.

Ele balançou a cabeça.

— Não acha isso estranho?

Shay deu de ombros, procurando se lembrar do que acon­tecera ao chegar à casa de leilão.

— Eles raramente entram na casa antes de escurecer.

Além do mais, entrei pela passagem dos fundos e fui direto à masmorra. Acredita que eles foram atacados?

— Alguma coisa foi. - Olhou silenciosamente para o prédio.

— Espere aqui.

Shay observou Viper e seu vampiro se moverem em direção à escuridão. Em menos de um segundo, eles sumiram nas sombras, e não havia sinal algum de suas silhuetas.

Ela se enrolou mais no manto, sentindo um arrepio per­correr o corpo. Levet flutuava à sua volta.

— Talvez devêssemos ir embora - resmungou.

— Acha mesmo? - Levet levou as mãos aos quadris.

— Hora, por que iríamos embora, quando podemos ficar aqui, perto de nossos inimigos, e "batendo papo" com vampiros? Depois podemos encher nossos corpos com gasolina e brincar com fósforos. A diversão, como dizem, nunca acaba.

Shay sentiu o rosto ficar vermelho de raiva.

— Não abuse, Levet.

— Vai me agarrar e me dar o beijo da morte?

— Você bem pode voltar para sua cela - ela grunhiu.

— Só sobre o meu cadáver. Shay estreitou os olhos.

— Isso pode ser feito também... Levet percebeu que tinha exagerado.

— Não precisa ficar nervosa, amiga. Inconscientemente, ela olhou para o lado onde vira Viper desaparecer.

— Seu novo senhor é um vampiro odioso - Levet observou.

— E o que parece.

— O chefe de seu clã.

Shay voltou a atenção para o gárgula.

— Como sabe?

— Posso sentir a marca de Cuchulain nele.

Shay umedeceu os lábios. Nunca estivera em uma bata­lha de gladiadores. Poucos demônios tinham acesso à elite das competições. Tampouco se permitia que participassem dela. Aqueles que saíam vivos passavam a ser temidos e respeitados por todos. Havia guerreiros que recebiam o tí­tulo de mestres.

— Viper esteve na Batalha de Durotriges?

— E viveu para contar a história. Impressionante. - Levet observou a amiga.

— Um demônio esperto jamais ou­saria irritar tal campeão.

O simples fato de Levet estar certo aprofundou a raiva de Shay. Mesmo se fosse uma legítima shalott, não levaria a melhor sobre um chefe de clã.

De alguma forma isso a irritava demais.

— Lembre-me por que me dei ao trabalho de libertá-lo... O rosto miúdo do gárgula ganhou uma expressão de ex­trema seriedade.

— Porque não aguenta mais ver ninguém torturado... Mesmo que isso signifique sacrificar a si própria.

Shay desviou o olhar, embaraçada. Não era uma santa.

Longe disso.

O fato é que tinha poucos amigos, mas estes lhe eram pre­ciosos. Quando encontrava alguém que a aceitava como era, valorizava essa amizade. Assim, não se importara em se arris­car a enfrentar a fúria de Evor para tentar libertar Levet.

Viper surgiu das sombras de repente e ela segurou o ar. Era uma beleza de vampiro.

Procurou afastar as sensações que ele lhe provocava.

— Encontrou Evor?

— Não precisamente.

— Como assim?

— Penso que deva ver com seus próprios olhos. Talvez possa nos ajudar a descobrir o que aconteceu.

Shay hesitou apenas um momento antes de seguir o vampiro para dentro da casa de leilão. Não tinha dúvida de que veria alguma coisa horrível. Algo que provavelmente lhe daria pesadelos.

Mas, mesmo enquanto pensava nisso, não se livrara de todo da ridícula sensação de calor que sentia simplesmente por estar com Viper.

Droga. Era escrava daquele vampiro. Mas ele a fazia se sentir como se fosse alguma outra coisa. Alguma coisa de valor. Bem lá no fundo, sabia que essas sensações que ele lhe provocava eram mais perigosas que estar presa em uma cela e ser torturada diariamente.

Voltando a cabeça para se assegurar que Levet os seguia, ela deixou que Viper a levasse para dentro da casa escura, e subisse as escadas para os aposentos particulares de Evor. Quando ele abriu a porta, ela quase desmaiou diante da cena. Esperara ver algo ruim, mas aquilo ia além do que poderia ter imaginado.

Tampou a boca com a mão, enquanto lutava para não devolver toda a comida que ingerira antes. A sala antes ele­gante estava agora coberta por pedaços de trolls. Sangue, membros e partes do corpo que não deveriam nunca ser vis­tas, estavam misturadas de tal forma, que era impossível saber quantos haviam morrido no ataque.

Forçando-se a analisar cuidadosamente o pesadelo, de­teve o olhar na cabeça de um troll que tinha sido enfiada em um pilar de mármore, como se fosse um troféu. Os olhos vermelhos estavam abertos, assim como a boca, os dentes arreganhados como se estivesse, no momento de sua morte, amaldiçoando a alma de seu assassino.

Nada, porém, o tinha salvado. Nem aos outros seguranças. Eles haviam sido mortos e feitos em pedaços.

Uma onda de náusea voltou a atacá-la.

Pegando-a pelo braço, Viper a tirou do quarto e fechou a porta. Então, como se sentisse sua fraqueza, ele a fez se sentar em uma cadeira.

— Há poucas criaturas que podem matar trolls com tan­ta selvageria. - Ele a observou com atenção.

— Consegue captar alguma coisa que possa nos ajudar a identificar quem foi o responsável por isso?

Com um enorme esforço, ela se endireitou e tentou pen­sar com lógica.

— Não foi um humano. Eles não têm força para cortar um troll ao meio.

— Foi um feitiço?

— Não. - Ela respirou profundamente.

— Não há má­gica no ar.

Viper balançou a cabeça. Um vampiro não tinha habili­dade de sentir mágica. Uma das razões que o levara a que­rê-la por perto.

—Deve ter sido arte de um demônio que possui uma força incrível, além de habilidade para se mascarar na presença de vampiros - murmurou, preocupado.

— Isso encurta a lista, mas ainda restam suspeitos demais.

Shay sentiu um arrepio. O ataque selvagem a tinha aba­lado, mas agora ela começava a se recompor.

— Oh, Deus...

Viper tocou de leve em seu ombro.

— Eu não devia tê-la feito ver isso. Perdoe-me. Shay sacudiu a cabeça.

— Não é isso. É Evor.

— Evor? - Viper logo compreendeu:

Ele não estava entre os mortos.

— Obviamente não. - Ela soltou uma risada nervosa.

— Se Evor estivesse nesse quarto...

— Ele está vivo, assim como você.

— Sim, mas podia não estar.

Viper olhou em direção à porta do quarto.

— Precisamos descobrir quem fez isso, e para onde Evor foi levado.

Shay fez uma careta ao pensar no troll nojento.

— Sem dúvida estava escondido atrás de alguma coisa no momento em que a chacina começou. Ele sempre fica fe­liz em sacrificar os seus criados para salvar a própria pele.

— Ele estava aqui. - O olhar de Viper era sério.

— Seu sangue está misturado com o dos outros.

Shay arregalou os olhos e procurou se afastar de Viper. Ele pudera cheirar o sangue de Evor. Era um vampiro.

— Quer dizer que alguém, ou alguma coisa, veio aqui esta noite, matou os trolls e feriu Evor? Por quê?

— É coincidência demais que esse ataque tenha aconte­cido logo após você ter sido vendida. Quem quer que a esteja caçando, voltou à casa de leilão.

Shay sentiu a garganta seca.

— Para matar Evor?

— Se quisesse Evor morto, já teria feito isso. Ou ele esca­pou durante a batalha, ou eles vieram para pegá-lo vivo.

— Mas, por quê?

— Para usá-lo como isca. - A voz de Levet soou ines­peradamente, e tanto Shay como Viper se voltaram para o gárgula, surpresos.

— Se pegaram o troll, podem ameaçar de cortar a gar­ganta dele e, assim, matar vocês dois. Shay não teria esco­lha, a não ser fazer o que exigissem.

Ela sentiu um peso enorme no coração. Droga, já havia sido horrível estar sob o poder de Evor. Agora ainda tinha de se preocupar que seu misterioso inimigo não fizesse o troll em pedaços.

Voltou-se para Viper. Respeitava a sua linha de pensa­mento.

— Acha que é isso o que eles querem?

— Penso que seria tolice chegarmos a qualquer conclu­são antes de termos mais fatos. E, claro, precisamos sair logo daqui.

Shay procurou apagar da memória a imagem da chaci­na, uma tarefa quase impossível, enquanto Viper a levava em direção às árvores.

— Antes de deixarmos este lugar, há outras coisas que queira pegar de volta?

— Há demônios presos nas masmorras. Viper arqueou a sobrancelha.

— Também são seus amigos?

— Nem sei quem está por detrás das grades. Mas com os trolls mortos e Evor desaparecido, eles podem ficar trancados naquelas celas por uma eternidade. Isso é pior que tortura.

— Mas eles podem ser perigosos.

Shay não duvidara por um minuto que fossem extrema­mente perigosos.

— Não podemos deixá-los lá.

— Santiago.

O vampiro surgiu por detrás das árvores.

