Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 8
Ajuda.


Notas iniciais do capítulo

"Deixa o céu desabar,
Quando se desfizer
Nós aguentaremos firmes
E juntos enfrentaremos tudo."
Adéle, Skyfall



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Se não sabia o que era o medo, sabia muitíssimo bem o que era a dor.

Ozilia arfou, sentindo o corpo encolher-se e estalar, como um galho seco. O segundo ataque fora ainda mais forte do que o primeiro e desfizera-lhe completamente a defesa. Assentou as mãos na terra rochosa e cuspiu uma golfada de sangue. Sentia também que o ferimento do torso, abaixo das costelas, se tinha aberto.

As tonturas estavam a baralhar-lhe os sentidos e a barreira mental que tinha criado desfazia-se como uma teia de aranha varrida por uma rajada de vento. A clareira rochosa tremeu ligeiramente quando o guerreiro gigante aterrou com os dois pés ao mesmo tempo. Ela olhou em redor para se certificar que continuavam sem testemunhas e verificar se ele já tinha chegado.

Continuava sozinha com o seu adversário invencível.

Levantou-se e respirou fundo, concentrando poder nos músculos, todo aquele que conseguiu recuperar, agarrar e reter. Como a proteção tinha sido destruída, ao fazê-lo provocou um sismo que sacudiu os penhascos em redor e abriu fendas no solo. O guerreiro estava na sua posição habitual, parado e expectante. Não precisava de reunir energia, não tinha consumido nem um décimo daquela que possuía. Era um assassino extremamente eficiente, pensou ela, o melhor de todos os mundos, desprovido de alma e de qualquer senso de auto preservação, pelo que perseguiria o seu alvo até à morte – do alvo e dele próprio, se por azar o alvo fosse mais poderoso do que ele. O que nunca acontecia e, naquela ocasião, não acontecia de facto.

Ozilia atacou com uma chuva de raios, que disparava em rajadas lançando um braço e depois o outro, voltando ao primeiro e assim sucessivamente, gritando durante o ataque. O guerreiro desapareceu na explosão, continuando na mesma posição estática, deixando-se envolver pela espessa nuvem de fumo e pelo fogo dos raios.

Era um ataque estúpido, que a debilitava mais do que feria o guerreiro, mas utilizava o tempo para pensar.

Fugir não era opção. Um combate corpo-a-corpo estava fora de questão, dada a diferença abissal de tamanho.  Um confronto mental era impossível, pois ele não estava ao alcance dela nesse plano. Os ataques energéticos eram tão inofensivos como se lhe atirasse pedras.

Não tinha opções, portanto.

Baixou os braços, saltou para trás, voando às arrecuas. Olhou para baixo, por cima do ombro, viu a floresta e deixou-se cair. Seria um terreno mais favorável para ela, uma vantagem pequena. Mas antes de alcançar o topo das árvores, um punho gigantesco apanhou-a e ela ficou presa na mão do guerreiro.

- Shimata!...

Fechou os olhos, erguendo uma barreira mental atabalhoada, criando uma diversão de luzes multicores. Por um segundo, o guerreiro ficou confuso. Viu-lhe a cabeçorra coberta pelo capacete girar, seguindo cada piscar das luzes. Ela aproveitou para arquear os braços de modo a criar a folga necessária para escapar. Mas o guerreiro esqueceu as luzes e apertou com mais força. Ozilia reprimiu um grito. Sentiu depois que estava a ser carregada pela frescura do vento. O guerreiro tinha-a atirado. O embate com a rocha dura cortou a frescura, aumentou-lhe as dores e as tonturas. Não conseguia respirar, não sabia quais os movimentos corretos que devia fazer para levar ar aos pulmões.

O sangue escorria-lhe do canto da boca enquanto sorria. Achou que seria uma boa reação, sorrir com ironia ante a obliteração. Pelo menos, não podiam dizer que ela não tinha coragem e que não tinha tentado, até ao derradeiro fôlego. Não conseguia manter o rasto luminoso que deixara na aldeia e apagou-o. Bem, paciência… Se ele não tinha chegado até àquele momento, já não chegaria. E mesmo que chegasse, já seria tarde demais para ela.

Um esgar desfigurou-lhe a cara ao sentir o calor aproximar-se.

Outra nuvem de fogo e faíscas rebentou em cima dela. O corpo separou-se em mil estilhaços, que ela ligou apressadamente com a sua teimosia. Enquanto conseguisse sentir aquela dor estúpida, significava que estava viva e enquanto estivesse viva, iria lutar até ao fim. Teimosamente até ao fim.

