Deuses e Diamantes escrita por André Tornado
Notas iniciais do capítulo
"Onde existe uma chama, alguém se pode queimar.
Mas só porque arde,
Não significa que vais morrer.
Tens de te levantar
E tentar, tentar, tentar."
Pink, Try
A chuva fustigava a arena.
Despertou de mansinho, recuperando, uma por uma, todas as funções vitais do corpo abatido. Sentia-se enfermo e desgraçado, quebrado em mil pedaços dispersos, desfeito numa papa borbulhante que ousava sentir-se viva.
A obstinação e a teimosia classificavam-no inequivocamente, quase como o orgulho e a honra. Tudo nele sempre fora excessivo, até as derrotas, as vitórias e as paixões. E mesmo que tivesse a tentação de se render ao desespero, por, mais uma vez, não estar a conseguir superar o maldito adversário que o desmontava, bloco por bloco, até conseguir expor-lhe o tutano, ele haveria de resistir sempre, com os seus excessos todos intactos, mesmo que o corpo se convertesse num monte de cinzas. A obstinação, a teimosia, o orgulho e a honra, não necessariamente por esta ordem. Porque isso não era passível de ser incinerado.
Vegeta encheu os pulmões de ar e tossiu, porque quase não havia oxigénio naquele ambiente salobre. Esgravatou o solo com as unhas e soergueu-se nos braços trémulos. Estava perigosamente drenado, mas fez mais um esforço. Levantou a cabeça, a testa estava empapada em suor e em sangue. Fez um esgar que se assemelhava muito a um sorriso e ele gostou de enviar essa mensagem – de que nada o iria quebrar.
Uma onda de calor envolveu-o e a visão ficou vermelha. Outro ataque de Argia. Havia labaredas escaldantes e ramagens espinhosas a tentar despedaçá-lo, mas ele resistiu. Elevou o ki e libertou-se do ataque. Rebolou e deixou-se ficar deitado de costas, a respirar ofegante, a receber as gotas de chuva no rosto como lágrimas que lhe suplicavam que se aguentasse firme naquele combate.
Nisto, soube que a solução era simples.
Abriu os olhos, controlando a respiração. Era demasiado simples.
Ergueu-se, triunfando sobre o desânimo. Bradou:
– Argia!!
Obteve apenas silêncio e insistiu:
– Argia! Mostra-te, cobarde.
Ouviu uma voz pausada do lado direito.
– Estou aqui, príncipe dos saiya-jin. O que pretendes?
Vegeta voltou-se devagar. O deus guerreiro cruzava os braços e olhava para baixo, a cismar com qualquer coisa insignificante que estava no chão, a poucos centímetros da biqueira das botas.
– Vamos recomeçar este combate.
– Sabes que se trata de uma questão de segundos. Basta eu querer… e acabo contigo.
– Mas não queres. Porque sabes que existe uma possibilidade…
Argia inspirou profundamente, cismando agora com o horizonte soturno recortado em picos de ferro.
A chuva envolvia os dois adversários no mesmo destino negro e bafiento.
Vegeta completou:
– A possibilidade de vencer-te. E tu queres comprovar se o príncipe dos saiya-jin consegue derrotar um deus.
– Não consegue.
– Tu sabes que consegue! – Rugiu Vegeta. – Já o viste!
Argia aproximou-se tanto que ele teve de se inclinar para trás. Cuspiu-lhe a frase:
– Prova-o.
Aproveitou o impulso para o socar e Vegeta deslizou pelo chão até parar junto ao fim da arena, balançando perigosamente no início do abismo. Limpou o sangue da boca com a ponta dos dedos, resmungando:
– E vou provar-te, maldito.
