Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 51
"Ao Cair do Pano"




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Tendo nascido o sol no romper de um novo dia, à hora de sempre, Edgar percorre as ruas da cidade no conforto do automóvel levando a mão direita pousada na esquerda de Laura que, ao seu lado, segue sorridente e animada. A poucas curvas de distância já se sente a proximidade da instituição educativa, destino da professora.

Edgar: E então? Aceitas o meu convite para um jantar a dois na Colonial logo mais? – convoca entusiasmado espreitando rapidamente o semblante da esposa.

Laura: Hum… deixe-me pensar… – responde cortando a frase e franzindo o cenho, dando ênfase à falsa indecisão. – Não vejo motivos para recusar um convite tão tentador… Julgo que minha resposta é sim, aceito – profere então esboçando um largo sorriso.

Edgar: Por um momento pensei que irias recusar – revela aliviado e inquisidor. – Vou fazer por não me demorar no fórum esta tarde – avisa satisfeito.

Laura: Ótimo! Hoje, depois de almoço vou visitar minha mãe. Está na hora de lhe dizer que será novamente avó – conta incerta da receção que a espera. – E, antes de voltar para casa pretendo passar na Isabel. Ela telefonou ontem à noite pedindo-me para encontrá-la e pelo tom pareceu-me de certo modo urgente.

Edgar: Está bem mas não se esqueça do nosso compromisso – adverte reduzindo a velocidade do automóvel. – Pronto, chegamos – anuncia parando de vez em frente ao portão do colégio. – Desejo-te muita sorte na empreitada de visitar minha sogra – diz carinhoso imprimindo um curto mas vistoso beijo nos lábios da jovem que retribui o cumprimento com a mesma intensidade.

Laura: Obrigado meu amor, é certo que vou precisar. Até logo!

Com mais um leve beijo se despedem e, ao avistar os passos apressados da esposa ao encontro de Sandra que acabara também de chegar, Edgar retoma o caminho e ruma ao fórum para mais uma audiência.

A manhã transcorre normalmente e o suceder passivo das horas depressa trás o início da tarde. À porta da residência luxuosa dos Assunção, Laura ergue delicadamente o braço esquerdo, fazendo-se anunciar através de resistentes e educadas batidas. Os raios de sol que pela manhã faziam antever mais um belo dia, vinham pouco a pouco sendo substituídos por uma ou outra nuvem forte e cinzenta que ameaçava abater de chuva a capital. No interior da bela e nobre habitação, Luzia passeia-se rumo ao hall de entrada, de cabeça e olhos empinados, para receber a visita.

Luzia: D. Laura! Boa tarde – fala surpresa cumprimentando a filha dos patrões.

Laura: Boa tarde Luzia! Vim ver minha mãe, ela está? – questiona varrendo superficialmente alguns cantos da sala vazia onde acabara de entrar.

Luzia: Infelizmente não D. Laura. A senhora saiu para almoçar com D. Carlota mas não deve tardar. Posso servir-lhe um chá, uma água ou um café enquanto aguarda?

Laura: Vou esperar mas não se preocupe comigo Luzia. Pode continuar os seus afazeres que eu vou aproveitar a ausência de minha mãe para me refrescar. Vou subir ao quarto de banho e desço em seguida. Espero que D. Constância não se demore – desabafa enquanto sobe placidamente as escadas.

De fato, D. Constância não tarda. Breves minutos após Laura ter atingido o piso superior, a baronesa regressa ao lar, esbaforida pela cansativa caminhada que fizera entre a paragem do automóvel da família e a porta de entrada da residência. Envergando um de seus modelos mais requintados e de chapéu em mãos, rompe pela sala vociferando injúrias à criada que a acode veloz e precisa, qual lâmpada em meio à escuridão.

Constância: Ande Luzia, guarde logo esse chapéu e traga o meu chá. Não vê que estou exausta?! – reclama repousando o elegante porte numa das poltronas que acompanham o sofá.

Luzia: Mas senhora, tem uma visita que a aguarda não faz muito tempo.

Constância: Visita a uma hora dessas? Que petulância interromper-me sem sobreaviso. Dispense quem quer que seja. Não estou com disposição para receber ninguém – corta seca e autoritária desocupando o rico assento.

Luzia: É a D. Laura, senhora. Subiu ao toilette há…

Constância: Ora Luzia, francamente! Minha filha vem ver-me e você em vez de me dizer fica desperdiçando o meu tempo – protesta aborrecida cessando a narrativa da criada. – Laura não precisa de marcação prévia. Aliás, algo deve ter acontecido porque não é do feitio dela aparecer assim.