— Sim, mestre?

— Vá à masmorra e solte os prisioneiros.

— Sim, mestre.

Não houve um instante de hesitação, e o silencioso vam­piro sumiu na escuridão. Viper esperaria dela igual submis­são? Shay se perguntou.

— Acha seguro ele ir sozinho? Ele deu de ombros.

— Santiago é um vampiro.

Que arrogância! - ela pensou, cerrando os dentes.

— Muito bem, podemos ir?

Ouviram um bater de asas: sinal de que Levet estava nervoso.

— Shay, e quanto a mim?

— Viper? - Ela se voltou para o vampiro, sem saber como fazer o pedido.

— Não podemos deixar Levet aqui. Ele foi expulso de seu clã.

Ele franziu o cenho.

— Está me pedindo que eu o tome sob minha proteção? Ela ignorou a batida agitada de seu coração.

— Sim.

— E qual será a minha recompensa por tal generosidade?

— Shay, não! - Levet gritou.

Ela ignorou o alerta de seu amigo e enfrentou o olhar do vampiro.

— O que você iria querer de mim?

— Bem, esta não é uma pergunta que possa ser respon­dida de imediato. Há tanto que quero de você... - ele mur­murou, chegando mais perto.

— Talvez eu apenas possa lhe pedir um vale por enquanto.

Shay umedeceu os lábios.

— Quer que eu fique lhe devendo um favor?

— Estaria em débito comigo. Um débito que eu poderia cobrar no momento em que eu quisesse.

— Não faça isso, Shay! - Levet exclamou.

— Nunca bar­ganhe com um vampiro.

Shay sabia dos riscos que corria. Os demônios sabiam que os vampiros distorcem as palavras. Mas o que tinha a perder?

— Podemos negociar?

— Isso depende. O que me oferece?

— O débito não pode envolver sangue nem sexo. Viper caiu na risada enquanto baixava a cabeça para o pescoço de Shay. Seus lábios deslizaram sobre a pele quente e lhe provocaram arrepios na espinha.

— Acaba de eliminar dois de meus maiores desejos.

— Sou uma guerreira treinada.

— Já tenho muitos guerreiros.

— Que podem andar durante o dia?

— Alguns. O que mais tem a oferecer? Shay sentiu os joelhos amolecerem.

— Aprendi a fazer um bom número de poções enquanto estive com as bruxas.

Viper aumentou o sorriso.

— Intrigante, mas dificilmente cobre um débito. Talvez sentindo que ela hesitava, Levet soltou um alto grunhido.

— Não faça isso, Shay.

Viper sentiu a curiosidade aumentar.

— Eu... - Shay engoliu em seco.

— Meu pai era um Lumos. Curava pessoas de nossa tribo. Seu sangue pode curar tudo menos a morte.

Viper a olhou, curioso.

— E você?

— Herdei dele essa bênção. Algo surgiu nos olhos negros.

— Muito útil, claro - comentou Viper.

— Um presente raro, na verdade. Mas dificilmente um vampiro necessita­ria disso.

— Mesmo imortais podem ser feridos - lembrou Shay.

— Minha mãe me disse que foi por isso que meu pai foi mor­to. Seu sangue foi usado para salvar a vida de um vampiro.

— Um vampiro? Tem certeza?

— Tenho.

— Estranho que eu não tenha ouvido tais rumores. Bem, o que, precisamente, você está me oferecendo?

— Se você for ferido, eu lhe darei o sangue necessário para curá-lo sem lhe cobrar nada. Estamos de acordo?

As feições de Viper suavizaram.

— Uma barganha...

— Sem sangue e sem sexo.

— Não preciso barganhar por sangue ou sexo. Estará me dando ambos com entusiasmo daqui a muito pouco tempo.

Ele a beijou, impedindo que argumentasse. E foi o tipo de beijo que toda mulher sonha em receber: quente, exigente. Santiago apareceu nesse momento.

— Santiago cumpriu a minha ordem... Viper falou com um suspiro.

— Melhor irmos embora antes que os que ele tenha libertado resolvam vir aqui para nos matar.

Shay aquiesceu. Claro que ele tinha razão.

Os pensamentos de Viper foram desviados quando se aproximavam de sua casa, nos arredores de Chicago, embora ele preferisse continuar concentrado no aroma do corpo de Shay, sentada bem ao lado dele. A distração veio da cer­teza de que algo poderoso continuava caçando a sua shalott. Algo tão vicioso, que talvez não houvesse como protegê-la.

O pensamento encheu seu coração de um medo que ele não conseguia identificar.

Mas, mesmo perturbado, sentiu uma presença estranha em sua casa, no momento em pisou no chão da cozinha.

— Alguém está aqui. - Rapidamente, puxou Shay, protegendo-a com o corpo.

— Santiago, dê uma olhada nos jar­dins e verifique se não temos convidados inesperados.

Aguardou que o vampiro desaparecesse, antes de levantar a cabeça e testar o ar. Somente quando teve certeza de que não era um perigo imediato, foi que se voltou para Shay.

Não havia sinal de medo nas feições dela.

— Creio que seja melhor seguir direto para o seu quarto e trancar a porta.

Ela cerrou as sobrancelhas e a expressão de seu rosto de­nunciou teimosia: uma característica dela com a qual Viper começava a se familiarizar.

— Shalotts são guerreiras. Não nos escondemos atrás de portas trancadas.

Ele abriu um sorriso.

— Não duvido de suas habilidades em batalha, queri­da, mas nosso intruso é um vampiro. Não gostaria de ser forçado a matar alguém de meu clã porque ele a achou irresistível.

Shay abriu a boca e depois a fechou, terminando por concordar com um gesto de cabeça. Ela detestava parecer covarde, mas odiava mais ainda a chance de encontrar ou­tro vampiro.

Seguiu para o quarto, acompanhada de perto pelo gárgula, repetindo a si mesma que tinha todo o direito não confiar em vampiros. Era um preconceito de que não se livraria tão cedo.

Viper seguiu o cheiro de seu visitante até os fundos da casa. Não se surpreendeu quando, ao entrar no escritório, encontrou o vampiro sentado calmamente à sua escrivani­nha. De todos os membros de seu clã, Dante era com quem ele tinha mais afinidade. Recentemente haviam lutado lado a lado contra as bruxas, para libertar a Fênix, a Deusa da Luz, que protegia o mundo do príncipe da escuridão.

Fora então que ele conhecera Shay. Não sabia se deveria agradecer o amigo, ou acabar com ele por tê-lo envolvido na luta. Afinal, desde que conhecera Shay, não sabia mais o que era paz.

Seguiu direto para o bar e se serviu de uma garrafa de sangue. Era um pobre substituto para o poder mágico que conseguiria com o sangue de Shay, mas, por hora, restaura­ria suas energias.

Observando os movimentos do amigo, Dante sorriu le­vemente.

— Boa noite, Viper.

Apoiando as costas no bar, Viper cruzou os braços.

— Vejo que está se sentindo em casa, apesar de saber que nunca recebo ninguém aqui.

O sorriso aumentou.

— Tem sorte de ser eu a estar sentado aqui e não Abby. Ela se irritou ao saber que você comprou uma mulher. - Dante apertou os olhos.

— E não uma mulher qualquer, mas a que lhe salvou a vida.

Viper não duvidava de que Abby o torrasse vivo se pen­sasse que ele estivesse cometendo uma injustiça. Ninguém com bom senso desejaria tê-la como inimiga.

Mesmo assim, ele era chefe de seu clã. Um líder entre vam­piros. Não tinha de dar satisfação de seus atos a ninguém.

— Quando telefonei para dizer que tinha comprado a shalott, foi só para lhe pedir ajuda para descobrir quem a está perseguindo. Não pedi sua opinião sobre meus assun­tos pessoais.

Dante deu de ombros.

— Você vive dando palpites sobre a minha vida.

— Palpites podem ser ignorados. Exatamente o que pre­tendo fazer. Agora, se foi para isso que veio aqui...

Dante levantou-se da cadeira, os olhos brilhando.

— Viper, qual é o seu jogo?

Ele colocou de lado a garrafa vazia.

— Não há jogo algum.

— Mas você sempre condenou aqueles que pretendiam capturar ou vender um vampiro em seu território.

— Shay não é um vampiro.

— Abby não vai sossegar até que tenha certeza de que você não pretende fazer nenhum mal a shalott.

Viper caiu na risada.

— Pelo menos você é honesto. Mas me diga, Dante, sua linda esposa preferiria que eu tivesse deixado alguém com­prar Shay e a usasse como prostituta? Ou talvez como um troféu para ser pendurado em uma parede da casa de um caçador de demônios?

— Ela preferiria que você a libertasse.

E permitir que Shay lhe escapasse como havia feito de­pois da luta contra as bruxas? Apenas sobre seu cadáver.

— Impossível - resmungou Viper, decidido.

— Recebi um amuleto que a força a se apresentar a mim, mas a praga está ainda sob o controle de Evor, o troll mercador de escra­vos que, aliás, desapareceu.

Dante estreitou o olhar.

— O que está dizendo?

Resumindo, Viper revelou o que tinha descoberto na casa de leilões. Descreveu com detalhes a mutilação dos trolls. Talvez Dante reconhecesse alguma coisa sobre o ataque, o que ajudaria na identificação do responsável.

