A Maldição De Shay escrita por Aline Yagami


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem. Comentem e Recomendem.



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Capítulo I

A casa de leilões nos arredores de Chicago não era ne­nhum pardieiro. Atrás das grades de ferro, a elegante construção de tijolos se apresentava em toda a sua arrogân­cia. Os aposentos eram enormes, com tetos abobadados, lin­dos murais e elegantes candelabros. Seguindo a orientação de um profissional, eles tinham sido decorados com carpete e almofadas da mais fina qualidade, além de mobília enta­lhada à mão.

Era uma atmosfera típica daquelas que somente o di­nheiro podia comprar. Montanhas de dinheiro. Devia con­ter pinturas famosas, jóias caríssimas e objetos de museus.

Em vez disso, era mais como um mercado. Um lugar onde demônios eram vendidos como carne em açougue.

Não havia nada de agradável quanto ao mercado de es­cravos. Tratava-se de um negócio sórdido, que atraía cada ser vivo decadente do país.

Eles vinham por todo tipo de razão. Havia aqueles que compravam demônios para lhes servirem de mercenários ou seguranças. Outros eram viciados em sexo exótico. Havia, ainda, os que acreditavam que o sangue dos demônios podia lhes trazer vida eterna. Também existiam os compradores que queriam soltar esses demônios em suas terras e caçá-los como animais selvagens.

Os leiloeiros eram homens e mulheres sem consciência ou moral. Seu único interesse era ganhar o máximo de di­nheiro para saciar seus prazeres bizarros.

E, no topo dessa sujeira toda, estava o dono da casa, Evor. Ele era um troll, uma daquelas criaturas gigantescas e nômades, que fazia fortuna com a desgraça dos outros, enquanto exibia um sorriso nos lábios.

Algum dia, Shay pretendia matar Evor. Quem sabe na­quela mesma noite.

Vestida com ridículas calças de escrava de harém, e um top burlesco que mais revelava do que escondia alguma coi­sa, ela esperava o leilão começar, andando de um lado para o outro, à beira do descontrole. Seus longos cabelos negros tinham sido presos para trás em uma trança que chegava quase à cintura. Assim estavam mais expostos os seus olhos de um tom dourado, a delicadeza de suas feições e sua pele bronzeada, que a distinguia como algo não humano.

Menos de dois meses antes, havia sido feito prisioneira por bruxas que pretendiam acabar com todos os demônios. E o pior viera a seguir, quando fora entregue a Evor. Melhor se tivesse morrido, claro.

Sem pensar, Shay chutou com incrível força uma mesinha, que saiu voando e terminou se espatifando contra as barras de ferro da cela.

Ouviu um suspiro pesado, vindo de uma pequena gárgula escondido atrás de uma cadeira, em um dos cantos da cela.

Levet não era uma gárgula muito expressiva. Possuía as feições grotescas tradicionais: pele grossa e acinzentada, olhos de réptil, chifres e unhas bem afiadas. Possuía até um rabo longo, que ele polia e exibia com grande orgulho. Infelizmente, apesar de sua aparência assustadora, tinha pouco mais de um metro de altura. E pior: possuía um par de asas delicadas, mais condizente com uma fada do que com uma letal criatura das trevas. Não bastasse isso, seus poderes eram imprevisíveis, na melhor das circunstâncias, e sua coragem sempre faltava na hora "H".

Não era de surpreender, pois, que houvesse sido excluído do seu reino, e forçado a se virar por conta própria. Haviam-no declarado uma vergonha para sua comunidade, e ninguém tinha levantado um dedo para ajudá-lo quando Evor o havia capturado e feito dele seu escravo.

Shay colocara essa criatura patética sob sua proteção. Não somente porque tinha uma lamentável tendência a de­fender os mais fracos, mas porque sabia que Evor se irrita­va ao ver seu brinquedinho favorito ligado a mais alguém.

O troll podia mantê-la submissa a ele, mas se a provo­casse demais correria o risco de Shay perder a paciência e matá-lo, mesmo que isso fosse fatal para ela.

Queridinha, por acaso a mesinha fez algo contra você que eu não vi? - Levet perguntou, forçando um sotaque afrancesado. Nada, aliás, que pudesse melhorar o seu status entre o seu povo.

Shay acabou rindo.

Eu imaginei que a mesa era Evor.

Estranho, não vejo semelhança alguma entre os dois.

É que tenho uma excelente imaginação. Levet ficou pensativo.

Neste caso, eu poderia esperar que me imaginasse como um Brad Pitt?

Sou boa nisso, mas não tanto assim, gárgula.

Pena.

O riso de Shay acabou.

Pena que aquilo ali era uma mesa e não Evor, isso sim.

Seria ótimo, mas não passa de um sonho. - Levet semicerrou os olhos.

A não ser que esteja pretendendo fazer algo ainda mais estúpido.

Quem, eu?

Mon Dieu - o demônio resmungou.

Você pretende lutar contra Evor!

Não posso lutar contra ele. Não enquanto estiver de­baixo da maldição.

Como se isso alguma vez a tivesse impedido de fazer alguma doidice. - O rabo de Levet batia de um lado para o outro, sinal claro de aborrecimento.

Não pode matar Evor, mas isso nunca a impediu de tentar chutar o traseiro dele.

Isso passa com o tempo.

E a deixa gritando em agonia por horas. - Subitamente ele deu de ombros.

Cherie, não aguento vê-la desse jeito. Não de novo. É insano lutar contra o destino.

Shay torceu os lábios. Como parte da praga, ela era pu­nida por qualquer tentativa de ferir o seu senhor. A dor que tomava conta de seu corpo era aterradora e a deixava inconsciente por horas.

Puxou a trança com força, sinal de que estava frustrada além da conta.

Acha que eu deveria desistir? Aceitar a derrota?

Que outra chance tem? Que escolha tem qualquer um de nós?

Shay rangeu os dentes enquanto olhava de volta para as grades de ferro que a mantinham cativa.

Droga. Odeio isso. Odeio Evor. Odeio esta cela. Odeio aqueles demônios patéticos, que estão lá me esperando para fazerem seus lances. Talvez tivesse sido melhor morrer nas mãos das bruxas.

Não vou argumentar contra isso, minha doce Shay - Levet concordou com um suspiro.

Ser escravo é de fato uma droga.

Shay fechou os olhos. Estava cansada e frustrada de­mais, mas não era covarde. Só o fato de ter conseguido so­breviver pelo século anterior já provava isso.

Não! ela resmungou.

Não! Levet mexeu as asas.

E por que não? Estamos aqui presos como ratos em um labirinto, até que sejamos vendidos a quem der o maior lance. O que poderia ser pior do que isto?