Então, empurrando com os pés, atirou-se para o negrume desconhecido daquela garganta rochosa. Caía e não parava de cair. Travou a queda quando deixou de sentir a chuva. Olhou para baixo e não havia nada. Não conseguia perceber onde ficava o fundo do abismo. Olhou para cima e viu a luz recortada numa forma circular imperfeita. Crispou a fronte, estranhando o lugar. Estava dentro de uma espécie de caverna tubular, mas não era essa a perceção que tinha. Como esperado, Argia não o seguira. Pelo menos, não para já, o que lhe dava tempo para pôr o plano em prática.
Vegeta começou a vaguear pelo abismo, a fingir que se tinha perdido. Diminuiu o ki, disfarçando a sua presença, ocultando-se nas sombras. Encostou as costas numa parede lisa e gelada e, apesar de não ser essa a sua intenção inicial, concedeu a si próprio uns instantes de descanso. Um intervalo breve, que lhe permitiu esfriar ainda mais a mente em turbilhão e organizar as suas ideias, a começar por aquele plano.
Arriscou sorrir. Mas por que razão ainda não tinha pensado naquilo?
Achou que adormeceu, pois os olhos abriram-se de repente quando uma torrente de chamas violeta irrompeu pelo abismo, calcinando tudo o que tocava, descendo imparável até ao fundo desconhecido. Vegeta espalmou-se mais contra a parede. Sabia o que se seguiria, pois mesmo que fosse um deus, Argia estava a reagir como um vulgar guerreiro e ele já tinha conhecido muitos ao longo da sua vida.
Como antecipara, a comandar a torrente, a empurrar a sua descida assassina, vinha Argia de braço estendido e mão aberta, furioso e cego com essa fúria. Vegeta intercetou-o a meio do voo picado, desferindo-lhe um pontapé com ambos os pés que o apanhou em cheio na cabeça. Argia desapareceu na escuridão, berrando indignado, o berro perdendo-se no vácuo, misturando-se com o estrondo dos pedregulhos a rebolar uns sobre os outros, um eco metálico e torcido, ferro contra ferro.
Vegeta aproveitou o momento e voou dali, subindo até aterrar na arena. Juntou as duas mãos diante do corpo e aguardou, concentrando energia, toda aquela que conseguia rebuscar. Talvez chegasse a ser excessiva e, acaso falhasse, ficasse tão enfraquecido que não se conseguiria defender mais. Uma última hipótese, sabia-o muito bem. Mas o plano estava a dar certo e não iria desistir só porque havia a possibilidade de sucumbir mesmo vencendo.
O ataque e o voo cansara-o mais do que esperava. Os braços pesavam-lhe toneladas, a visão turvava-se, as pernas tremiam como gelatina. Mas era obstinado, recordou-se. Teimoso, orgulhoso e, sobretudo, honrado. Estava ali no lugar de Kakaroto e não o iria desiludir.
Nas profundezas, rochedos metálicos rebolaram e chocaram. Vegeta cerrou os dentes, uma veia pulsou na testa. Um aro luminoso rodeou-lhe os pulsos.
Não iria falhar.
Escutou o mesmo brado, desta vez em crescendo, a ira em estado sonoro.
Nas suas mãos juntas aglomerava-se luz, faúlhas e um ataque mortífero.
Só mais um momento…
Cerrava os dentes com tanta força que começou a ouvir estalidos na cabeça.
A exaustão estava a ameaçá-lo.
Nisto, à sua frente, Argia surgiu magnífico, envolvido numa aura vermelha de ódio. Voando de braços abertos, agitando as mangas largas, emulando um anjo da morte.
E depois, o tempo recuou.
Vegeta engasgou-se:
– Nani?
Mas não interrompeu o ataque que preparava.
Viu a deusa na mesma posição de Argia, de braços abertos, a imagem de um anjo vingador.
Estava ali para equilibrar o mundo.
O anjo da morte enfrentar-se-ia ao anjo vingador.
Vegeta percebeu. Os opostos lutavam naquele mundo e eles eram meros peões, usados e largados pelos deuses, demasiado necessários quando lhes convinha, totalmente descartáveis quando passavam a empecilhos.