Num misto de curiosidade e satisfação pela presença incomum de Laura em sua casa, Constância lança-se assoberbada na direção da escadaria mas, no mesmo instante em que toca pela primeira vez o corrimão, novas batidas se ouvem vindas da porta de entrada. Enquanto a baronesa se decide mentalmente pela retoma do caprichoso percurso escada acima, Luzia atende mais uma visita não programada. E, se a anterior despertara uma sincera exultação na alma obscura de Constância, esta última promete um inevitável e azedo confronto. Lívida como a cera petrificada nas velas queimadas que enfeitam os castiçais espalhados pelo cómodo, a baronesa percebe incrédula e aturdida o timbre de Catarina que, atrás de si, a saúda em dissimulado regozijo.

Catarina: Boa tarde D. Constância! Vejo que neste intervalo desde o nosso último encontro desaprendeu os bons modos que tão veemente proclama. Dar as costas a quem a agracia com uma visita tão cortês é de péssimo tom, ainda mais quando vem de alguém que em plena República ainda insiste em ser chamada de baronesa – debocha quieta, rindo cínica.

Constância: Cotovia! – exclama volvendo-se de frente para a cantora, camuflando o assombro que se apodera lentamente de si como a chuva que lá fora principia sem notificação. – Diretamente do fogo do inferno para o sumptuoso salão de minha casa. Ah, terei que rebatizá-la. Cotovia não está à altura do seu instinto de sobrevivência. Fénix, Fénix dos Infernos adequa-se perfeitamente! – continua num tom notoriamente jocoso descendo o único degrau que havia entretanto subido.

Catarina: Ao menos não perdeu o senso de humor – diz soltando uma gargalhada irónica. – Mande o seu capacho recolher-se à cozinha. Nossa prosa é particular e, decerto a senhora não deseja testemunhas – prossegue alternando a voz e firmando os olhos de raiva na seriedade da temática que se avizinha.

Constância: Nós não temos assuntos em comum portanto, saia de minha casa imediatamente – nega desejosa de se ver livre do dissabor. – Se por acaso voltar a ter saudades minhas, mande um bilhete e noutra altura conversamos.

Catarina: Veja bem D. Constância. Depois do que me sucedeu, a senhora deve compreender que a minha paciência não anda particularmente abonatória. Assim sendo –, desenvolve calma aconchegando-se displicentemente no sofá – faça o que lhe disse e venha sentar-se aqui ao meu lado – convida batendo suavemente uma das mãos no lugar desocupado. – Ao contrário da senhora, eu não tenho o dia todo – refila encarando-a com desdém.

Atada ao chão pela raiva crescente que lhe desperta um sórdido tremor nos membros inferiores, tão veloz que o sente já palpar-lhe as pontas dos dedos das mãos, efervescendo-lhe cada gota de sangue que lhe corre no corpo, Constância emite um mudo gemido odioso e, fuzilando Luzia, transmite-lhe sem recurso a qualquer letra a ordem de deter Laura na ignorância recolhida do primeiro andar. A ínfima cogitação de ter sua filha escutando o predito desagradável colóquio, despoleta-lhe uma confusão de pânico e desespero pelo que, o arrastar de sua fiel criada ao encontro da jovem, tempera-lhe momentaneamente o reles sossego.

Constância: Seja breve. Não faço questão nem gosto de tê-la saracoteando essas feridas fétidas em minha residência – ataca enojada tomando arduamente assento na mesma poltrona que ocupara à chegada.

Na elevação superior, acometida por um vibrante saudosismo, Laura deambula através do casto toque dos dedos pelo cómodo deserto que outrora fora seu refúgio, sentindo na elegante e delgada pele a réstia de lembranças que, incutidas na memória, recordam a tristeza que o casamento lhe provocava. E como por vezes são deveras belas e imprevisíveis as ironias da vida! Hoje, não só é feliz com Edgar como encontra nele, todos os dias, o fulgor do ar que a enche de vida. Dispersa nestas reflexões, nem se dá conta que, do lado oposto junto à porta aberta, Luzia a espreita em silêncio, implorando num curto devaneio que a jovem ali se alongue. Contudo, as preces da empregada vêem-se repentinamente dissipadas pelo avivar dos atentos sentidos de Laura a quem um quase impercetível ruído atrai para a saída.

Laura: Luzia, está aí há muito tempo? – inquere ao ver o sobressalto, claro como a mais límpida água, galgar incolor o rosto da criada.

Luzia: Não… – hesita agitada vacilando nas palavras. – Não D. Laura! Vim verificar se precisava de alguma coisa – completa forçando um sorriso amiúde.

Laura: Detive-me um instante acalentando as lembranças em meu antigo quarto. Fazia tanto tempo que não entrava aqui – revela comovida voltando pela derradeira vez os olhos ao redor do cómodo.

Luzia: Está tudo igual senhora – diz numa óbvia tentativa de alongar a distração. – D. Constância faz questão de manter o seu quarto exatamente como estava na última noite que aqui passou.

Laura: Bem vi – concorda recuperando a posição de frente para o corredor. – Vou descer, aguardo minha mãe na sala. Isto se ela não demorar muito mais pois ainda tenho outro compromisso esta tarde.