Shay sorriu sem animação.

Dar a chance ao destino de vencer?

O quê?

Seja destino ou sorte, não vou simplesmente permitir que mexam com minha vida. Um dia desses vai me apare­cer uma oportunidade de cuspir na cara do destino. E isso que me mantém lutando.

Seguiu-se um longo silêncio, antes que a gárgula se apro­ximasse de Shay e esfregasse a cabeça na perna dela. Era um gesto inconsciente. Uma busca por reafirmação, que ele preferiria morrer a admitir.

Tenho certeza de que nunca antes ouvi um discurso tão pouco elegante, mas acredito em você. Se alguém pode chegar até Evor, esta pessoa é você.

Distraída, Shay devolveu a carícia.

Voltarei para buscá-lo, Levet, prometo.

Hora, hora, que cena tocante... - Evor estava parado diante das grades da cela. Sorriu, revelando seus dentes pontudos.

A Bela e a Fera.

Com um movimento rápido, Shay colocou-se à frente de Levet e virou-se para seu captor.

Sentiu repugnância quando Evor abriu a porta da cela e entrou. O troll passaria facilmente por um humano. Um hu­mano incrivelmente feio. Era baixo, barrigudo, com o rosto empapado. O cabelo era pouco mais que um tufo, o qual ele cuidadosamente mantinha grudado sobre a cabeça. E seus estreitos olhos pretos tinham uma tendência a ficar verme­lhos quando ele se aborrecia. Olhos que ele escondia atrás de óculos de aros pretos.

O corpo gorducho estava coberto por um traje caríssi­mo, contudo.

Somente os dentes marcavam-no como um troll, o caça­dor impiedoso da floresta.

Isso e a falta de moral.

Vá para o diabo, Evor - Shay resmungou. O sorriso dele apenas aumentou.

Só se você vier junto, querida.

Shay observou a criatura repugnante. Não era de hoje que Evor vinha tentando entrar debaixo dos lençóis dela. O que o impedia de fazer isso era a certeza de que ela mataria os dois para impedir que tal coisa acontecesse.

Prefiro caminhar sobre o fogo do inferno antes de dei­xar que você me toque.

À fúria substituiu por instantes o sorriso de Evor.

Algum dia, minha bela, ficará feliz por estar debaixo de mim. Todos nós temos um ponto fraco. Eventualmente você alcançará o seu.

Não nesta vida. Evor fez um gesto obsceno com a língua.

Tão orgulhosa. Tão poderosa. Vou desfrutar depositando a minha semente dentro de você. Mas não ainda. Posso fa­zer um bom dinheiro à sua custa. E dinheiro sempre vem em primeiro lugar. - Exibiu um par de algemas de ferro.

Vai colocá-las ou preciso chamar os rapazes?

Shay cruzou os braços. Podia ser metade shalott, mas pos­suía toda a força e agilidade de seus ancestrais. Eles não eram os assassinos favoritos do mundo dos demônios sem razão.

Depois desses anos todos, você ainda acredita que aqueles idiotas possam me dominar?

Oh, não tenho intenção de que a machuquem. Odeio danificar a mercadoria antes do leilão. - Deliberadamente o olhar dele se dirigiu para onde Levet estava.

Quero apenas que eles a encorajem a se comportar direito.

Shay! - A gárgula gemeu baixinho.

Droga. Ela não podia deixar Levet à mercê dos brutamontes que Evor usava para protegê-lo. Eles adorariam torturar a pobre gárgula.

Está bem- Descruzou os braços.

Uma escolha sábia. - Mantendo o olhar atento a qualquer movimento de Shay, Evor a algemou.

Sabia que você entenderia a situação uma vez que esta lhe fosse bem explicada.

Shay sibilou quando o ferro entrou em contato com sua pele. Podia sentir todo o seu poder sendo drenado. Era cer­tamente o seu ponto fraco.

Tudo o que sei é que um dia vou matá-lo, Evor.

Comporte-se, vadia, ou seu pequeno amigo vai sofrer as conseqncias.

Shay procurou engolir a raiva. Mais uma vez subiria em um palco, e seria vendida pelo maior lance. Estaria à mercê de um estranho, que poderia fazer com ela o que quisesse.

E não havia nada que ela pudesse fazer para impedir que isso acontecesse.

Vamos logo com isso - resmungou, transtornada. Evor abriu a boca, como se fosse argumentar, mas foi então que percebeu a expressão de Shay e resolveu não abusar da sorte. Obviamente podia sentir que ela estava chegando aos seus limites.

Em silêncio eles deixaram a cela e subiram as escadas estreitas que levavam aos fundos do palco. Evor parou so­mente o tempo suficiente para prender as algemas em um ferro chumbado no chão. Passou pelas cortinas ainda fecha­das, e se apresentou ao público.

Sozinha, no escuro, Shay respirou profundamente e ten­tou ignorar os gritos da multidão lá fora.

Mesmo sem poder ver os compradores em potencial, po­dia sentir a presença de demônios e humanos. Podia cheirar o fedor de seu suor. Sentir a impaciência deles. Captar o desejo animal que havia no ar.

Abruptamente, sentiu-se gelar. Havia alguma coisa a mais. Alguma coisa sutil, que ela não estava identificando muito bem. Algo decadente que lhe mandava arrepios de horror pela espinha.

Era vago. Como se o ser não estivesse presente em sua forma inteira e mais como uma presença intangível.

Sentiu uma ponta de medo.

Engolindo o grito que parecia querer escapar de sua gar­ganta, fechou os olhos e se forçou a inspirar profundamen­te. Ouviu Evor gritar, chamando a atenção de todos.

E agora, senhoras e senhores, demônios e fadas, mor­tos e vivos... Hora da atração principal. Um item tão raro, tão extraordinário, que somente aqueles que possuem um bilhete dourado é que podem ficar - ele anunciou dramati­camente.

O resto de vocês pode se retirar para as salas de recepção, onde lhes serão oferecidas bebidas ao seu gosto.

Evor estava se superando naquele dia, ela pensou enojada.

Venham para mais perto, amigos - comandou, en­quanto muitos dos presentes se retiravam da sala. Para possuir um bilhete dourado, a pessoa ou demônio tinha de estar carregando no bolso pelo menos cinquenta mil dólares em dinheiro vivo. O mercado de escravos raramente aceita­va cheques ou cartões de crédito.

Não vão querer perder a primeira visão de meu precioso tesouro. Não tema. Eu lhes asseguro que ela está devidamente algemada. Não oferece qualquer perigo. Nenhum perigo além de seu charme, na­turalmente. Ela não vai lhes arrancar os corações do peito, mas não posso prometer que não o roubem com sua beleza.