Ozilia disse e a voz dela ressoou na cabeça dorida de Vegeta:
– Um excelente plano, príncipe. Vai resultar.
Ele gaguejou
– Na-nani?...
E depois, o tempo regressou ao presente.
O androide materializou-se do nada. Vinha assanhado e pontapeou Argia nas costas, empurrando-o para cima dele.
Vegeta disparou gritando:
– Final Flash!!!
A vaga energética submergiu o deus guerreiro. A explosão também derrubou Vegeta que caiu para trás, rendendo-se ao cansaço. Foi recebido num amplexo quente e sacudiu-se, sentindo-se envolvido num perfume desconhecido e na macieza inebriante de um corpo feminino. Mas não se conseguiu soltar.
– Termina o que vieste aqui fazer, príncipe – dizia-lhe Ozilia.
Arquejou, de gatas, subitamente regressado à chuva e à arena recortada numa montanha de um lugar onde imperava o ferro. Apoiou-se numa perna, depois na outra. Não foi necessário ver, nem o conseguia fazer, tinha os olhos turvos do suor e do sangue que escorriam da testa. Atirou-se para o chão de joelhos, arfando como um asmático. O corpo balançava, tinha os braços pendurados.
Mas ele era… Recordou-se, no meio de uma névoa cinzenta que lhe estava a tragar a consciência.
Mas ele era obstinado. E teimoso. E muito orgulhoso e muito mais honrado.
Argia gemia ferido, tão arquejante quanto Vegeta.
O príncipe guiou-se pela luz. Lançou a mão com as derradeiras forças e agarrou no diamante do deus guerreiro. Com um puxão separou-o da corrente que Argia usava ao pescoço. Sentiu-o palpitar, como coisa viva. Sentiu-o debater-se, tentando sobreviver, tentando regressar ao seu dono.
Vegeta sorriu, de olhos fechados. E disse, antes de desmaiar:
– Está provado… Argia.
***
Foi número 17 que esmagou o diamante de Argia que, afinal, podiam ser esmagados como os berlindes onde se guardavam as galáxias, não apenas com um dedo, mas fechando a mão e utilizando a força imensa de um humano artificial que era ainda o mais forte do mundo. A deusa tinha-lhe concedido esse privilégio, apesar de lhe ter dito, antes da viagem, que seria ela a acabar com o deus guerreiro.
Ozilia debruçou-se sobre Vegeta e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido que número 17 não conseguiu escutar. Ela passou-lhe uma mão pelo rosto, sem o tocar, desde a testa até ao queixo, suavizando-lhe a expressão crispada, eliminando-lhe todas as rugas de esforço e apenas essas, pois os ferimentos, o sangue coagulado e os rastos de suor permaneceram. A seguir, o corpo do príncipe estremeceu ligeiramente até se abandonar num absoluto estado de inconsciência. Ozilia acolheu-o nos braços, segurando-o com muito cuidado.
– Ele está bem?
– Ele lutou com um deus – explicou Ozilia, não lhe respondendo diretamente, pois nunca o fazia. – O esforço foi muito grande.
– Regressamos?
Novamente, sem resposta.
Ozilia olhava para Argia.
O corpo do deus guerreiro agitou-se num estertor e desfez-se, de seguida, numa massa negra que se foi espalhando como se estivesse a ser derramado, esticando-se para perder contornos e volume, tudo o que tinha sido. Entranhou-se no solo e desapareceu sem sequer libertar fumo, odor ou qualquer coisa semelhante a uma alma que se escapasse do ser físico para ir habitar outro mundo para além daquele.
Que provavelmente não existiria. Aquele era o mundo dos deuses.
Quando número 17 olhou para Ozilia, viu que ela chorava.
Chovia sobre eles, sobre a dor daquele cenário em que um deus tinha morrido.
E então, com as lágrimas a correr de fio pelas faces, ela respondeu-lhe:
– Hai. Regressamos.
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Próximo capítulo:
Travessuras.