— Tem certeza de que se trata de um demônio? - Dante perguntou.

— O que mais podia ser?

— Um bruxo, talvez?

Viper escondeu um sorriso. Quem podia culpar o amigo por ter tanta suspeita de bruxos? Ter enfrentado mais do que um atentando contra sua vida acabava levando a isso.

— Shay não captou mágica alguma. Dante sacudiu a cabeça.

— Se fosse um demônio, saberia. Há poucos que podem esconder o seu cheiro de um vampiro.

— Um Hunding, um Irra, talvez um Napchut.

— Eles são poderosos o suficiente para destruir um ni­nho de trolls?

Essa era uma pergunta que vinha atormentando Viper desde que vira os trolls destroçados no quarto.

— Um guerreiro Lu seria - lembrou, sério.

Dante estremeceu e Viper não podia culpá-lo. Estavam falando do maior tormento do mundo dos demônios. Um pe­sadelo que se arrastava pela terra para devorar quem sur­gisse em seu caminho.

— Os Lu não têm sido vistos há muito séculos - Dante argumentou.

— Tampouco os shalotts.

— É verdade. - A expressão no rosto de Dante ficou pesada.

— Um vampiro, mesmo um chefe de clã, não seria forte o suficiente para derrotar um Lu. Os dentes dele são capazes de arrancar as cabeças até dos imortais.

— Não pretendo me ver sob ataque de qualquer demônio. - Viper sorriu.

— A não ser que esse atacante esteja sem roupas em minha cama. Dante estalou a língua.

— Deixe de brincadeiras. Sua escrava despertou a atenção de um inimigo muito perigoso. Você faria melhor se a passasse adiante.

— Lembro-me de lhe ter dito as mesmas palavras tempos atrás.

— Abby é minha companheira. Pertence a mim e eu daria a minha vida para protegê-la. Mas por que você se arris­caria pela shalott?

Viper não queria explicar a fascinação que sentia por Shay. Nem mesmo para Dante. Nem para si mesmo.

— E um assunto meu. Dante ficou pensativo por uns instantes.

— Como queira. Mas eu estou avisando: Abby não vai sossegar enquanto não tiver certeza de que Shay não está sendo torturada.

Viper cerrou os dentes. Ele era o chefe de seu clã. Um chefe que detinha o poder sobre milhares de vampiros e de­mônios.

Mas ele sabia que era bobagem argumentar com uma mulher. Ainda mais sendo a Fênix.

— E o que pode fazer Abby sossegar?

— Ela quer que Shay passe um dia com ela. Eu disse um dia, não uma noite, veja bem.                           

— Para que eu não possa interferir?

— Em parte. - Um sorriso surgiu nos lábios do outro vam­piro.

— Mas, na verdade, creio que Abby queira a companhia de outra mulher. Apesar de ser uma deusa, ainda é humana o suficiente para querer fazer coisas que somente as mulheres gostam: como compras e fofocas regadas a um café.

Viper fez uma expressão de horror.

— Pelo sangue dos justos, por quê?

— Isso, velho amigo, é uma pergunta que está além da lógica de um vampiro.

Viper mordeu o lábio. Ele não queria dividir Shay com ninguém.

Mas, infelizmente, não podia se esquecer da sombra de tristeza que havia nos olhos de sua shalott. Tampouco de sua determinação em salvar o gárgula.

Ela se sentia solitária. Profundamente solitária.

— Eu passarei a Shay o convite de Abby. Ela decidirá se quer ir ou não.

Dante pareceu levemente surpreso.

— Ela não é sua escrava?

— Digamos que seja minha hóspede.

— Você sabia que ela estaria à venda quando foi ao leilão? A paciência de Viper chegou ao fim.

— Penso que é hora de você voltar à sua amável mulher. Algo na expressão de Viper deixou claro a Dante que ele não deveria insistir.

— Viper, você é mais do que o chefe de meu clã, você é meu amigo. Se precisar de ajuda, quero que me prometa que vai me chamar.

— E ter a fúria da Fênix atrás de mim por ter colocado a shalott em perigo? - Viper balançou a cabeça.

— Não sou tão estúpido.

— Ninguém se sente tão em débito com você como Abby. Ela usará os seus próprios poderes para mantê-lo em se­gurança.

— E que poderes.

Dante olhou firme para o amigo.

— Vai me chamar ou não?

Viper ficou um instante em silêncio, mas terminou con­cordando. Dante era tão teimoso quanto ele. Não sairia dali sem a promessa.

— Eu chamarei.

Dante deu um passo para trás e se curvou respeitosa­mente diante de Viper.

— A promessa foi feita, mestre. - Ele endireitou o corpo e seus olhos brilharam.

 — Dê um beijo por mim e por Abby em sua shalott.

Viper balançou a cabeça.

— Quando estiver beijando Shay, eu lhe asseguro que não será por você nem por ninguém.

Com uma risada, Dante saiu do aposento pela janela.

Viper serviu-se de um conhaque e ficou andando de um lado a outro da sala. O amigo tinha dito a verdade. Shay es­tava sendo perseguida por um inimigo que poderia colocar a vida dele em risco. A sabedoria o mandava se livrar dela e jogar o maldito amuleto no rio mais próximo... O que valeria o risco de ser morto? E, pior que isso, poderia condenar à morte membros de seu clã?

Tomou um gole do conhaque sabendo que a resposta para as suas perguntas poderia ser mais assustadora do que seu oculto inimigo.

Cerca de duas horas mais tarde, Viper subiu as escadas para o segundo andar. Tentara, com ênfase, afastar seus pensamentos da linda mulher que enchia a casa inteira com um doce perfume. Pesquisara em sua biblioteca tudo sobre demônios, para ver se chegava a alguma explicação quanto à chacina dos trolls. Entrara em contato com seus vários negócios, querendo se assegurar se houvera ou não ines­perados problemas. Fizera pessoalmente uma inspeção nos jardins para falar com seus guardas e se certificar de que tudo estava sob controle.

Mas, por fim, não tinha conseguido impedir que o desejo falasse mais alto. Queria ver Shay, escutar sua voz, tocar sua pele macia.

Ou, pelo menos, estar perto dela. E isso era patético.

Aproximando-se do quarto, deu com o pequeno gárgula dormindo no chão, junto à porta. Obviamente estava ali como guardião. Um pensamento que poderia irritá-lo, mas não. Ele valorizava a lealdade aos amigos. Era mais fácil lutar contra um guerreiro perigoso do que contra um ami­go protegendo um companheiro. Alguém disposto a morrer pelo outro o transformava em um perigoso inimigo.

Aproximou-se do gárgula, que se levantou e endireitou o corpo. Podia não ter o tamanho de um gárgula normal, mas continuava com seu orgulho.                                                               

— Há um bom número de quartos nesta casa - Viper disse.

— Tenho certeza de que estaria bem mais confortável em algum deles.

— Procurarei um quarto quando amanhecer. Até lá per­manecerei aqui.

— Ah, está no posto de sentinela.

O tom era suave, mas o gárgula pareceu se ofender.

— Acredita que eu não consiga proteger Shay?

— Ao contrário, acredito que provaria ser um adversário muito perigoso. Felizmente, não há necessidade de se preocupar com isso, esta noite. Meu visitante já foi embora e a casa está em segurança.

— Mas você permanece aqui.

Viper arqueou a sobrancelha. Havia poucos demônios que teriam coragem de confrontá-lo assim, tão diretamente.

— Não sou ameaça alguma, meu pequeno guerreiro.

— Sugere que Shay está em segurança em suas mãos?

— Paguei uma grande soma por ela. Sou um negocian­te esperto o suficiente para não jogar fora uma fortuna em algo que pretendesse destruir.

Os olhos cinzentos se estreitaram.

— Perguntei se ela estaria segura.

Viper sorriu lentamente. Levet sabia da fome que fluía em suas veias.

— Ela está sob minha proteção. Não represento um perigo para ela, e não permitirei que alguém a machuque enquanto eu tiver poder suficiente para mantê-la em segurança.

O gárgula ficou pensativo por um longo momento.

— Você prometeria isso?

A exigência pegou Viper desprevenido.

— Aceitaria a promessa de um vampiro?

— Aceitaria a promessa de um chefe de clã. Inconscientemente, Viper tocou no dragão tatuado em seu peito. Havia se esquecido que gárgulas eram tão sensí­veis aos símbolos.

— Tem a minha promessa.

— Ótimo. - Levet balançou a cauda.

— Vou deixar Shay aos seus cuidados e encontrar alguma coisa para comer.

— Há bastante comida na cozinha.

— Estou cansado dessa comida de humanos.

— Pretende caçar? - Viper ergueu as sobrancelhas bem desenhadas.

— Claro. Faz tempo que não faço isso.

— Pois eu lhe sugiro que fique por perto da casa, até que possamos identificar quem está atrás de Shay.

O gárgula deu de ombros.

— Já está muito próximo do amanhecer para eu ir mui­to longe.

— E nem humanos nem vampiros devem estar no seu cardápio - Viper observou com voz séria.

Saerebleu. Tenho cara de quem come humanos ou vampiros?

Viper escondeu um sorriso.

— Prefiro que as regras estejam claras.