Cale a boca e abra a cortina - alguém grunhiu.

Está impaciente? - Havia raiva na voz de Evor. Não gostava de ser interrompido.

Não, tenho a noite inteira. Vamos logo com isso.

Ah, um apressadinho. Que pena. Esperemos que não seja igualmente assim, apressado, em outras áreas. - Evor riu, depois esperou até as risadas pararem.

Mas o que eu estava falando? Ah, sim. Meu prêmio. Minha mais querida escrava. Demônios e ghouls permitam-me apresentar lady Shay: a última shalott a andar por este mundo!

Com um movimento dramático a cortina se abriu, dei­xando Shay exposta diante de cerca de duas dúzias de ho­mens e demônios.

Deliberadamente, ela abaixou o olhar quando ouviu as exclamações pela sala. Já era suficientemente humilhante sentir a fome daqueles compradores. Não precisava vê-la no rosto deles.

E, pelo que sabia, ela era realmente a última shalott que restava no mundo.

Isso é um truque? - uma voz perguntou, não acredi­tando que o que via era real.

Nenhum truque nem ilusão.

Como se pudesse dar algum crédito a você, troll. Quero uma prova.

Prova? Muito bem. - Evor procurou com os olhos em meio aos presentes.

Você aí, venha cá.

Shay ficou tensa ao ver um vampiro se aproximar. O sangue dela era mais precioso que ouro para os mortos vi­vos. Um afrodisíaco pelo qual eles matariam.

Atenta ao vampiro, ela mal notou quando Evor pegou seu braço e usou a faca para tirar sangue. O vampiro se inclinou e o lambeu. No mesmo instante, seu corpo inteiro pareceu se transformar.

Há sangue humano, mas ela é uma shalott genuína - ele afirmou.

Evor colocou seu corpo balofo entre Shay e o vampiro. Relutante, a criatura deixou o palco, sem dúvida sabendo o que poderia lhe acontecer se não resistisse ao impulso de enterrar seus dentes em Shay e drenar seu sangue todo.

Evor esperou que todos estivessem novamente atentos.

Satisfeitos? Ótimo. Começaremos os lances com cin­quenta mil dólares. Lembrem-se, cavalheiros, dinheiro vivo.

Cinquenta e cinco mil!

Sessenta mil!

Sessenta e um mil!

Shay abaixou a cabeça. Logo seria forçada a confrontar seu novo senhor. Não queria nem mesmo olhar enquanto eles agiam como um bando de cães querendo arrancar um pedaço seu.

Cem mil dólares! - Uma voz gritou ao fundo da sala. Um sorriso surgiu nos lábios finos de Evor.

Um lance generoso, meu bom senhor. Mais alguém? Não? Dou-lhe uma... Dou-lhe duas...

Quinhentos mil.

Um silêncio impressionante encheu o aposento. Sem perce­ber o que fazia, Shay levantou a cabeça e procurou quem fize­ra a oferta. Havia algo naquela voz. Alguma coisa familiar.

Dê um passo à frente. - Os olhos de Evor brilhavam.

E dê-me o seu nome.

Os presentes foram abrindo caminho para a passagem de um ser que foi surgindo das sombras.

Um burburinho se ouviu quando viram o belo rosto e os cabelos longos que lhe caíam pelas costas. Bastou-lhes ape­nas um olhar para perceberem que era um vampiro.

Nenhum humano poderia se parecer com um anjo caído do Céu. Ou que se movesse com aquela graça. Ou que levasse os demônios a darem um passo para trás, tomados pelo medo.

O ar faltou a Shay. Não por causa da beleza impressio­nante diante de si, pela presença poderosa ou mesmo pela graça do andar...

O fato é que ela conhecia o vampiro. Ele tinha lutado ao lado dela na batalha contra as bruxas, semanas antes. E, mais importante, estivera a seu lado quando ela lhe salvara a vida.

E agora ele dava um lance, como se ela nada mais fosse do que um objeto de sua propriedade.

Que a alma dele queimasse no inferno!

* * *

Viper estava no mundo havia séculos. Tinha assisti­do à ascensão e queda de todos os impérios. Seduzira as mais belas mulheres do mundo. Tirara sangue de reis, czares e faraós. Mudara, inclusive, o curso da história em algumas vezes.

Agora estava saciado, tranquilo demais, entediado, até.

Não sentia mais vontade de provar o seu poder. Não se envolvia mais em batalhas com demônios ou humanos. Não fazia alianças, nem interferia em política.

Sua atual preocupação era apenas assegurar a segurança de seu clã, e manter o seu negócio rendendo o suficiente para lhe permitir a vida luxuosa com a qual se acostumara.

Mas, de algum modo, aquela shalott tinha conseguido o impossível. Povoara os pensamentos dele desde que tinha desaparecido, após a luta contra as bruxas.

E isso não o deixava nada satisfeito.

Olhando para sua mais recente aquisição, não precisava se esforçar muito para saber se Shay estava satisfeita ou aborrecida. Mesmo sob a luz fraca, a fúria nos olhos doura­dos da shalott eram evidente.

Viper deu um leve sorriso ao se voltar para Evor com desdém.

Evor arregalou os olhos. Aquele era um vampiro que ins­pirava muito medo em Chicago.

Perdoe-me por não tê-lo reconhecido, senhor. - Ele engoliu em seco.

Tem o dinheiro consigo?

Viper enfiou a mão dentro do casaco e extraiu dele um grande pacote.

Tenho.

Com um floreio, Evor deu o leilão por terminado.

Vendida.

Shay soltou um som estranho e, antes que Viper pudesse lhe dar a devida atenção, alguém praguejou bem alto.

Esperem! O leilão ainda não encerrou...

Viper bufou. Poderia ter rido do absurdo da declaração, mas não deixou de perceber o desespero que havia na voz da criatura que protestava, assim como a negritude de sua alma. Era um ser tocado pela maldade.

Evor voltou-se para o homem e o mirou da cabeça aos pés.

Quer continuar?

Quero.

Tem dinheiro vivo para bancar a última oferta?

Não comigo, mas posso arranjar facilmente se você...

Só aceito dinheiro vivo e na hora - Evor grunhiu.

Mas posso conseguir o dinheiro.

O leilão está encerrado.

Você tem de esperar, eu...

Caia fora, antes que eu encarregue meus homens de escorraçá-lo daqui.

Não! - Sem aviso, o homem subiu as escadas com a faca nas mãos.

A mulher demônio é minha.

Tão rápido como o sujeito, Viper já se movera e se coloca­ra entre o estranho e sua shalott.

