Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 23
Lutar.


Notas iniciais do capítulo

"Onde existe uma chama, alguém se pode queimar.
Mas só porque arde,
Não significa que vais morrer.
Tens de te levantar
E tentar, tentar, tentar."
Pink, Try



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A chuva fustigava a arena.

Despertou de mansinho, recuperando, uma por uma, todas as funções vitais do corpo abatido. Sentia-se enfermo e desgraçado, quebrado em mil pedaços dispersos, desfeito numa papa borbulhante que ousava sentir-se viva.

A obstinação e a teimosia classificavam-no inequivocamente, quase como o orgulho e a honra. Tudo nele sempre fora excessivo, até as derrotas, as vitórias e as paixões. E mesmo que tivesse a tentação de se render ao desespero, por, mais uma vez, não estar a conseguir superar o maldito adversário que o desmontava, bloco por bloco, até conseguir expor-lhe o tutano, ele haveria de resistir sempre, com os seus excessos todos intactos, mesmo que o corpo se convertesse num monte de cinzas. A obstinação, a teimosia, o orgulho e a honra, não necessariamente por esta ordem. Porque isso não era passível de ser incinerado.

Vegeta encheu os pulmões de ar e tossiu, porque quase não havia oxigénio naquele ambiente salobre. Esgravatou o solo com as unhas e soergueu-se nos braços trémulos. Estava perigosamente drenado, mas fez mais um esforço. Levantou a cabeça, a testa estava empapada em suor e em sangue. Fez um esgar que se assemelhava muito a um sorriso e ele gostou de enviar essa mensagem – de que nada o iria quebrar.

Uma onda de calor envolveu-o e a visão ficou vermelha. Outro ataque de Argia. Havia labaredas escaldantes e ramagens espinhosas a tentar despedaçá-lo, mas ele resistiu. Elevou o ki e libertou-se do ataque. Rebolou e deixou-se ficar deitado de costas, a respirar ofegante, a receber as gotas de chuva no rosto como lágrimas que lhe suplicavam que se aguentasse firme naquele combate.

Nisto, soube que a solução era simples.

Abriu os olhos, controlando a respiração. Era demasiado simples.

Ergueu-se, triunfando sobre o desânimo. Bradou:

– Argia!!

Obteve apenas silêncio e insistiu:

– Argia! Mostra-te, cobarde.

Ouviu uma voz pausada do lado direito.

– Estou aqui, príncipe dos saiya-jin. O que pretendes?

Vegeta voltou-se devagar. O deus guerreiro cruzava os braços e olhava para baixo, a cismar com qualquer coisa insignificante que estava no chão, a poucos centímetros da biqueira das botas.

– Vamos recomeçar este combate.

– Sabes que se trata de uma questão de segundos. Basta eu querer… e acabo contigo.

– Mas não queres. Porque sabes que existe uma possibilidade…

Argia inspirou profundamente, cismando agora com o horizonte soturno recortado em picos de ferro.

A chuva envolvia os dois adversários no mesmo destino negro e bafiento.

Vegeta completou:

– A possibilidade de vencer-te. E tu queres comprovar se o príncipe dos saiya-jin consegue derrotar um deus.

– Não consegue.

– Tu sabes que consegue! – Rugiu Vegeta. – Já o viste!

Argia aproximou-se tanto que ele teve de se inclinar para trás. Cuspiu-lhe a frase:

– Prova-o.

Aproveitou o impulso para o socar e Vegeta deslizou pelo chão até parar junto ao fim da arena, balançando perigosamente no início do abismo. Limpou o sangue da boca com a ponta dos dedos, resmungando:

– E vou provar-te, maldito.