Mesmo sem o maldito diamante.

Mesmo sem o maldito humano patético.

***

Pouco antes do rasto luminoso se diluir, ele começou a sentir os efeitos do combate. A terra tremeu e ouviu-se o som de um rebentamento longínquo. Apressou o voo para chegar mais depressa, sentindo o gelo do diamante em contacto com a pele. Continuava sem sentir o ki dos lutadores, pelo que não sabia se a contenda estava favorável à criatura ou não. Só esperava não chegar demasiado tarde com o diamante, já que este era fundamental para que ela vencesse, mesmo que ele continuasse a não se importar uma pevide com o destino dela.

Alcançou uma clareira rochosa e descobriu, primeiro, a figura gigantesca do guerreiro. Imóvel, sem qualquer indício de que tinha estado a lutar – pó na couraça, suor, cortes e sangue no corpo. Nada. Estava limpo e impecável como um monumento antigo a uma qualquer guerra do passado.

Número 17 ficou a pairar durante alguns segundos, a observar a cena, a tentar ler a situação. Quando se apercebeu, tinha as arestas do diamante cravadas na palma da mão, quase rompendo a pele. Não a encontrava. Aterrou atrás do gigante que não se voltou. Talvez o considerasse um simples inseto, indigno da sua atenção. Ótimo! Ele primeiro precisava de saber o que era feito dela, não queria envolver-se, para já, com aquele ser descomunal.

Como estava no solo, tinha outra visão sobre o cenário e poderia traçar outra sequência dos acontecimentos na sua mente. Desde o alto percebera que a luta tinha sido renhida, havia pedregulhos e um odor recente a fumo, o guerreiro gigante tinha vencido, pelo menos numa primeira ronda. Agora, olhando mais cuidadosamente e focando todos os sentidos, podia-se aperceber que possivelmente nem tudo estaria perdido. Sentia, mesmo que ténue, uma ligeira impressão que lhe arrepiava a nesga de pele dos pulsos que se assomava depois de terminadas as mangas da camisa.

Ela ainda estava viva!

Descobriu-a deitada de costas, estremecendo, no enquadramento feito pelas pernas abertas do guerreiro gigante. O primeiro impulso foi correr para junto dela, aquela pedra preciosa, brilhante e transparente que agarrava com mais força do que pretendia dizia-lhe que ela precisava do diamante e que ele não se podia demorar em entregar-lho. Mas depois acalmou-se, pois se corresse, fá-lo-ia por entre as pernas do guerreiro gigante e antes de chegar perto dela poderia levar com um murro bem no alto da cabeça, que o haveria de enfiar no chão rochoso como um prego.

Abriu uma mão e disparou um raio de energia para a floresta. O pequeno estratagema resultou, pois o guerreiro gigante reagiu, voltando a cabeçorra para o lado, na direção da explosão. Ele rodeou-o com um salto, pousando junto à criatura. Agachou-se, assentando um joelho no chão. Reparou nos arranhões e no sangue, tentou perceber os estragos que não estavam visíveis.

O ar moveu-se, uma sombra cresceu e ele, levantando a cabeça, viu que o guerreiro gigante tinha percebido o logro, que não havia nada de interesse na floresta e que se voltava para eles, disposto a atacar novamente. Era a vez de ele entrar em ação e sorriu, com uma excitação a incendiar-lhe o sangue. Seria excelente desenferrujar os músculos com aquele brutamontes desmiolado, que, dentro de breves segundos, iria provar o verdadeiro poder de um ser artificial construído com a melhor tecnologia que existia naquela área.

Agarrou no braço da criatura, deixou-lhe a pedra preciosa na palma da mão.

- Aqui está o teu diamante.

Sem querer saber que tipo de importância tinha aquele gesto para a sobrevivência de Ozilia, número 17 pôs-se de pé.

Nem teve tempo de se preparar convenientemente. Teve de aparar um punho colossal com ambas as mãos, que ergueu por cima da cabeça ou acabava exatamente como um prego enfiado no chão rochoso. Não achou o golpe extraordinário, nem empregou muita força para se defender. Afastou-se com um salto mortal à retaguarda, fletiu os joelhos e impulsionou-se para o alto. Enquanto saltava reuniu energia nos braços que rodou de baixo para cima, num movimento amplo, enquanto fazia surgir entre os dedos de cada mão duas esferas amarelas. Lançou-as contra a cabeçorra do guerreiro gigante.