Hora, hora, seja razoável. - Evor fez um gesto em dire­ção aos seus guarda-costas, que estavam ao fundo do palco.

Conhecia as regras quando veio aqui.

Os seguranças começaram a se mover na direção do es­tranho e Viper cruzou os braços. Sua atenção continuava presa no humano demente, mas não conseguia deixar de perceber o doce cheiro do sangue de sua shalott, o calor de sua pele e a energia que ela irradiava.

O corpo dele reagia à sua proximidade e ao calor que ele esquecera havia tempos.

Infelizmente, sua atenção era forçada a permanecer cen­trada no louco que, no momento, empunhava uma faca na mão. Havia algo decididamente estranho em sua determi­nação. Um pânico totalmente descabido. Ele seria um idiota se subestimasse o perigo que corria,

Não se aproximem - o homem gritou para os segu­ranças de Evor.

Os trolls continuaram, até que Viper fez um gesto com a mão.

Eu não me aproximaria da faca. Está enfeitiçada. O rosto de Evor ficou endurecido pela raiva.

Artefatos mágicos são proibidos aqui, e a punição é a morte.

Pensa que um patético troll e seus guarda-costas po­dem me assustar? - O intruso apontou a faca em direção ao rosto de Evor.

Vim aqui pela shalott, e não vou sair sem ela. Matarei se for preciso.

Pode tentar - Viper observou. O homem se voltou para ele.

Não quero lutar contra você, vampiro.

Mas está tentando roubar a minha mulher demônio.

Mas eu vou pagá-lo. O que quiser.

Está sendo generoso.

Qual o seu preço?

Viper fingiu considerar um valor.

Nada que possa me oferecer - concluiu, por fim. O homem gritou em desespero.

Como sabe que não vou poder pagar? Meu patrão é muito rico, muito poderoso.

Ah. Agora estavam começando a chegar a algum lugar.

Patrão. Então você é apenas um intermediário?

Sim - o estranho concordou.

E seu patrão, certamente, vai ficar muito desaponta­do quando souber que você fracassou na tarefa de comprar a shalott.

O estranho empalideceu. O patrão devia ser alguém aterrador para provocar pavor no criado.

Ele me matará.

Seu problema é grande, amigo, porque não tenho inten­ção alguma de permitir que saia daqui com o meu prêmio.

Por que se importa assim? O sorriso de Viper era frio.

Com certeza deve saber que o sangue de uma shalott é afrodisíaco para os vampiros. É um líquido raro que nos tem sido negado há muito tempo.

Pretende tirar todo o sangue dela?

Isso é assunto meu. Ela é minha. Comprada e paga. Viper ouviu Shay praguejar atrás dele, além do barulho de algemas. A sua bela estava claramente infeliz com a res­posta dele, e ansiosa em lhe mostrar o seu desprazer.

Sentiu-se excitado.

Pelo sangue dos justos. Ele gostava de mulheres perigosas.

Shay amaldiçoou as algemas que a prendiam ao marco de ferro. Amaldiçoou Evor, o ganancioso canalha. Amaldiçoou o estranho humano que trazia consigo o cheiro indisfarçável da maldade, o qual ela sentira antes de o leilão começar.

E mais do que tudo, ela amaldiçoava Viper por estar se referindo a ela como um objeto que acabara de adquirir pelo lance mais alto.

Infelizmente, de nada adiantava ficar ali amaldiçoando todo mundo. O estranho era maluco e estava de posse de uma faca enfeitiçada.

Ela é minha. Preciso ficar com ela!

O vampiro nem piscou. Na verdade, ficou tão imóvel, que parecia mais morto do que vivo. Somente a energia que to­mara conta de todo o aposento é que alertava: ali estava alguém que era mais do que um rosto bonito.

Pretende me enfrentar usando apenas uma faca enfeitiçada? - Viper perguntou curioso.

O homem engoliu em seco.

Sei que não posso derrotar um vampiro.

Não é tão estúpido quanto parece.

O estranho olhou em volta e Shay sentiu que todos fica­vam tensos. O maluco estava desesperado a ponto de querer enfrentar um vampiro. Quando se moveu, porém, não foi na direção de Viper, mas na de Evor. Com incrível habilidade, agarrou o troll e pressionou a faca contra a sua garganta.

Vou matá-lo. Enquanto ele estiver controlando a shalott, ela morre também. - O olhar do estranho estava concentrado em Viper, sem dúvida sabendo que este era muito mais perigoso do que qualquer outro demônio que estivesse na sala.

Ela não vai lhe servir de nada se morrer antes que lhe drene o sangue.

Shay suspendeu a respiração. Não tinha medo de mor­rer. Mas, por Deus, se ia para o túmulo, não queria que fosse enquanto estivesse presa por algemas de ferro.

Viper não se moveu, mas seu poder fez com que a sala ficasse assustadoramente gelada.

Você não vai matá-la - disse em um tom de voz capaz de provocar arrepios nos mais corajosos.

Não acredito que seu patrão fique satisfeito se você lhe levar um cadáver.

O estranho riu com selvageria.

Se ela acabar nas mãos de outro, meu destino será pior que a morte.

O seu patrão a deseja ou a teme? Quem é ele? Um demônio? Um feiticeiro?

Pare ou vou matá-la!

Não. - Viper continuou calmo.

Vai largar a faca e ir embora.

Não pense que pode me dominar com o seu olhar. Sou imune a essa droga.

Ótimo, então terei de matá-lo.

Não pode... - As palavras ainda não tinham deixado os lábios do estranho, quando Viper o segurou pelo pescoço e o jogou contra uma parede.

O homem era pequeno, mas fez um estrago e tanto. Surpreendendo a todos, colocou-se de pé imediatamente. Com certeza era mais do que um mero humano. Sem dúvida um má­gico, com poder suficiente para lhe garantir alguma proteção.

Levantando a mão, exibiu o que pareceu ser uma pequena pedra. Shay gelou. Tinha vivido tempo suficiente com as bru­xas para saber que o cristal era capaz de um poderoso feitiço.

Viper!

Não sabia bem por que alertava o vampiro. O que lhe importava quem ganhava a batalha? Ser drenada por um bando de vampiros todas as noites era preferível ao que o desconhecido monstro planejava para ela?

No fim, isso não importava muito.

Antes mesmo que o nome dele saísse dos lábios de Shay, Viper saltava, escapando do feitiço do cristal. Chamas sur­giram pelo aposento e atingiram o palco.

Peguem os extintores, seus idiotas - Evor gritou para os seguranças.

Vou perder tudo aqui!

Os brutamontes obedeceram às ordens do patrão sem gran­de entusiasmo, mais interessados em presenciarem a luta.