Então, empurrando com os pés, atirou-se para o negrume desconhecido daquela garganta rochosa. Caía e não parava de cair. Travou a queda quando deixou de sentir a chuva. Olhou para baixo e não havia nada. Não conseguia perceber onde ficava o fundo do abismo. Olhou para cima e viu a luz recortada numa forma circular imperfeita. Crispou a fronte, estranhando o lugar. Estava dentro de uma espécie de caverna tubular, mas não era essa a perceção que tinha. Como esperado, Argia não o seguira. Pelo menos, não para já, o que lhe dava tempo para pôr o plano em prática.

Vegeta começou a vaguear pelo abismo, a fingir que se tinha perdido. Diminuiu o ki, disfarçando a sua presença, ocultando-se nas sombras. Encostou as costas numa parede lisa e gelada e, apesar de não ser essa a sua intenção inicial, concedeu a si próprio uns instantes de descanso. Um intervalo breve, que lhe permitiu esfriar ainda mais a mente em turbilhão e organizar as suas ideias, a começar por aquele plano.

Arriscou sorrir. Mas por que razão ainda não tinha pensado naquilo?

Achou que adormeceu, pois os olhos abriram-se de repente quando uma torrente de chamas violeta irrompeu pelo abismo, calcinando tudo o que tocava, descendo imparável até ao fundo desconhecido. Vegeta espalmou-se mais contra a parede. Sabia o que se seguiria, pois mesmo que fosse um deus, Argia estava a reagir como um vulgar guerreiro e ele já tinha conhecido muitos ao longo da sua vida.

Como antecipara, a comandar a torrente, a empurrar a sua descida assassina, vinha Argia de braço estendido e mão aberta, furioso e cego com essa fúria. Vegeta intercetou-o a meio do voo picado, desferindo-lhe um pontapé com ambos os pés que o apanhou em cheio na cabeça. Argia desapareceu na escuridão, berrando indignado, o berro perdendo-se no vácuo, misturando-se com o estrondo dos pedregulhos a rebolar uns sobre os outros, um eco metálico e torcido, ferro contra ferro.

Vegeta aproveitou o momento e voou dali, subindo até aterrar na arena. Juntou as duas mãos diante do corpo e aguardou, concentrando energia, toda aquela que conseguia rebuscar. Talvez chegasse a ser excessiva e, acaso falhasse, ficasse tão enfraquecido que não se conseguiria defender mais. Uma última hipótese, sabia-o muito bem. Mas o plano estava a dar certo e não iria desistir só porque havia a possibilidade de sucumbir mesmo vencendo.

O ataque e o voo cansara-o mais do que esperava. Os braços pesavam-lhe toneladas, a visão turvava-se, as pernas tremiam como gelatina. Mas era obstinado, recordou-se. Teimoso, orgulhoso e, sobretudo, honrado. Estava ali no lugar de Kakaroto e não o iria desiludir.

Nas profundezas, rochedos metálicos rebolaram e chocaram. Vegeta cerrou os dentes, uma veia pulsou na testa. Um aro luminoso rodeou-lhe os pulsos.

Não iria falhar.

Escutou o mesmo brado, desta vez em crescendo, a ira em estado sonoro.

Nas suas mãos juntas aglomerava-se luz, faúlhas e um ataque mortífero.

Só mais um momento…

Cerrava os dentes com tanta força que começou a ouvir estalidos na cabeça.

A exaustão estava a ameaçá-lo.

Nisto, à sua frente, Argia surgiu magnífico, envolvido numa aura vermelha de ódio. Voando de braços abertos, agitando as mangas largas, emulando um anjo da morte.

E depois, o tempo recuou.

Vegeta engasgou-se:

Nani?

Mas não interrompeu o ataque que preparava.

Viu a deusa na mesma posição de Argia, de braços abertos, a imagem de um anjo vingador.

Estava ali para equilibrar o mundo.

O anjo da morte enfrentar-se-ia ao anjo vingador.

Vegeta percebeu. Os opostos lutavam naquele mundo e eles eram meros peões, usados e largados pelos deuses, demasiado necessários quando lhes convinha, totalmente descartáveis quando passavam a empecilhos.