Levet balançou as asas e seguiu direto para as escadas, praguejando em francês, mas ficou claro para Viper que os xingamentos eram contra ele.

Oh, o que isso importava? Eleja fora chamado antes por nomes piores. E provavelmente seria de novo.

Colocou a mão na maçaneta da porta. Sem dúvida a mu­lher o esperava.

Shay andou de um lado para o outro antes de ter a certe­za de que não seria atacada. Obviamente o vampiro apare­cera para uma visita, não para um pequeno lanche.

Ainda bem. Ela já vira sangue demais por um dia.

Confiante de que Viper devia estar entretido com sua visita, ela havia tomado um banho. Despira-se e entrara debaixo do chuveiro, como se pudesse varrer da mente as imagens horríveis dos trolls chacinados.

Tinha suspirado profundamente ao sentir a água morna. E mais uma vez ao descobrir a variedade enorme de sabo­netes e óleos que se alinhavam em uma prateleira de vidro, junto ao chuveiro.

Nunca havia desfrutado tais luxos, pensou, enquanto la­vava seus longos cabelos com xampu de flores. Terminado o banho, tinha se enrolado em uma toalha, certa de que encontraria Levet deitado na cama dela.

Encontrou alguém... mas não era o gárgula.

O belo vampiro levantou-se imediatamente quando a viu.

— O que veio fazer aqui?

Viper deslizou os olhos pelo corpo de Shay, sorrindo le­vemente.

— Eu pensei que gostaria de saber que meu visitante já foi embora.

— Se isso for tudo...

— Minha governanta deixou jantar para você na cozinha.

— Oh, obrigada. - Shay comprimiu os lábios.

— Descerei mais tarde.

O olhar de Viper voltou ao corpo de Shay e se deteve nos seios sob a toalha úmida. O sorriso dele aumentou quando percebeu os mamilos reagindo ao seu olhar.

— Certamente você está com fome. Eu sei que tem um bom apetite.

Shay procurou se afastar de Viper o mais rápido possível.

— Dificilmente poderia ir como estou agora. Ele riu.

— Por que não? Eu não me importo, garanto...

— Mas eu sim.

— Muito bem. - Ele caminhou até o armário e de lá tirou um roupão, que estendeu a ela.

— Você disse que nunca recebia ninguém nesta casa.

— Não recebo. - Viper abriu um armário repleto de pe­ças femininas.

— As roupas são suas.

Shay olhou a coleção de vestidos, admirada.

— Minhas?

— Pensou que eu a manteria nua em uma cela?

— Eu... - Ela balançou a cabeça e caminhou até o ar­mário. Havia jeans, camisetas, calças compridas, suéteres e trajes sofisticados que a deixaram com água na boca. Nunca em sua vida possuíra tanta roupa. E, certamente, não tão caras.

— Não esperava que tivesse me comprado um guar­da-roupa completo.

— Comprei apenas o trivial. Depois pode comprar o que quiser. - Ele parou e suspirou profundamente.

— Falando nisso, Abby quer fazer compras na sua companhia.

— Abby?

— Você a conheceu quando lutávamos contra as bruxas. Shay ficou confusa.

— Está se referindo à Fênix?

— Acredito que ela prefira ser chamada de Abby. Shay se apoiou no guarda-roupa com as pernas fracas. Não fazia sentido o que Viper estava dizendo.

— Mas... por quê? Por que ela se lembraria de mim? Ele deu de ombros.

— Você a ajudou a derrotar as feiticeiras.

— Não fiz nada disso.

— Resistiu às ordens das bruxas que a mandaram cap­turar a Fênix. Foi espancada quase até a morte, mas se recusou a ajudá-las. Também lutou ao lado da Fênix contra Edra. - A expressão no olhar de Viper era de seriedade.

— Ela nunca se esquece de coisas assim. Nem Dante.

 Bem, tinha sido verdade que ela desobedecera às bruxas que queriam usar a Fênix como instrumento para matar demônios.

— Isso dificilmente nos torna amigas - ela resmungou. Viper sorriu.

— Diga isso a Abby. Ela parece pensar que as expe­riências que vocês duas tiveram lhe dão não só o direito de chamá-la de amiga, como de querer ter certeza de que não está sendo maltratada sob o meu teto.

Abby sentiu algo estranho dentro dela. Algo que parecia um pouco com medo.

— Ela sabe quem eu sou?

— O quê?

— Ela sabe que sou um demônio?

Viper hesitou, escolhendo as palavras com cuidado.

— Ela sabe que você tem dentro de si o sangue de uma shalott.

— E mesmo assim quer ir comigo às compras?

— Somente se você quiser. Tenho certeza de que poderá mudar os planos para algo que você prefira. Ele agora estava bem ao lado de Shay, mas não a tocava.

— O que foi, Shay? Eu disse alguma coisa que a tenha aborrecido?

— Não sei o que ela quer de mim. Sou um demônio. Ele soltou uma risada.

— Abby tampouco é humana.

— Não, ela é uma deusa.

— Uma deusa, talvez, mas também uma mulher que batalhou contra as bruxas para salvar todos os demônios, e que agora está casada com um vampiro. Ela não tem pre­conceitos contra ninguém, se for isso o que teme.

Seria isso o que ela temia?

A verdade é que não confiava em Abby. Não quando ela oferecia algo tão raro como amizade. A experiência lhe ensinara que tais oferecimentos nunca vinham de graça. Usualmente o preço era um que ela não queria pagar.

Sentindo-se sobre o intenso olhar de Viper, Shay suspi­rou profundamente.

— Nunca antes alguém me convidou a fazer compras. Ele continuou sem tocá-la, no entanto pegou a escova e começou a lhe pentear os cabelos.

— Você disse que sua mãe a criou como uma humana. A voz dele era suave e gentil e isso a deixou mais inquieta.

— Infelizmente, isso foi há muito tempo.

— E você se passava por humana?

Shay franziu o cenho. Ela tentara muito parecer uma humana e pertencer à sua comunidade.

— Não.

Ele deteve a escova.

— Mas você parece humana.

Shay nunca falara antes sobre seu passado. Com nin­guém. Mas naquele silêncio cheio de paz que os rodeava, e diante da ternura com que ele escovava seus cabelos, ela começou a falar:

— Posso parecer humana, mas não envelheço como uma mortal. Minha mãe e eu estávamos sempre nos mudando para que ninguém notasse que eu não ia me desenvolvendo como devia.

— Lembrar-se da mãe fez com que Shay sentis­se uma dor profunda no coração.

— Certamente um problema, mas não insuperável.

— Talvez não. Mas havia também a minha força e a mi­nha agilidade. Não havia nada de humano nelas.

Viper deteve a escova mais uma vez.

— As outras crianças tinham medo de você?

— Muito.

— Crianças podem ser muito cruéis. Shay colocou as mãos no colo.

— Não tão cruéis quanto seus pais. No decorrer do tem­po tivemos nossas casas incendiadas, pedras atiradas con­tra nós, e padres tentando exorcizar o demônio que havia dentro de mim. Cheguei a ser enforcada uma noite.

— Enforcada?

— Um grupo me tirou da cama e me pendurou pelo pescoço em uma árvore de nosso quintal. Você pode imaginar a sur­presa deles quando eu fui procurá-los na manhã seguinte.

Seguiu-se um longo silêncio, como se Viper estivesse pensando naquilo que acabara de ouvir. O modo como es­covava os cabelos de Shay era extremamente gentil. E ela sentiu que ele parecia frustrado.

Estranho.

— E por que sua mãe não pediu ajuda aos demônios? - ele quis saber por fim.

Ela voltou a cabeça e o olhou de frente.

— Meu pai tinha sido morto por um vampiro. Ela estava tentando me esconder dos demônios.

O olhar dele escureceu.

— Há demônios que teriam lhe oferecido um santuário, Shay. Nem todos são animais.

— Minha mãe era humana. Não sabia em quem confiar. - Subitamente, os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Também não sei.

— Shay... - Ele largou a escova e tomou o rosto dela nas mãos.

Ela se esqueceu de como respirar enquanto observava Viper inclinar a cabeça. Ele se movia bem devagar. O sufi­ciente para que ela soubesse que lhe estava sendo dada a oportunidade de dizer "não".

Estremeceu e Viper se deteve, como se esperasse ser incentivado. Mas enquanto a mente dela tentava desesperadamente se lembrar que era um vampiro que a tocava - um vampiro que a comprara e a possuía como se fosse um objeto - seu corpo permanecia indiferente ao bom senso.

Precisava sentir o toque de Viper. Não, ela ansiava por seu toque... Pelo gosto de seus lábios, pelo roçar de suas pe­les, pela carícia que ele faria em seus seios. Nunca entendera antes como uma mulher podia permitir que a seduzissem.

Naquele momento, porém, compreendeu o poder do de­sejo; a necessidade de tocar e ser tocada, não importando se isso era ou não certo.

— Tem de me dizer "sim" - ele murmurou suavemente.

— Não quero ser acusado de ter quebrado minha promessa. Oh, a voz dele era simplesmente intoxicante.

— Sim.

Viper desceu os lábios, aprisionando a boca de Shay em um beijo que mandou ondas de calor por seus corpos. Shay estava preparada para o prazer, mas a intensidade deste a surpreendeu.

Oh, sim, era disso que ela precisava. O que seu corpo pedia desde que o vira pela primeira vez, semanas antes.