Viper estava de pé, o casaco negro flutuando em torno de seu ágil corpo.

O feitiço que o protege não o livrará do que farei em seu pescoço - disse em voz suave.

Está assim tão ansio­so por morrer?

Melhor ter a garganta furada do que ter de suportar aquilo que meu patrão pode fazer comigo - declarou o sujei­to, lançando o poder do cristal sobre o palco mais uma vez.

Evor gritava, horrorizado. Shay se jogou ao chão, seus reflexos impedindo que o fogo a atingisse.

Viper lançou-se contra o estranho. Ela sentiu os cabelos da nuca se arrepiar quando o rosto dele se transformou e seus caninos se fecharam sobre o pescoço do homem. O grito dele se transformou em uma espécie de grunhido quando o sangue começou a escorrer por sua boca e se espalhou pelo carpete. Estava a um segundo da morte. Mesmo assim em desespero, enfiou a faca nas costas de Viper repetidas vezes.

Shay estremeceu. Mesmo que a faca não pudesse matar um vampiro, poderia lhe causar muita dor.

Houve um último gemido e Shay virou o rosto. Em par­te, estava satisfeita por não estar sendo entregue a um ser que carregava consigo a maldade, mas preferia não olhar o vampiro desfrutar de sua refeição noturna...

Especialmente quando ela poderia ser o seu café da manhã.

Ouviu-se um baque surdo quando o homem caiu no chão.

Sugiro que verifique melhor quem você convida para os seus leilões, Evor - o vampiro observou.

Magia negra nunca é boa para os negócios.

Sim, sim, certamente. - Evor olhou em torno, pesa­roso. O aposento estava semidestruído.

Eu lhe peço as minhas mais sinceras desculpas. Não posso imaginar como essa criatura conseguiu driblar a minha segurança.

A questão não é como. Obviamente, ele teve a ajuda de um poderoso senhor. A pergunta é quem é esse senhor, e por que estava tão determinado em colocar as mãos na shalott.

Bem, suponho que isso não importe agora.

A não ser que ele venha até aqui pegar de volta o seu criado...

Os olhos de Evor se tornaram vermelhos.

Pensa que ele fará isso?

Meus talentos não incluem ler o futuro.

Vou mandar tirarem o corpo daqui. - O troll olhou nervosamente para o cadáver.

Talvez devesse queimá-lo?

Não é problema meu. Vou levar a minha propriedade agora.

Claro claro. Que confusão. - Evor procurou nos bol­sos, e de lá tirou um pequeno amuleto, que entregou ao im­paciente vampiro.

Aqui está.

Segurando o amuleto em seus dedos longos, Viper lan­çou um olhar indagador ao troll.

Explique.

Enquanto possuir o amuleto, a shalott virá ao seu en­contro sempre que a chamar.

Viper lançou um olhar para Shay. Ela estremeceu quan­do viu a satisfação em seus olhos magnéticos.

Então ela não poderá escapar de mim?

Não.

E isso faz mais o quê?

Nada. Temo que tenha de controlá-la por si mesmo. - Evor enfiou novamente a mão no bolso e de lá extraiu uma chave pesada, que estendeu a Viper.

Sugiro que a mantenha com as algemas até que a tenha trancado em uma cela bem segura.

O olhar de Viper mantinha-se preso no de Shay.

Não me preocupo com isso - falou suavemente.

Agora nos deixe.

Como queira. - Evor deu de ombros, pegou seu dinhei­ro com cuidado, e saiu do palco seguido de seus seguranças.

Assim que estavam sozinhos, Viper se ajoelhou ao lado de Shay.

Bem, encontramo-nos de novo.

Ela sentiu a respiração lhe faltar e isso era ridículo. Meu Deus, ele era bonito demais. Os olhos eram negros como uma noite escura. As feições perfeitas, como se tivessem sido modeladas por um artista. Os cabelos, acetinados.

Era como se tivesse sido criado com o único propósito de dar prazer a cada mulher afortunada que cruzasse o seu caminho.

O desejo de tocar suas feições e comprovar se eram mes­mo reais tornou-se tão intenso que a confundiu. Shay viu sua mão se estendendo, mas a retraiu de pronto.

Droga. O que estava acontecendo com ela?

Aquele canalha tinha acabado de comprá-la. Gostaria de enterrar uma estaca no coração dele, não descobrir se podia mesmo levar uma mulher ao delírio do prazer, como parecia prometer.

Gostaria de dizer que se trata de uma agradável sur­presa, mas não é - ela conseguiu murmurar.

Não é agradável ou não é uma surpresa?

As palavras, ditas com voz suave fizeram com que a pele dela se arrepiasse. Mesmo a voz era capaz de levar uma mulher ao clímax em questão de instantes.

Adivinhe.

Ele franziu levemente a testa.

Poderia estar um pouco mais agradecida. Afinal aca­bo de salvá-la de um futuro nada promissor.

Você não tem nada a ver com meu futuro.

Oh, mas ainda não sabe dos meus planos.

Você é um vampiro. Isso é tudo o que preciso saber. Ele estendeu a mão e tocou de leve nos cachos de cabelo que lhe caía em torno do rosto: um toque que irradiou ener­gia por todo o corpo dela, dando-lhe um inesperado prazer. Maldito vampiro.

Acredita que nós vampiros somos todos iguais?

Vampiros estiveram por séculos atrás de meu sangue. Por que você seria diferente?

Os lábios dele exibiram um sorriso.

É verdade, por que não?

Shay tentou se afastar, mas gemeu pela dor que as alge­mas lhe causaram nos punhos.

Você sabia que eu estaria aqui quando veio? - ela perguntou.

Houve um momento de silêncio antes que ele respondesse:

Sim.

Foi essa a razão que o trouxe aqui?

Sim.

Por quê?

Obviamente porque queria você.

A decepção voltou a ferir o coração de Shay como uma punhalada. Ela era uma estúpida.

Mesmo depois de eu ter lhe salvado a vida?

Ele a olhou com curiosidade.

Salvou a minha vida? Talvez. Shay arregalou os olhos, chocada.

O que quer dizer com esse "talvez"? Ele deu de ombros.

Certamente você evitou que eu tivesse um ferimento sério, mas é impossível determinar se eu teria morrido dele.

Miserável. - Ela respirou fundo.

Salvei a sua vida e, mesmo assim você veio aqui para me comprar.

Havia entre os compradores alguém que preferisse?

Preferia matar todos vocês. O riso dele encheu o aposento.

Tão sedenta de sangue...

Não. Apenas estou cansada de ficar à mercê de todo demônio, monstro, bruxo ou maluco que tenha dinheiro su­ficiente para me comprar.