A explosão fez parar o adversário que já vinha com outro murro colossal preparado. Número 17 estacou no ar e lançou mais duas potentes esferas energéticas. Sorriu, contente com o resultado. O guerreiro gigante parecia um brinquedo avariado, congelado numa posição cómica como se lhe tivessem tirado as pilhas.

Olhou para baixo e viu que Ozilia já não estava ali. Tinha conseguido sair antes da explosão e talvez se tivesse refugiado para não ser apanhada no fogo-cruzado. Quando tornou a olhar para o adversário só teve tempo de abrir a boca – apanhou com outro murro colossal em cheio na cara, mesmo no centro. O nariz abriu-se-lhe num rasgão de dor quente. Urrou, caía descontrolado. Mas a mesma manápula que o atingira apanhou-lhe o tornozelo esquerdo e lançou-o no sentido contrário da queda. Mal teve tempo de pensar, pois enterrou-se numa rocha sólida, partindo-a em mil bocados à medida que se afundava cada vez mais.

O mergulho terminava de forma seca. Ele ofegou, respirando uma baforada de poeira. Mexeu-se timidamente para se soltar do abraço aguçado da rocha e, abrindo os braços, partiu a sua prisão, lançando uma chuva de pedra para o céu. Encontrou o guerreiro gigante naquela posição habitual, mas que começava a irritá-lo, de boneco estático e falsamente inofensivo.

Rangeu os dentes e uniu as sobrancelhas. Colocou-se em posição de defesa. Se aquele boneco pensava que o conseguiria derrotar, estava muito enganado.

Tornou a saltar. Ganhava vantagem sobre o guerreiro gigante se saltasse. Lançou um ataque de ki furioso, esferas e raios rebentavam num clamor ruidoso em cima do adversário, engolindo-o num mar de fogo, de faíscas e de fumo. Gritava convocando mais energia, toda a que possuía, canalizando-a para as mãos ansiosas. Haveria de o desfazer e de o transformar em pó, maldito boneco, pois ele era um boneco ainda mais poderoso do que ele.

Mas aquela investida acabou por drená-lo. Baixou os braços cansado, respirando depressa, o peito subindo e descendo na ânsia de receber todo o ar que precisava para oxigenar o sangue.

Verificou que o guerreiro gigante parecia igual, sem qualquer arranhão, suor ou marca que indicava ter ficado abalado com o seu ataque. Estranhou. Aquilo não era normal.

O outro gostava de usar os punhos enormes e desferiu outro murro, que número 17 esquivou, arqueando as costas. Partiu para o confronto corpo-a-corpo. Passou entre os golpes do guerreiro gigante, desviando-se de todos, aparecendo e desaparecendo. Quando se achou suficientemente perto, lançou um pontapé com toda a força contra a cabeçorra coberta por um capacete. Viu o pescoço girar furiosamente para a direita e esperou que o tivesse partido. Mas após uns segundos de imobilização numa posição estranha, o guerreiro gigante endireitou-se, movendo o pescoço, que não estava partido, para recolocar a cabeçorra bem centrada entre os ombros. Aliás, não parecia ter nada partido.

Ouviu um grito.

- Afasta-te!

Número 17 afastou-se para dar espaço ao que quer que fosse.

Ozilia segurava no diamante com as duas mãos, braços esticados, junto ao ventre. O diamante emitia uma luz intensa como se ela segurasse uma estrela e ele lembrou-se do seu sonho. Só que no sonho ela estava serena e ali sangrava e tinha uma expressão assustadora de raiva na cara perfeita. As tranças oscilavam como se tivesse serpentes na cabeleira. Estava mortalmente bela na sua fúria.

O guerreiro gigante vacilou ao vê-la naqueles modos. Pela primeira vez abria uma brecha na sua defesa impenetrável e na sua postura irrepreensível. O diamante operaria algum tipo de efeito sobre aquele gigante e número 17 sorriu. Aproveitou a pausa para recuperar a sua energia, limpou a testa e os olhos com as costas da mão.

O diamante faiscava e o tempo parou. O guerreiro gigante grunhiu, uma passada às arrecuas reverberou pelas montanhas. Número 17 preparou-se, pois se a criatura atacava e estava a debilitar o guerreiro gigante, haveria de ser ele a rematá-lo, pois não deixaria que ela acabasse com aquilo. O seu orgulho assim o exigia.

***

O humano patético sabia lutar e tinha uma força incrível que a deixou estarrecida num primeiro momento. No segundo momento, recuperou o discernimento e disse de si para si que precisava de terminar aquele combate ou perderiam qualquer resquício de vantagem que pudessem ter conseguido.