Ozilia disse e a voz dela ressoou na cabeça dorida de Vegeta:

– Um excelente plano, príncipe. Vai resultar.

Ele gaguejou

Na-nani?...

E depois, o tempo regressou ao presente.

O androide materializou-se do nada. Vinha assanhado e pontapeou Argia nas costas, empurrando-o para cima dele.

Vegeta disparou gritando:

Final Flash!!!

A vaga energética submergiu o deus guerreiro. A explosão também derrubou Vegeta que caiu para trás, rendendo-se ao cansaço. Foi recebido num amplexo quente e sacudiu-se, sentindo-se envolvido num perfume desconhecido e na macieza inebriante de um corpo feminino. Mas não se conseguiu soltar.

– Termina o que vieste aqui fazer, príncipe – dizia-lhe Ozilia.

Arquejou, de gatas, subitamente regressado à chuva e à arena recortada numa montanha de um lugar onde imperava o ferro. Apoiou-se numa perna, depois na outra. Não foi necessário ver, nem o conseguia fazer, tinha os olhos turvos do suor e do sangue que escorriam da testa. Atirou-se para o chão de joelhos, arfando como um asmático. O corpo balançava, tinha os braços pendurados.

Mas ele era… Recordou-se, no meio de uma névoa cinzenta que lhe estava a tragar a consciência.

Mas ele era obstinado. E teimoso. E muito orgulhoso e muito mais honrado.

Argia gemia ferido, tão arquejante quanto Vegeta.

O príncipe guiou-se pela luz. Lançou a mão com as derradeiras forças e agarrou no diamante do deus guerreiro. Com um puxão separou-o da corrente que Argia usava ao pescoço. Sentiu-o palpitar, como coisa viva. Sentiu-o debater-se, tentando sobreviver, tentando regressar ao seu dono.

Vegeta sorriu, de olhos fechados. E disse, antes de desmaiar:

– Está provado… Argia.


***


Foi número 17 que esmagou o diamante de Argia que, afinal, podiam ser esmagados como os berlindes onde se guardavam as galáxias, não apenas com um dedo, mas fechando a mão e utilizando a força imensa de um humano artificial que era ainda o mais forte do mundo. A deusa tinha-lhe concedido esse privilégio, apesar de lhe ter dito, antes da viagem, que seria ela a acabar com o deus guerreiro.

Ozilia debruçou-se sobre Vegeta e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido que número 17 não conseguiu escutar. Ela passou-lhe uma mão pelo rosto, sem o tocar, desde a testa até ao queixo, suavizando-lhe a expressão crispada, eliminando-lhe todas as rugas de esforço e apenas essas, pois os ferimentos, o sangue coagulado e os rastos de suor permaneceram. A seguir, o corpo do príncipe estremeceu ligeiramente até se abandonar num absoluto estado de inconsciência. Ozilia acolheu-o nos braços, segurando-o com muito cuidado.

– Ele está bem?

– Ele lutou com um deus – explicou Ozilia, não lhe respondendo diretamente, pois nunca o fazia. – O esforço foi muito grande.

– Regressamos?

Novamente, sem resposta.

Ozilia olhava para Argia.

O corpo do deus guerreiro agitou-se num estertor e desfez-se, de seguida, numa massa negra que se foi espalhando como se estivesse a ser derramado, esticando-se para perder contornos e volume, tudo o que tinha sido. Entranhou-se no solo e desapareceu sem sequer libertar fumo, odor ou qualquer coisa semelhante a uma alma que se escapasse do ser físico para ir habitar outro mundo para além daquele.

Que provavelmente não existiria. Aquele era o mundo dos deuses.

Quando número 17 olhou para Ozilia, viu que ela chorava.

Chovia sobre eles, sobre a dor daquele cenário em que um deus tinha morrido.

E então, com as lágrimas a correr de fio pelas faces, ela respondeu-lhe:

Hai. Regressamos.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Travessuras.



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