Ele balançou a cabeça, concordando.

Compreensível, suponho.

Você não compreende nada.

O leve sorriso não deixou os lábios dele, mas, pela pri­meira vez, Shay notou as linhas de irritação em torno de seus olhos.

Talvez não, mas sei muito bem que não desejo brigar com você esta noite. Fui ferido e preciso de sangue para recuperar minha energia.

Shay se esquecera dos ferimentos dele. Não que estives­se particularmente preocupada com isso.

E ela não gostara de ouvi-lo mencionar a palavra "sangue".

E daí?

Ele pareceu se descontrair novamente.

Eu preferia levá-la para casa de maneira civilizada, mas posso mantê-la com as algemas enquanto estiver sendo arrastada. A escolha é sua.

Ela se recusou a revelar o seu alívio.

Que escolha, não é?

Por hora é a única que tem. O que vai ser?

Shay o encarou por um momento antes de lhe estender os braços. Não havia razão para lutar contra o inevitável. Além do mais, o ferro estava machucando seus punhos.

Tire as algemas.

Posso ter a sua palavra de que não vai tentar lutar contra mim?

Shay o olhou, surpresa.

Confia em minha palavra?

Claro.

Por quê?

Porque posso ler a sua alma. - Ele não desviou o olhar.

E então, dá a sua palavra?

Droga. Shay não queria que Viper soubesse que, se ela lhe desse sua palavra, jamais poderia voltar atrás. Isso lhe daria um poder ainda maior sobre ela.

No momento, se recusava a tanto. Como poderia viver consigo se, pelo menos, não tentasse enfiar uma estaca no coração de seu novo senhor? Tinha o seu orgulho, afinal das contas.

Mas ele continuava a olhá-la, imóvel como somente um vampiro podia fazer.

Shay suspirou. Ele estava preparado para ficar naquela precisa posição por uma eternidade, se necessário.

Nesta noite não tentarei lutar contra você - concedeu por entre os dentes.

Viper acabou rindo.

É o melhor que posso conseguir neste momento, não é?

Está absolutamente certo.

Viper escoltou Shay para fora da casa de leilão até o car­ro, Não sabia bem por que estava tão satisfeito. Viera ao leilão porque não conseguira tirar a imagem da linda shalett de sua mente. Não tinha idéia do que pretendia fazer com ela. Apenas sabia que não deixaria que ninguém mais a possuísse.

Seus planos não incluíam uma batalha contra um bruxo, ou adquirir um inimigo poderoso que, sem dúvida, o procu­raria em busca de vingança, tampouco ser tratado como um monstro pela sua própria escrava. Por que estava rindo?

Seu olhar se deteve nos quadris de Shay enquanto ela caminhava à sua frente. Agora ele se lembrava.

Sentiu a excitação tomar conta dele. O aroma do sangue potente que ela possuía nas veias fazia com que qualquer vampiro se excitasse. E tinha um aroma carnal.

Mas não era somente isso o que o atraía naquela shalott. Ela era belíssima, caminhava com uma graça incomum, sem contar a determinação em seus olhos dourados, e o pe­rigo que ela representava a qualquer um.

Nunca seria simplesmente uma companheira de sexo. Seu amante nunca saberia se quando a beijasse ela enros­caria suas pernas em torno dos quadris dele, ou lhe arran­caria o coração. E isso acrescentava um bocado à excitação que ele já sentia.

Viper procurou afastar o olhar dos quadris de Shay quando chegaram à limusine preta.

Este carro é seu? - ela perguntou, admirada.

Um dos meus pecados.

Ela forçou um sorriso, mas Viper não conseguiu avaliá-lo bem. Parecia mais perturbada do que impressionada com os sinais da sua riqueza.

Ótimo.

Gosto de viver bem. - Viper abriu a porta da limusi­ne e fez um gesto para que ela entrasse.

Já dentro, Shay não conseguiu esconder a admiração. O interior do carro era um trabalho de arte. Bancos brancos acetinados, gabinete com bebidas, TV de plasma...

O que mais um vampiro como ele poderia desejar?

Quando o carro começou a deslizar, Viper pegou dois co­pos de cristal e serviu neles uma generosa porção de seu vinho favorito.

Vinho? - ofereceu.

Este vem de uma excelente safra.

Pode ser. - Shay aceitou o copo.

Mas não sei dis­tinguir um vinho bom de água de banho.

Viper escondeu o sorriso tomando um gole.

Vejo que precisarei apresentá-la às delícias de uma vida de luxos.

Shay o olhou, surpresa.

Por que perderia tempo com isso? Ele deu de ombros.

Prefiro que minhas companheiras sejam sofisticadas.

Companheiras? - Shay riu com ironia.

Eu?

Paguei um bom dinheiro por você. Pensa que vou es­condê-la em alguma cela úmida?

Por que não? Você pode drenar o meu sangue em qual­quer lugar.

Viper se acomodou melhor no assento elegante, procu­rando ficar de um jeito que os ferimentos das costas não doessem.

É verdade que eu poderia fazer uma fortuna com o seu sangue - ele murmurou.

Os vampiros pagariam qualquer preço por um gole de seu potente elixir. No entanto, não preciso de mais riqueza, e no momento prefiro mantê-la comigo.

Como seu estoque particular?

Talvez - ele murmurou meio distraído, enquanto pe­gava um pequeno pote de cerâmica.

Estenda os braços.

Shay endureceu o corpo, temendo o que viria. Ela deixa­ra claro que considerava compartilhar o seu sangue com um vampiro um destino pior que a morte.

Para quê?

Pedi que estendesse os braços.

Shay o olhou com fúria e demorou um longo tempo para obedecer.

Viper enfiou os dedos no pote de cerâmica e depois pas­tou o creme nos punhos feridos de Shay.

O que está fazendo?

Não vejo razão para você sofrer. Não sou ligado às bruxas, mas suas poções funcionam.

Shay arqueou as sobrancelhas enquanto Viper fazia o curativo no outro pulso.

Por que está fazendo isso?

Está machucada.

Sim, mas... Por que se importa comigo? Seus olhares se cruzaram.

Você agora me pertence. Cuido bem das minhas coisas. Shay não pareceu inteiramente satisfeita com a explicação, mas seus músculos relaxaram com o toque gentil dos dele, e não tentou se afastar. Não até que Viper levou o punho dela aos lábios.

Não, por favor - ela murmurou.

Eu...

De repente, Shay puxou a mão e ficou em alerta.

O que foi? - ele perguntou confuso.

A escuridão que havia na casa de leilão está nos se­guindo.

Abaixe-se - ele ordenou, enquanto abria um compartimento embaixo do banco. Em um instante estava com uma arma.