Saboreou o conhaque que havia ainda nos lábios dele. Instintivamente, levou as mãos ao peito largo, desejando poder tocar-lhe a carne e não apenas a seda da camisa.

Ele grunhiu e procurou abrir a camisa, alguns botões se soltando na pressa.

— Toque-me - murmurou.

— Deixe-me sentir suas mãos em mim.

Shay deu um passo para trás. Não por rejeição, mas sim­plesmente porque queria ver o que estava tocando. Sempre tinha imaginado o que estaria escondido debaixo daqueles casacos de veludo e camisas de seda. Agora queria apreciar o que tinha à vista.

Seus olhos brilharam e seus lábios se entreabriram em um suspiro silencioso.

À luz fraca, o peito de Viper era largo e musculoso como ela o imaginara. Mas seus sonhos não incluíam o exótico dragão tatuado sobre a pele.

Deslumbrada, ela deslizou os dedos sobre a figura da criatura mítica antes de chegar às asas e ao corpo em tom jade-escuro.

— O que é isto? - ela quis saber num sussurro. Ele estremeceu com o gesto gentil de seus dedos.

— A marca de Cuchulain.

Shay não conseguia pensar muito bem enquanto Viper beijava a curva de sua orelha.

— Doeu? - perguntou por fim.

— A tatuagem?

— Sim.

As mãos dele acariciavam agora seus braços e ela mal podia respirar.

— Não. Nem mesmo a senti. - Viper mordeu de leve a ponta da orelha.

— Simplesmente apareceu após minha última batalha na arena.

— Ela o marca como chefe de clã?

— Sim.

— Eu...

As palavras se perderam em uma onda de prazer, quan­do a língua dele deslizou sobre seu pescoço.

— O que quer saber?

— Não me lembro.

Viper riu enquanto suas mãos continuavam se movendo sem parar.

— Preciso ver você - ele murmurou.

— Diga que sim. Ela sentiu o prazer aumentando de intensidade. Isso lhe dava uma sensação de poder que raramente tinha experi­mentado na vida. Agora era ela quem detinha o controle, e isso terminava sendo um fantástico afrodisíaco.

— Sim.

Os dedos dele a pressionaram por um instante, como se Viper se surpreendesse com sua rápida capitulação. Logo, porém, ele soltava as pontas da toalha e a olhava, deslumbrado.

— Pelo sangue dos puros - murmurou, envolvendo um dos seios com a mão.

— Você é perfeita.

Não, ela não era perfeita, Shay pensou, excitada. Longe disso. Era magra demais. Tinha a pele bronzeada demais. Os seios pequenos demais.

Mas, naquele momento, sob o olhar predatório do belo vampiro, sentia-se linda. Desejada.

Agora os lábios de Viper deslizavam, ávidos, por seu pes­coço. Não sentiu, porém, seus caninos, e não fez gesto algum de se afastar.

Confiava em Viper. Confiava que ele não exigiria mais do que ela estaria disposta a oferecer.

Passou a mão pela pele acetinada do peito forte. Era fas­cinante a firmeza dos músculos logo abaixo: como se um veludo envolvesse o aço.

O desejo de explorar o corpo inteiro de Viper era enor­me. Ela nem mesmo percebeu quando ele gentilmente a colocou sobre a cama e capturou um dos mamilos com os lábios.

Soltou uma exclamação de prazer quando a língua dele roçou a ponta do mamilo, provocando-a e levando-a ao delí­rio. Era tão bom... Tão terrivelmente bom!

— Oh, Deus - gemeu, estremecendo quando Viper des­lizou a língua pela curva dos seios antes de voltar a ator­mentá-los nas pontas. Enfiou as mãos nos cabelos dele, puxando-o para mais perto, permitindo que estes caíssem como uma cortina de seda sobre ela. Sentia tanto prazer que temia parar de respirar.

Viper continuou mordiscando o mamilo enquanto entreabria suas pernas e a tocava intimamente.

Shay o agarrou pelos ombros.

— Viper...

— Não vou machucá-la. Confie em mim, Shay.

Ela tentou protestar, mas estremeceu. As sensações não a deixavam pensar direito.

Seus olhares se encontraram. Por um longo momento, ela simplesmente ficou olhando, entontecida, para o rosto lindo à sua frente.

Não se deixe envolver, Shay, uma voz murmurou dentro dela. Não confie em um vampiro!

Entreabriu os lábios, mas nada disse. Em vez disso, tor­nou a enlaçá-lo pelo pescoço e o trouxe mais para junto de si. Ele voltou a beijá-la com ânsia, os dedos movendo-se so­bre ela com enlouquecedora delicadeza. Involuntariamente, Shay ergueu os quadris do colchão. Viper não era seu pri­meiro amante, mas nada a preparara para aquilo. Sentia-se arder como um vulcão e queria se consumir nesse fogo.

Ele continuou a atormentá-la com a língua e os dedos, e Shay quase o sufocou com seu abraço ao se ver já próxima a um orgasmo.

— Viper! - ela gritou.

— Eu sei, querida... - ele sussurrou, ofegante, ao mesmo tempo em que a pressionava com sua ereção.

— Não lute contra o prazer.

A respiração de Shay começou a sair em curtos espasmos quando os dedos de Viper ousaram explorar seus mais re­cônditos recantos. Seu corpo inteiro estremeceu com a doce invasão, e ela foi sacudida pela explosão do êxtase.

O corpo excitado de Viper ainda pressionava o dela, quando Shay se deixou ficar deitada, em silêncio, por um longo momento. Ela se sentia como se estivesse flutuando. Como se tivesse sido lançada em um mar de águas quentes e revoltas, e depois fosse levada gentilmente pelas ondas para a praia.

Viper a tocou no rosto, como se ela fosse um tesouro frágil que ele temia quebrar, os lábios apenas roçando sua pele.

Incapaz de se mover, Shay por fim conseguiu respirar profundamente enquanto reunia os pensamentos.

— Droga... - murmurou, atordoada.

Sentado à mesa da cozinha, Viper sorriu ao observar Shay esvaziando prato após prato.

Nenhuma criatura com a cabeça no lugar estaria sorrin­do quando seu corpo ainda doía de excitação. E isso, tinha certeza, levaria horas para melhorar.

Ainda assim, continuou sorrindo. Não pressionaria Shay de forma alguma.

— Não fique me olhando desse jeito - ela murmurou.

— Olhando como?

— Como se estivesse observando o seu jantar.

Viper se ajeitou na cadeira, o olhar deslizando pelo rou­pão entreaberto.

— Não acharia ruim uma mordida ou duas.

Ela enrijeceu, sem dúvida pressentindo a fome que pul­sava no corpo daquele vampiro sexy. Uma fome que ele não conseguia esconder.

— Fizemos um acordo. Nada de sangue.

— Não estava pensando em sangue.

O sorriso de Viper aumentou e Shay enrubesceu. Não po­dia fingir que não havia chegado ao clímax nos braços dele.

— Está quase amanhecendo... Não devia estar em seu caixão? - perguntou, incomodada.

Viper riu de novo.

— Faz séculos que me acostumei com a noite. Eu não suporto a luz do sol, mas eu sou capaz de ficar acordado quando quero.

— Quantos anos você tem?

— Os vampiros raramente revelam suas idades. Assim como seu abrigo.

Shay deu de ombros e colocou de lado o prato vazio.

— Nunca entendi por quê. Se for imortal não importa qual seja sua idade.

— O poder de um vampiro aumenta a cada ano que pas­sa. Saber sua idade é conhecer o seu poder.

— Quanto mais velho mais poderoso?

Viper sorriu de lado. Não deveria se surpreender com a falta de conhecimento dela no que se referia a vampiros. A mãe de Shay a criara distante do mundo dos demônios.

— Em teoria isso acontece, apesar de sermos como qual­quer outra raça. Há sempre aqueles que possuem mais for­ça que outros, ou mais inteligência, não importa a idade.

Shay umedeceu os lábios, distraída, e ele estremeceu. Havia tantos lugares íntimos que ele gostaria que aquela língua explorasse...

Lutou para recuperar o controle.

— Por isso que você se tornou o chefe de seu clã? - ela indagou, curiosa.

Viper mediu as palavras. Não se vangloriaria de seus poderes para impressioná-la.

— Em parte.

— Qual é a outra parte?

Ele sorriu.

— Meu charme pessoal? Shay revirou os olhos.

— Não pode ter sido isso.

Viper ficou em silêncio por uns instantes.

— Shalotts são como vampiros... Não escolhem o líder por seu desempenho em combate?

— Não tenho a menor idéia. - A voz dela soou casual, mas a expressão de seu rosto mudara, fato que não passou despercebido por Viper.

— Certamente seus pais lhe contaram alguma coisa so­bre a sua origem.

— Fui criada como humana. Minha mãe achava que quanto menos eu fosse exposta ao mundo dos demônios me­lhor seria. Depois da morte de meu pai, não me foi permitido nem mencionar o mundo shalott.

Não era de surpreender que Shay se considerasse uma aberração, Viper pensou. A mãe dela havia sido a respon­sável por isso.

— Um ponto de vista lamentável.

Shay reagiu à crítica.

— Minha mãe queria apenas me proteger.