Olhou para o diamante, restabelecendo todas as ligações possíveis naquele instante de extrema tensão. Tinha a mente nublada, estava a perder sangue e sentia-se demasiado mortal para o seu gosto, mas conseguiu recuperar um pouco do poder perdido. A pedra estava conspurcada pois tinha sido tocada por mãos ímpias, mas ainda seria suficiente para voltar os acontecimentos a favor dela.

Elevou-se no ar, segurando no diamante, fundindo-se na luz que derramava sobre aquele sítio como um maremoto. O humano patético tinha acabado de pontapear os queixos do guerreiro gigante. Gritou-lhe que se afastasse e ele obedeceu sem hesitar. Provavelmente, precisava de se afastar, notava nele uma diminuição acentuada das suas capacidades.

Conseguiu penetrar na couraça do guerreiro gigante, tateava às cegas em busca do seu ponto vital que se escondia sobre pregas de carne decrépita e de ossos metálicos. Sentiu nojo por estar a conduzir aquele exercício, mas não tinha outra opção.

Quando entreviu uma espécie de coração, uma grande massa encarnada, negra e vulnerável que vibrava a espaços regulares, o guerreiro gigante conseguiu anular-lhe a intrusão. Trancou o ponto vital atrás de um escudo de energia e varreu o ar com um braço, que a projetou para longe.

Foi às piruetas, pelo ar, agarrada ao diamante que se apagara e se transformava num pedaço de carvão, arrefecendo onde antes fervia, arrependida, pela primeira vez, da decisão que tomara.

***

Fim da pausa.

Número 17 assistiu ao contra-ataque do guerreiro gigante. Viu a criatura ser cuspida por uma barreira invisível de energia. Nem sequer teve tempo para pensar, agiu apenas. Com a supervelocidade alcançou-a, travou o voo errático dela amparando-a com o corpo, abraçando-a. Ela já tinha perdido os sentidos nessa altura. Depois, novamente sem pensar, protegeu-a, voltando costas à rajada mortífera de raios que o guerreiro gigante lançava usando os dedos esticados, à laia de canhões.

Os disparos não cessavam e número 17, num grito de dor e de frustração, com Ozilia entre os braços, despencou-se na floresta, desfazendo pernadas e copas de árvores, aterrando às cambalhotas no solo húmido. Soltou a criatura, tinha os braços trémulos e as costas chamuscadas. Gemeu dorido, deitando-se para que a humidade do chão lhe aliviasse o ardor persistente. Fechou os olhos e, por um instante, alheou-se das preocupações mais imediatas.

Conseguiu escutar o bater das asas de um bando de pássaros a fugir dali, os pios estridentes, roçando o medo. Conseguiu escutar as passadas do guerreiro gigante ao se posicionar no terreno. Conseguiu ter um único pensamento:

- Masaka

Antes de a floresta escura, calma e verde se dissolver numa massa alaranjada e fervente.

Puxou Ozilia para si, deitou-se sobre ela para a proteger, mais uma vez.

O estrondo agitou-lhe todos os átomos, enquanto ele se munia das suas forças para aguentar o ataque, o mais poderoso que o guerreiro gigante tinha enviado até ali. Era uma sensação aflitiva e humilhante, que lhe enviava para a alma o desejo intenso de retaliação. Ele não podia deixar-se derrotar. Ele não iria perder aquele combate…

Quando abriu os olhos a floresta tinha-se convertido numa imensa cratera nua, o solo castanho esventrado e estéril estendendo-se em redor dele e da criatura, o centro do cataclismo, o alvo da fúria assassina daquele ataque energético.

Ela vivia, ele sentia-se à beira do desespero, mas lembrando-se que jurara retaliar. Inspirou fundo, recuperando as funções vitais, organizando o cérebro zonzo. Mas que tipo de adversário seria aquele que parecia invencível?

Soltou-a, colocou-se de gatas. Uma primeira posição, relativamente humilhante, antes de se erguer sobre as duas pernas e começar a mostrar que ainda faltava muito para que se desse por vencido. Levantou a cabeça e entreviu, na orla da clareira, as pernas descomunais do guerreiro gigante, novamente naquela posição imóvel de estátua. Irritou-se.

Nisto, sentiu um ki. Alguém chegava, deslocando-se tão depressa quanto uma partícula de luz, postando-se ao lado dele, que continuava ainda de gatas, a tentar conciliar a respiração.

- Yo… Precisam de ajuda?

Número 17 julgou que estava a sonhar.

Son Goku olhava para ele a sorrir.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Herói.



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