Houve o solavanco de um veículo batendo na limusine, mas sem causar estrago algum, desde que a blindagem que a cobria era capaz de aguentar uma bomba nuclear.

E, claro, o chofer era um vampiro. Os reflexos de Pierre eram os melhores que Viper já vira. Sem mencionar o fato de ele ser imortal, ou seja, o chofer perfeito.

Mas Pierre parecia surpreso que houvesse alguém estú­pido o bastante para atacá-lo.

Dê-me uma dessas. - Shay apontou para uma das pistolas.

Viper escutou a voz suave e se voltou para ela.

Sabe usar uma arma?

Sei.

Ele lhe entregou uma pistola e se surpreendeu em vê-la lidar com a arma com incrível eficiência.

Não que isso fosse muito tranquilizador. Mas, pelo me­nos ele sabia que ela não daria um tiro no pé acidentalmen­te ou, pior que isso, no pé dele.

Mire os pneus - ordenou, abaixando a janela. Apertou o próprio gatilho, atingindo o alvo. Do outro lado, Shay con­seguiu atingir o motorista, apesar de não saber se havia sido um tiro mortal.

O carro saiu da estrada e Viper enviou seus pensamen­tos a Pierre, que diminuiu a velocidade da limusine. Ele queria aqueles homens. Queria lhes tirar toda a informação que possuíam.

E depois planejava lhes tirar todo o sangue.

Quem quer que fosse, estava querendo demais a shalott, e ele precisava saber com quem estava lutando.

Praguejou quando viu o carro inimigo explodindo em uma bola de fogo.

Droga. Isso não acontecia apenas nos filmes.

Viper observou Shay se acomodar no banco. Fechando as janelas, estendeu a mão para que ela lhe entregasse a arma. Houve apenas um instante de hesitação, mas ela aca­bou lhe estendendo a pistola. Ele guardou as duas armas no gabinete escondido, depois se acomodou melhor no banco e sorriu.

Nada mal, não é?

Fizemos um bom trabalho. Pensou que eu pudesse virar a pistola em sua direção?

Sentiu-se tentada?

Uma arma não é capaz de matar um vampiro.

Mas as balas eram de prata e poderiam ter causado um bom estrago.

Shay ficou em silêncio um instante.

Disse que confiava em mim.

Não sobrevivi por tantos séculos sem compreender que às vezes me engano.

Shay não fez comentário algum, e se entreteve arruman­do a trança. Não parecia muito calma, e Viper achou mais sensato não provocá-la ainda mais.

Parte demônio ou não, ela ainda era uma mulher.

Se eu quisesse feri-lo - ela disse por fim não pre­cisaria de uma arma.

Shay não era boba. Sabia que provocar um vampiro de­baixo de certas circunstâncias era perigoso. Como jogar ro­leta russa com uma arma carregada com todas as balas. Especialmente quando ela estava à mercê de seu dono.

Mas, enquanto todos os sentidos a alertavam para que mantivesse a boca fechada, e desaparecesse naquele macio assento de couro, seu orgulho se recusava a escutar.

Além de ser um vampiro, Viper era tudo aquilo que ela mais odiava. Bonito demais, obscenamente rico, e pior de tudo, confiante demais em seu próprio valor.

Bem no fundo ela estava com inveja de sua arrogância. Mesmo que vivesse um milênio, jamais conseguiria valorizar a si mesma. Ela era uma aberração. Metade demônio e metade humana. Não pertencia a nenhum mundo. E nunca pertenceria.

Viper voltou-se com a testa franzida.

Tem idéia de quem possa estar tão desesperado para colocar as mãos em você?

Não.

Nenhum antigo dono que a queira de volta?

Além de Evor, que detém a minha maldição, Edra foi meu único dono. - Ela retorceu os lábios, aborrecida.

Até vir você.                                        

Pode ser algum amante ciumento?

Isso não é de sua conta.

Agora é, já que tentaram me matar. Shay puxou a trança com violência.

Devolva-me a Evor.

Nunca. - Sem aviso, o vampiro se aproximou e en­curralou Shay em um canto do banco.

Você é minha.

O rosto dele estava tão próximo, que ela podia sentir os reflexos do brilho que havia em seus olhos negros.

Seu coração disparou. Em parte por medo. E em parte... Diabos, ela precisava ser honesta. Em parte por sentir dese­jo. Não precisava gostar dele para querer rasgar suas rou­pas e colocar aquele corpo magnífico sobre o dela. Viper era um convite ao sexo, dos cabelos aos dedos dos pés calçados naquelas botas de couro. Ela teria de estar morta para não querer fazer sexo com ele.

Percebendo que Shay o desejava, Viper inclinou-se mais, os caninos surgindo, poderosos, e ele mesmo excitado ao limite.

Shay arregalou os olhos.

Não.

Bem devagar, ele começou a abaixar a cabeça.

Tem medo que eu queira beber o seu sangue?

Não gosto de servir de refeição para ninguém. Os frios lábios de Viper roçaram o rosto dela.

Há muitas razões para um vampiro compartilhar o sangue. Confiança, amizade, amor, desejo...

O coração de Shay parecia querer saltar do corpo. Viper a estava tocando com nada mais do que seus lábios, mas isso já provocava efeitos nas partes íntimas dela e seus ma-milos haviam endurecido.

Deus fazia tanto tempo...

Os cabelos macios e longos pareciam acariciar a curva de seu pescoço, Shay pensou. Ele tinha um cheiro de colônia cara misturado a algo bem mais primitivo. Alguma coisa gritantemente masculina.

No momento Viper lhe lambia a veia próxima ao pesco­ço, e o pânico fez com que ela levantasse as mãos, tentando empurrá-lo.

Viper!

Neste momento não quero o seu sangue. - Os lábios continuaram se movimentando, levando um arrepio a per­correr a espinha de Shay.

O que você quer? - ela conseguiu perguntar.

Tudo o mais.

Seus lábios se encontraram e, mais uma vez, ela sentiu corpo inteiro estremecer.

Um gemido escapou de seus lábios quando os dedos de Viper tocaram seu rosto. Com gentil insistência, a língua ávi­da entreabriu os lábios dela e se introduziu em sua boca.

Shay manteve os olhos fechados, mas, inesperadamente, participou do beijo. Desde o momento em que tinha encon­trado aquele vampiro, semanas antes, ele lhe havia invadi­do os sonhos e despertado nela sensações adormecidas.

Suavemente, as mãos de Viper deslizaram pelo pescoço de Shay. Seu toque era tão leve quanto às asas de uma bor­boleta. Tão leves, que ela mal notou quando os dedos dei­xaram seu pescoço e chegaram aos seios. Não até que Viper massageasse os mamilos.