— Compreendo, mas lhe negar a história de seu povo foi como negar parte de você mesma. Certamente deveria sentir-se curiosa quanto a isso, não é?

— Por que deveria? Ter sangue de demônio só me causou desgostos.

— Os shalotts são uma raça orgulhosa e muito respeita­da - ele insistiu.

— Antes de partirem deste mundo com o príncipe negro, eles eram conhecidos como os mais temidos assassinos entre os demônios. Mesmo os vampiros temiam suas habilidades.

— Isso dificilmente será algo de que me dê satisfação. Viper tentou controlar a impaciência.

— Pensa que os humanos são superiores? Eles têm gosto por todo tipo de violência e guerras, sem mencionar o geno­cídio. Pelo menos os shalotts nunca matam alguém de sua raça. Essa é a lei mais sagrada deles.

Uma ponta de curiosidade brilhou nos olhos de Shay.

— Nunca?

— Nunca. - Viper sustentou o olhar dela.

— Acreditam que tirar sangue de outro shalott os condenará, e toda sua família, à fúria dos deuses. É um pecado que não pode ser perdoado. Eu desejaria que os vampiros possuíssem a mes­ma crença.

O olhar de Shay era vago.

— Conheceu muitos shalotts, então.

— Alguns. E antes que me pergunte, não tomei o sangue deles, nem os fiz meus escravos. E nenhuma shalott foi mi­nha amante.

— Não me diga que alguns deles eram seus amigos! - ela exclamou.

Ele sorriu, exibindo os caninos.

— Tenho muitos amigos entre os demônios, mas os sha­lotts eram mais como meus parceiros. Um chefe de clã tem muitos inimigos.

Ela arregalou os olhos.

— Você os contratou como assassinos?

— Na verdade, eu os contratei para que me treinassem -Viper esclareceu.

— Treiná-lo para quê?

— Os shalotts são mestres na arte do combate, e pos­suem um conhecimento profundo sobre armas... Seu pai também devia ter.

Viper percebeu o orgulho nos olhos de Shay.

— Claro que sim.

Ele escondeu o sorriso. Não era tolo.

— E você?

— Tenho alguma experiência com espadas e adagas, mas meu pai morreu antes de meu treinamento terminar - ela confessou.

— Bem, não posso contar com o talento de seu pai, mas se você estiver disposta, poderíamos treinar juntos.

Silêncio. Do tipo que lhe assegurava que Shay estava tentando se decidir se o que ele planejava era um terrível complô, ou simplesmente era maluco.

— Treinarmos juntos? - ela repetiu.

— Está brincando?

— Por que não? Não tenho um sparring decente há anos.

— Amos não costumam ficar ansiosos por ensinar aos seus escravos como matá-los - Shay observou, seca.

— Pretende me matar?

— Ainda não é uma conclusão a qual eu tenha chegado. Viper caiu na risada.

— Avise-me, então.

Antes que Shay pudesse responder, a atenção dos dois foi desviada por um ruído estranho, que quebrou o silêncio da noite.

Ambos ficaram imóveis. Podia ter sido um coiote, ou mesmo um cão uivando, mas eles sabiam que não era.

— Cães do inferno - ela reconheceu.

Viper se levantou e entrou em comunicação mental com seus empregados.

— Os guardas estão sob ataque.

— Por que cães do inferno atacariam os seus guardas? Eles não eram páreo para os vampiros.

Viper sacudiu a cabeça, sentindo que a batalha estava ocorrendo junto aos portões de sua propriedade. Naquele momento, Santiago e sua equipe lutavam, mas havia mui­tos cães atacando. Os vampiros estavam feridos e precisa­vam buscar a cura no fundo da terra.

— Eu não sei. - Estendeu a mão para Shay, por fim.

— Venha.

Ela simplesmente não podia seguir as ordens dele sem argumentar.

— Aonde estamos indo?

— Há alguns túneis no andar de baixo. Eles nos levarão à garagem.

— Certamente estaremos mais seguros aqui do que na garagem.

— Há carros na garagem. Ela arregalou os olhos.

— Não.

Viper suspirou, exasperado.

— Por que não?

— Pelo amor de Deus, Viper. Já está clareando. Não pode ir lá fora.

— Eu não posso, mas você sim.

— Quer que eu parta sozinha?

— Ficarei aqui e me certificarei de que não foi seguida.

— Não. Ambos ficaremos e lutaremos.

Não era frequente que Viper se surpreendesse, mas agora ele estava surpreso.

— Shay, não é hora de brigar. Os cães podem não ser uma grande ameaça, mas duvido que estejam sozinhos. Alguma coisa quer você. E tanto, que se arrisca a um ataque direto. Tem de fugir agora.

Sem aviso, ela se moveu diante dele, as mãos nos quadris.

— E se for isso o que eles querem? Viper franziu a testa.

— Como assim?

— E se os cães do inferno forem apenas uma tática para me fazer fugir daqui sem você me protegendo? E se esperam que nós nos separemos?

Ele engoliu em seco. Shay estava certa. Os demônios bem podiam estar tentando afastar um do outro.

— Droga. Isso explicaria o ataque ser perto do amanhecer.

— E por que mandaram os cães do inferno à frente.

— É verdade.

Viper passou as mãos nervosamente pelos cabelos. Não temia a luta. Fazia um bom tempo que não se deleitava com uma boa batalha. Mas, pela primeira vez em sua longa vida, possuía alguém além dele com que se preocupar. E essa era uma sensação enervante. Uma com a qual ele não sabia como lidar.

Olhando em volta da sala, Shay levou a mão ao peito.

— Onde está Levet?

— Caçando. - Viper deu de ombros.

— Mas, se viu os cães do inferno, agora deve estar a meio caminho para Chicago.

— Ou fazendo alguma coisa completamente estúpida - ela resmungou, caminhando, decidida, em direção à porta.

Levou um instante para Viper compreender que ela pre­tendia procurar o gárgula. Com incrível velocidade, ele lhe bloqueou a passagem. Sua paciência terminara.

— Não vai sair.

Um lampejo perigoso tomou vida nos olhos dourados de Shay.

— Viper...

— Não. Os demônios não estão interessados em Levet. Ele está em maior segurança que você neste momento.

— Não podemos ter certeza disso - ela teimou.

— Levet é meu amigo, e não vou deixá-lo lá fora para morrer.

Viper saboreou por um instante a imagem da mulher que o enfrentava. Oh, ela era meio shalott e lutaria com fúria. Mas ele confiava que chegaria a hora em que a dominaria. Infelizmente, aquela não era uma boa hora para tentar isso.

— Vá para o andar de baixo. Eu vou atrás do gárgula.

— Não há necessidade de dar uma de herói, vampiro. Estou aqui.

Viper se voltou ao ver a porta se abrir e o gárgula entrar.

— Como passou pelos cães do inferno?!

— Eles se dispersaram por hora, mas sem dúvida voltarão. Houve uma movimentação atrás da criatura, e Viper viu os vampiros que formavam a sua guarda. Estavam feridos.

Sentiu a ira brotar dentro dele. Ele era chefe de clã. Quem quer que tivesse enviado os cães do inferno, logo es­taria lamentando tal decisão.

— Santiago, reúna os guardas e os leve ao abrigo.

— Não o deixaremos, senhor!

Viper sacudiu a cabeça. Seus guardas eram ainda muito jovens, e não resistiriam à claridade. Logo que o sol surgis­se, seriam incapazes de se protegerem.

— Estão feridos e logo amanhecerá. Não há nada que possam fazer.                                                            A frustração ficou nítida no rosto das sentinelas.

— Os seus empregados humanos estão para chegar - Santiago disse.

— Mas não são páreo para o demônio que nos caça. Precisamos fazer com que eles não entrem aqui. Agora, meu amigo, vá e cuide dos seus companheiros.

Santiago não teve escolha.

— Como queira, senhor.

Viper esperou que eles sumissem na escuridão, rumo ao esconderijo que Santiago tinha construído. Todos estariam seguros lá embaixo. Ao menos por enquanto.

Voltou-se para encontrar o olhar preocupado de Shay.

— Os cães do inferno voltaram. Precisamos ir.

Shay não protestou quando Viper agarrou sua mão e a levou da cozinha para o porão.

Um pequeno milagre, mas naquele momento ela estava mais preocupada com a criatura horripilante que se aproxi­mava da casa do que insistir em sua independência.

Com Levet agarrado em seu roupão, eles se moveram em silêncio.

Ao se aproximar de uma parede, Viper apertou um bo­tão, e esta se abriu, dando passagem para uma escada que levava para mais abaixo.

— Por aqui - murmurou, esperando que Shay e Levet chegassem mais perto.

O cheiro de terra os rodeava, e ela desceu os degraus cautelosamente, entrando no abrigo de Viper: seu esconde­rijo mais seguro. Foi forçada a parar, pois tudo estava na mais profunda escuridão. Não tinha a capacidade de enxer­gar no escuro como os vampiros.

Percebendo sua dificuldade, Viper acendeu um cande­labro. Os olhos dela foram se ajustando, e sua respiração pareceu parar na garganta.

— Diabos! - ela exclamou, deslizando os olhos pela ca­verna que os rodeava. Nunca havia visto tantas armas em um só lugar. Espadas compridas, curtas, adagas, armas de ninja, arcos e flechas, pistolas, armaduras medievais cuida­dosamente guardadas em caixas de vidro. Uma das armas, reconheceu, tinha o poder da magia.

— De onde vem tudo isso?

Com uma chave, Viper destrancou uma das estantes e de lá retirou uma elegante espada. Estendeu uma adaga ao silencioso Levet, e uma para Shay, que a segurou com a confiança de uma mulher acostumada a manejar armas.

— Esta é parte de minha coleção - respondeu por fim, chegando até outra estante e escolhendo uma pequena pis­tola, que armou de pronto.

Shay lançou um olhar admirado para ele.

— Parte? Está planejando atacar o Canadá?

— Isso não está na agenda. Ao menos não da de hoje. O olhar dele revelava uma ponta de bom humor.

Mais uma vez, Shay se deixou deslumbrar pela beleza de suas feições. Era quase indecente que um vampiro tivesse o rosto de um anjo.

Os olhos escuros se tornaram mais intensos quando ele sentiu um tremor correndo pelo corpo dela. Seus olhares se encontraram e, por instantes, ficaram em silêncio, saborean­do a presença um do outro. Foram interrompidos por um grunhido de impaciência.

— Odeio interromper, mas aqueles cães do inferno não vão esperar que vocês dois terminem com esse interlúdio... Assim, sugiro que nos preparemos para a batalha.

O olhar que Viper lançou para o pequeno gárgula devia ter feito Levet se transformar em pedra, porém este tratou de ficar bem atrás de Shay.

— Eles não deveriam ser capazes de passar pelas mi­nhas barreiras - disse.

— Há alguma coisa com eles.

Levet balançou as asas.

— Alguma coisa ruim.

Shay sentia isso também. Algo escuro e assustador in­vadia o ar, e se tornara difícil respirar. Não estava ain­da à porta, mas bem perto, a ponto de provocar arrepios. Segurando a espada, ela endireitou o corpo e o roupão entreabriu, revelando suas curvas.

O rosnar dos cães do inferno ecoou no ar, e os três se voltaram para a porta. Ouviram o barulho das criaturas devorando alguém de sua própria espécie. Provavelmente um que estivesse ferido.

O som da respiração de Levet chegou até Shay, mas Viper continuou imóvel, totalmente silencioso. Shay não ti­nha certeza se vê-lo assim era animador ou aterrorizante.

E, na verdade, isso não importava, já que a porta come­çou a ruir diante da pressão dos invasores.

Houve um momento de preparação, em que as bestas tentaram se agrupar, e ficaram encalhadas diante da es­treita entrada. Ouviu-se, então, um horripilante uivo, e um deles ultrapassou a abertura, entrando para matar.

Shay observou o primeiro demônio vindo em sua dire­ção. Era uma criatura aterrorizante, larga como um pônei, e com olhos vermelhos e caninos enormes. Felizmente, eles eram estúpidos, e não lutavam seguindo qualquer estraté­gia ou plano de batalha.

Segurando a espada com as duas mãos, ela esperou que o primeiro se empalasse nesta. Os dentes e o sangue es­correram por seus braços enquanto ela se esforçava para retirar a lâmina do corpo do monstro.

Em segundos, os invasores seguintes fizeram em peda­ços o corpo do morto.

Shay procurou não enjoar diante da cena grotesca. Lançou-se à frente e matou o inimigo mais próximo. O san­gue e o cheiro dos cães do inferno agonizantes encheram o ar, enquanto ela dançava com determinação mortal no meio do grupo de bestas. Havia anos não enfrentava uma bata­lha daquele tipo, mas sempre praticava suas habilidades, cumprindo a promessa que fizera ao pai, e viu-se usando a espada com maestria.

A distância, percebia os movimentos de Levet, que lu­tava ao mesmo tempo em que praguejava, e a eficiência de Viper deixando para trás uma trilha de corpos. Sua concen­tração continuava nos demônios que tinha à sua frente, e a fazia enfrentá-los sem medo nem hesitação.

Por fim, um enorme silêncio invadiu a área.

Com um suspiro, Shay se recostou a uma parede. Tinha levado uma mordida, e havia um ferimento em seu braço, mas havia sobrevivido. Nada mal.

Olhou em volta para se assegurar que Levet e Viper es­tavam bem. O gárgula estava de pé, e o vampiro limpava sua espada calmamente.

Pelo chão, os demônios mortos e agonizantes começavam a se decompor. Mesmo o sangue nos braços dela estava se desfazendo.

Viper se aproximou, apreensivo.

— Está ferida?

Shay engoliu uma risada. Ela parecia ter passado por um tufão, enquanto ele estava ali, igualzinho a antes, sem nenhum fio de cabelo fora do lugar.

— Nada que não dê para curar - resmungou, enquanto o via se abaixar para examinar o ferimento na perna dela. Cerrou os dentes quando sentiu os dedos frios de Viper to­cando em sua pele.

— Estou bem, não se preocupe.

O olhar dele não suavizou.

— Cura como uma humana ou uma shalott?

— Não sei como acontece com os shalotts, mas eu me curo mais depressa que os humanos.

— É imune contra infecções?

— Sou.

Viper voltou sua atenção ao ferimento, que já parara de sangrar e começava a se fechar. Aliviado, ele se levantou. Mas ficou imóvel, subitamente atento.

— Sente a aproximação de um demônio? - indagou em voz baixa.

Shay sentiu um arrepio percorrer todo o corpo.

— Sinto.

— É o mesmo que tentou pegá-la na noite do leilão? Ela se esforçou para se concentrar. Era uma tarefa nada fácil com Viper ali, ao lado dela. O poder que emanava de seu corpo a distraía.

Respirando fundo, fechou os olhos e procurou captar o espírito maligno que se aproximava. Levara anos para aprender a colocar de lado a lógica humana e confiar em seus sentidos, herdados do pai. Podia não entender como conseguia captar a essência de outro ser, mas deixara, ha­via muito tempo, de questionar isso.

Levou um longo momento, mas por fim sacudiu a cabeça.

— Não é o mesmo.

— Não sei se me sinto aliviado ou desapontado. - Viper estendeu-lhe a mão.

— Venha, precisamos sair daqui.

Shay arregalou os olhos.

— Não seria mais seguro ficar?

— Estaríamos cercados.

— Pelo menos temos armas.

Viper balançou a cabeça em uma negativa.

— Precisamos de um lugar onde possamos fugir se as coisas piorarem.

— Se piorarem? - ela perguntou, chocada.

Um leve sorriso surgiu nos lábios do vampiro, antes que ele inclinasse a cabeça e lhe desse um beijo rápido, porém intenso.

— A diversão apenas começou, meu bem - ele murmurou. Pegando um par de adagas, que ele enfiou nas botas, e um pequeno amuleto pendurado em um cordão de couro, Viper conduziu Shay e o gárgula para fora da sala de armas.

Os cães do inferno estavam mortos, mas o demônio que se aproximava era uma ameaça que não podia ser ignorada. Viper não queria se ver encurralado, sem chance de escapar, quando a besta finalmente atacasse. Não quando ele não se sentia inteiramente confiante que seria capaz de acabar com a criatura.

Escolhendo um túnel estreito que levava para fora da casa, ele se moveu com silenciosa urgência, o que deixou tanto Shay como o gárgula ofegantes. Ele ignorou suas queixas, chegando por fim a uma escadaria.

— Por aqui - comandou, parando e deixando que Shay e o gárgula passassem à frente.

Ambos o olharam, cheios de suspeitas. Viper suspirou. Ele deveria saber que não o obedeceriam sem qualquer discussão.

— Onde isso leva? - Shay perguntou.

— Ao aposento debaixo da garagem. Tentaremos enfren­tar o demônio ali, mas, se falharmos, isso nos dará a opor­tunidade de escapar.

A expressão de Shay endureceu.

— Está pensando que eu vou deixá-lo aqui? Quero dizer, deixar Levet para lutar contra o demônio que obviamente está contra mim?

— Não temos outra escolha. - Viper segurou o braço dela.

— Nem o gárgula nem eu podemos deixar estes tú­neis. Não até que escureça. Somente podemos lhe dar tem­po para escapar.

Levet soltou um suspiro.

— Ele tem razão, Shay. Você tem de ir.

— Esqueçam isso. Eu... - As palavras de Shay foram interrompidas pelo som de um grunhido bem atrás deles.

— Droga!

— O tempo de argumentar acabou.

Segurando o braço dela com força, Viper a fez subir os degraus que davam no pequeno aposento. Pegou do bolso o pequeno amuleto, e o colocou em volta do pescoço de Shay.

Ela o olhou, confusa.

— O que é isso?

— O amuleto contém um feitiço que irá mascarar sua presença.

— Mágica?

— Foi o que me asseguraram. - Ele a agarrou pelos cabelos e puxou alguns fios.

— Ai! O que é isso?

— Perdoe-me, mas o seu cheiro tem de ficar, para que o demônio pense que continua aqui. Agora vá.

Esperando mais protestos, ele se surpreendeu quando ela simplesmente concordou com um gesto de cabeça.

— Espere até que Levet e eu deixemos este lugar, e en­tão suba as escadas e abra a porta da garagem. As chaves do carro estão penduradas na parede. Pegue-as e vá o mais longe que puder.