Uma exclamação escapou dos lábios dela.

Viper!

Os caninos roçaram a pele macia de Shay, nunca tirando sangue.

Shh... Não vou machucá-la.

Vai me morder?

Tenho outra coisa em mente.

Shay estremeceu, permitindo que o corpo de Viper pressionasse o dela, que seu joelho a forçasse a abrir as pernas.

Sentiu-se tonta ao sentir a enorme ereção a pressioná-la.

Pelo fogo do inferno, o que estava fazendo? Tornara-se escrava de Viper havia não mais de uma hora, e ali estava ela, lutando contra a vontade de arrancar as roupas dele para que a penetrasse.

Podia estar subjugada por seu poder, mas isso não signi­ficava que deveria lhe obedecer com entusiasmo. Afinal, ela não tinha orgulho algum?

Fazendo um esforço enorme, tentou se controlar.

Não conseguiu dizer.

Foi mais um gemido, porém, o suficiente para Viper pa­rar o que fazia.

O que disse?

O corpo dela estremeceu todo com um misto de medo e decepção.

Eu disse não.

Estava preparada para ouvi-lo rir diante de seu fraco protesto. Ou quem sabe ignorá-lo.

Era sua escrava e Viper podia fazer o que quisesse com o corpo dela.

Surpreendentemente, no entanto, ele se afastou, ajeitando-se no banco. Não havia o menor tremor em seus dedos quando pegou o cálice de vinho e o levou aos lábios, como se o que estivera acontecendo entre os dois não o afetasse em nada.

Por que parou? - ela inquiriu perplexa. Viper sorriu levemente.

Você disse "não". Eu presumi que significasse mes­mo um "não".

Mas...

Sou um vampiro, não um monstro.

Mas importa o que eu quero? Sou sua escrava. Viper colocou seu cálice de lado.

Mas não é uma prostituta e nunca será. Shay observou-o com atenção. Parecia sincero.

Mas ele era um vampiro. Fingimento era uma das maio­res habilidades de um vampiro.

Tudo o que tenho de dizer é "não"?

Exatamente.

Não acredito em você.

Os olhos negros brilharam de raiva diante da acusação, mas logo voltaram ao normal.

Esta é sua escolha, naturalmente.

Shay voltou a mexer na trança. Era uma armadilha. Tinha de ser.

Se não pretende me possuir, por que me comprou? Viper caiu na risada. Estendeu a mão para a maçaneta da porta e a abriu.

Chegamos. Vamos entrar?

Este é o seu lar? - Shay perguntou.

Viper tirou o casaco pesado, e ficou apenas com a camisa de linho e calças de couro.

Sorriu ao perceber que ela deslizava o olhar pelo corpo dele. O tempo que haviam passado na limusine revelara que ela não lhe era indiferente.

Logo Viper pretendia tê-la, quente e apaixonada, debai­xo de si.

Ou em cima, ao lado...

É uma das minhas casas.

Quantas você tem?

Isso importa?

Suponho que não. Viper aproximou-se de Shay.

Esperava uma maior?

Deus, não.

Ele seguiu para a cozinha e Shay o acompanhou.

Tenho algumas que uso para entreter as pessoas, mas aqui é o meu retiro. Às vezes prefiro ficar sozinho.

Estamos sozinhos?

Viper se voltou para Shay e observou a roupa que ela usava. Quando ele a vira vestida como uma escrava de harém, desejara arrancar fora o coração de Evor.

Na privacidade de sua casa, no entanto, não podia negar que aquele traje tinha certo atrativo.

Há guardas no quintal, e tenho uma governanta hu­mana que vem durante o dia. Mas, na maior parte do tempo, teremos a casa somente para nós mesmos. - Voltou a aten­ção para a curva da boca de Shay.

Delicioso, não é?

Não é a palavra que eu usaria neste caso.

Ele se aproximou a ponto de seus corpos ficarem juntos.

Preferia estar rodeada por vampiros famintos? Isso pode ser arranjado.

Pare com isso.

Viper tocou de leve no rosto de Shay.

Com licença.

O quê?

Está bloqueando a porta da geladeira... Preciso pegar o meu sangue.

Ah. - Shay ruborizou.

Viper pegou uma garrafa de sangue e a esvaziou. Tornou a pegar mais algumas. Colocou-as sobre a pia, e começou a abri-las.

Não sabia o que você gostava de comer, assim man­dei minha governanta pedir um pouco de tudo. Há comida chinesa, italiana, mexicana e até galinha frita. Pegue o que quiser.

Você já sabia que eu viria? Como podia ter certeza de que daria o maior lance no leilão?

Viper olhou para o corpo tentador de Shay.

Sempre consigo o que quero. Mais cedo ou mais tarde. Os olhos dela brilharam.

Fala como um verdadeiro vampiro. Viper estreitou os olhos.

Por que odeia os vampiros?

Shay tentou responder evasivamente:

Além do fato de tentarem drenar o meu sangue desde o dia em que nasci?

Os vampiros não são os únicos demônios que querem chupar o seu sangue. Mas você parece detestá-los de forma mais pessoal.

O silêncio reinou na cozinha por uns instantes. Viper simplesmente esperou que ela respondesse:

Vampiros mataram o meu pai.

Isso explicava o fato de Shay odiar sua espécie.

Sinto muito.

Ela deu de ombros.

Foi há muito tempo.

E você foi criada por sua mãe.

Sim.

Uma humana?

Isso mesmo.

Ela estava deliberadamente escondendo suas emoções, mas Viper conhecia a linguagem do corpo. Aprendera isso por séculos, e era o que os predadores faziam de melhor.

Ela a manteve escondida do mundo dos demônios?

Tanto quanto pôde.

E você se passava por humana?

Foi fácil para Viper ler a raiva nas lindas feições de Shay.

Você me perguntou a razão de eu odiar os vampiros e eu lhe contei. Agora, podemos mudar de assunto?

Ele sorriu. Tinha uma eternidade para explorar os se­gredos de Shay. E essa seria apenas uma das muitas explorações que ele pretendia conduzir.

Coma alguma coisa. - Passou a mão suavemente pelo rosto dela.

Tenho uns telefonemas a fazer antes de amanhecer.

Saiu da cozinha, e seguiu para o pequeno escritório que tinha nos fundos da casa. Não se esquecera de que havia alguém interessado em roubar sua shalott.

E isso era inaceitável. Pretendia fazer o que fosse ne­cessário para descobrir quem era esse misterioso inimigo, e acabar com o perigo que rodeava Shay.


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Notas finais do capítulo

espero que gostem...comentem recomendem.



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