— Está bem.

Viper não confiava muito naquela repentina submissão de Shay. Ela era do tipo que não abandonava o navio. Segurou o rosto dela delicadamente.

— Quero que prometa que irá embora, Shay.

— Irei embora.

— Tenho sua palavra?

— Tem.

Ele soltou um grunhido. Não duvidava que ela cumpris­se a promessa, mas não conseguia afastar o pensamento de que estivesse planejando algo extremamente perigoso.

Infelizmente, não havia tempo para discussão no mo­mento, pois um som de madeira quebrada ecoou bem audí­vel atrás deles. A criatura tinha perdido a paciência e esta­va forçando sua passagem pelos túneis.

Droga.

Sem hesitação, ele a beijou.

— Agora vá - murmurou, empurrando-a delicadamente para a porta.

Mais uma vez, ela obedeceu sem protestar. Viper se apressou a deixar o aposento e fechou a porta atrás de si. Podia sentir a pesada pressão do amanhecer já enchendo o céu. Não tinha o menor desejo de saudar o nascer do dia.

De volta ao túnel, ele se colocou ao lado do nervoso Levet.

— Ela foi embora? - o gárgula perguntou.

— Sim. - Viper puxou a espada e se preparou para a chegada do demônio, que vinha arrebentando tudo pelo ca­minho.

— Pareceu-me disposta a ir.

Sacrebleu. Isso só pode significar que ela está plane­jando alguma coisa estúpida!

— Sem dúvida. - Viper concordou com uma careta.

— Mas, por hora, está fora de perigo. Só espero que vençamos a criatura antes que ela decida voltar.

— É mais provável que terminemos como seu lanche da manhã - Levet resmungou, segurando a adaga.

Viper sorriu.

— Não sem uma boa luta, amigo. O demônio vai desco­brir que carne de vampiro não é fácil de conseguir.

O gárgula abanou o rabo, mas não fez comentário.

Viper rangeu os dentes quando viu surgir a cabeça da criatura. Muitos confundiriam o demônio com um dragão, mas ele sabia a diferença. Era um Lu, a criatura mais te­mida do mundo. E uma que era quase impossível derrotar sem mágica.

O problema era que ele, como vampiro, não usava mágica.

— Droga!

— E agora? - Levet se desesperou.

— Sabe lançar feitiços?

— Se eu soubesse algum feitiço, acha que ainda estaria aqui? Não sou tão ligado a você para ficar feliz em morrer a seu lado!

— Pensei que todos os gárgulas usassem um pouco de mágica - Viper retrucou, preparando-se para o ataque.

— Oh, está bem, pode caçoar de mim.

— Você não vai morrer, Levet. Ambos somos imortais.

— Que bobagem. Sabemos bem que, mesmo os imortais podem morrer. E, normalmente, de formas horríveis.

Viper não podia argumentar contra isso.

— Se preferir, posso simplesmente lançá-lo para o demô­nio, e esperar que ele se contente com a sua morte - obser­vou, maldoso.

Nenhum dos palavrões em francês que saíram da boca de Levet foi ouvido, já que o rugir da criatura abafava to­dos os outros sons. Apesar do corpo do demônio ser largo demais para deslizar pelo túnel sem esforço, o pescoço em serpentina permitia que a negra cabeça se aproximasse pe­rigosamente.

— Sinto cheiro de shalott. - Uma longa língua vibrou no ar.

— Onde a escondeu?

A expressão de Viper permaneceu impassível enquanto ele escondia o alívio pelo fato de a criatura não ter percebi­do que Shay escapara.

— Ela está aqui, bem perto, mas temo que não esteja ansiosa por ver você - ele gritou.

— Parece que o charme dos Lu está fora de moda.

A fera rugiu, enfurecida. Não sabia o que era bom humor.

Viper se aproximou mais da parede. Queria estar em uma posição onde pudesse observar a boca do demônio se a situação piorasse.

— Entregue-me a shalott. Não há necessidade de você morrer, vampiro.

Viper sorriu com desdém.

— Não tenho intenção de morrer. Não pelas suas mãos. Ou melhor... por seus dentes.

Um sibilo furioso invadiu todo o túnel.

— Palavras corajosas. A menos que tenha mais do que esse gárgula para lhe dar assistência, você não é páreo para mim.

Levet agitou as asas, não aceitando bem o insulto.

— Qual seu interesse em minha escrava? - Viper forçou a criatura a desviar a atenção do gárgula. Shay nunca o perdoaria se permitisse que aquele peste acabasse na bar­riga do demônio.

A enorme cabeça se voltou novamente para Viper.

— Isto é assunto entre meu senhor e a shalott.

— Seu senhor? Desde quando um terrível Lu chama al­guém de senhor?

— Ficaria surpreso, vampiro... Muito surpreso.

A caçoada do demônio gelou o sangue de Viper. Ele não gostava da idéia de que o Lu estivesse escondendo algo dele. E algo que dava muito prazer aquele monstro.

— O seu mestre é assim tão covarde que se esconde nas sombras?

— Se deseja respostas, deve primeiro me derrotar. Viper levantou a espada.

— Isso pode ser feito.

Os olhos da fera se estreitaram perigosamente.

— Idiota. Eu pegarei a shalott de qualquer jeito. Nenhum pedaço de aço vai me deter.

Para provar que isso era verdade, a cabeça se lançou à frente, os dentes se fechando no braço de Viper antes que ele pudesse afastá-lo.

Mordendo os lábios de dor, Viper enfiou a espada na garganta do demônio. Ouviu-se um gemido de dor vindo do  monstro, que recuou a cabeça o suficiente para que Viper se colocasse em uma nova posição.

— Talvez o aço não possa detê-lo, mas há algumas forças que nem mesmo um Lu pode vencer.

Apontando a espada em direção ao chão, Viper ignorou o sangue que escorria de seu braço e concentrou toda sua força na rica terra que tinha debaixo dos pés. Não sabia mágica nem feitiço algum. Mas sabia como tirar poder dos elementos naturais.

A força de seu pensamento fez a terra começar a se mo­vimentar. O túnel tremeu, e parte de suas paredes começou a ruir.

— Pare com isso. Não adianta lançar mão desses tru­ques de vampiro - o demônio gritou, a língua serpenteando para fora de sua boca horrível.

— Diferentemente de você, sou meu próprio senhor, e não recebo ordens de nenhum demônio - Viper retrucou.

— Imbecil!

A criatura lançou a cabeça à frente. Tentou pegar nova­mente parte do corpo de Viper, porém, desta vez, ele estava prevenido.

A terra se movia, mas não suficientemente rápido, Viper pensou. Estava usando o poder que os vampiros tinham de enterrar suas vítimas depois que já haviam se alimentado. Os corpos nunca eram deixados expostos.

Infelizmente, nos tempos atuais, a maioria dos vampiros preferia sangue sintético a caçarem suas presas e, assim, suas habilidades não tinham tanta força como nos tempos antigos. Sem mencionar que ele nunca tentara enterrar uma criatura tão grande quanto um Lu.

A fera continuava lançando a cabeça à frente, e Viper escapou seguidamente, enquanto a terra se movimentava sob seus pés.

— Vai morrer - o demônio rugiu, tentando caçá-lo.

— Nenhum de nós precisa morrer - ele falou, manten­do o demônio concentrado nele, enquanto via o silencioso gárgula recostado à parede. Se conseguisse encurralar a criatura, poderiam sobreviver.

— Diga-me o que quer com a shalott, e poderemos entrar em um acordo.

— Eu já lhe disse que vai precisar me derrotar se quiser respostas, e não corro o risco de ser vencido. - A cabeça do dragão investiu mais uma vez, mesmo estando com a espa­da enterrada no olho. Quando descobriu que o chão o engo­lia, ele urrou, frustrado.

— Vai morrer por causa disso!

— Diga-me o que quer com a shalott - Viper ordenou, levantando a espada e se preparando para destruir o outro olho da fera.

Foi quando o Lu projetou a cabeça para o alto e se chocou com o teto, que começou a vir abaixo. O demônio abaixou a cabeça e tornou a batê-la contra a pedra.

Ao ver surgir um sinal do amanhecer, Levet gritou, alar­mado. O monstro queria que o teto terminasse de ruir para que a claridade fizesse o serviço por ele.

— Levet! - Viper alertou o gárgula. Este não seria aniquilado pela luz do sol, mas voltaria à sua forma de estátua. Poderia ficar indefeso se o Lu decidisse levá-lo embora, contudo.

Estranhamente, porém, o pequeno demônio não lhe prestou atenção. Estava murmurando alguma coisa.

Viper abriu a boca para alertá-lo de novo, mas Levet le­vantou os braços e gritou:

— Que venha a noite!

As palavras mal foram ouvidas, já que o som do teto ruindo sobre o monstro era mais alto.

Mas não houve erro. Uma nuvem escura pareceu envol­ver o lugar.

Viper ficou boquiaberto, as mãos segurando firme a es­pada, ainda sem saber se a nuvem negra era uma bênção ou uma maldição.

Não distante, ouviu Levet soltar um grito de triunfo.

— Funcionou. - Suas asas se agitaram, excitadas.

— Pelas graças dos demônios, funcionou!


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Notas finais do capítulo

Comentem e Recomendem flores...bjs



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