Ao proferir estas palavras, a professora traça o formato de um passo adiante mas, a mão de Luzia apertando levemente a sua, de súbito lhe cessa o andar enquanto à mente lhe aflora a desconfiança e estranheza perante o ato despropositado da serviçal.

Luzia: Espere D. Laura! É cedo ainda.

Neste preciso segundo, acorrentada à poltrona pelos ferros dilacerantes de ódio e desejo de vingança que brotam a fio dos olhos de Catarina, Constância ouve calada e em imensurável ira as acusações de que é alvo.

Catarina: Não negue baronesa. Eu sei muito bem que a senhora e o meu futuro sogro foram os mandantes do atentando que sofri. Toma-me por tola? Pois tola é a senhora por ter pensado que se veria livre de mim com tanta facilidade. Veja, olhe bem para as marcas que deixou em meu corpo – exige em pé enfrentando o semblante colérico e enfastiado de Constância enquanto recolhe ao nível do cotovelo a manga do vestido que lhe cobre um dos braços. – Grave muito bem todas elas porque aquelas que eu vou incutir-lhe serão bem mais profundas e devastadoras – ameaça.

Constância: Curioso, após tantos anos, só agora descubro o porquê de você ter optado pelo lirismo. É verdadeiramente trágica e dramática! Creio que daria uma excelente atriz e, aliando estes aos dotes de meretriz, o cabaré tê-la-ia servido impecavelmente – retruca provocadora e trocista, impelindo vigor ao corpo levantando-se. – Se veio aqui para me admoestar com suposições incriminatórias, não perca o seu tempo e muito menos o meu. A saída é por ali – indica estendendo o reticente braço direito em direção à porta da rua.

Catarina: Calma D. Constância! Eu ainda não terminei – refuta soltando um risinho. – Como a senhora sabe, em breve tornar-me-ei também uma Vieira mas, como deve imaginar, a boda será bem longe daqui. Cansei-me dos pequenos palcos brasileiros, a Europa deixou-me saudosa. Por hora, quero dois mil contos de reis pagos numa única parcela em dia a combinar – afirma sem mais delongas.

Constância: Ah que maravilha! Estou tão extasiada com a notícia de sua agradabilíssima partida que nem sei se hei de dar vivas por isso ou pelo fato de que o voo longínquo da cotovia não me sairá de todo caro. Para ver-me livre do seu chilrear embaraçoso, pago dois mil e quinhentos. Considere o restante como um agrado em nome do nosso longo desafeto – oferece contente, tomada por uma inesperada tranquilidade.

Catarina: É sempre proveitoso negociar com a senhora porém, há mais uma coisa que quero que me traga a tempo da minha partida.

Constância: Ora minha cara, não acha que o que me disponho a pagar é o suficiente para que deixe a todos nós em paz?

Enfim liberta da mão repressora de Luzia a quem nenhuma desculpa ou lampejo nervoso haviam valido, Laura precipita-se para a escada. Lentamente, como as imagens bicolores de um cinematógrafo, a jovem lança o primeiro pé no degrau inaugural, iniciando a descida e o consequente terror do capacho que falhara a missão. Desde logo, ao ouvido apurado da jovem sobressai a familiar voz da cantora, travando-lhe instantaneamente os passos a fim de dar lugar ao ceticismo incongruente e a uma amálgama de suposições, nenhuma delas positiva. Congelada perto do meio da escada, absorvida pela penumbra das paredes e amparada nas costas por Luzia que a segue exasperada, Laura permanece imóvel e atenta ao desenrolar da conversa.

Catarina: E desde quando dinheiro algum paga uma vida, a minha vida que a senhora quase dissipou naquele incêndio? Pode dispensar à boca os impropérios que sempre me dedica – replica interrompendo a resposta hipócrita da baronesa. – Afinal, não tenho defeitos piores do que os seus. A educada e fina…, não, perdão, este merece um superlativo…sim, finíssima D. Constância Assunção que há anos se deleita na cama do sogro da própria filha, recorrendo a ele não só para satisfazer os prazeres da carne mas também os do ego inflamado – desvenda.

O raio que no exterior da residência rasga os céus da capital não atinge a proporção da angústia e incredulidade que, num gesto só, atacam Laura no coração do temor. O peito, reto e curvilíneo decorado pelo belo tecido da blusa laranja, contorce-se desiludido e descompassado, perturbando o respirar da jovem a quem o vacilar da força nas pernas exige descanso. A palidez do rosto não demora a espalhar-se-lhe por todo o corpo, fazendo companhia à brancura da saia ao ponto de beirar o reflexo descolorado dos sapatos pretos que lhe moldam os gélidos pés. As mãos, cujas pontas dos dedos ainda há pouco recordavam o pó de uma vida casta e solitária, acham-se agora unidas aos lábios secos e roxos, numa tentativa desesperada de calar o soluçar incontrolável. Em meia dúzia de palavras despejadas pela boca perversa de Catarina, a jovem desvenda os mistérios de anos, descobrindo finalmente o lado falso e criminoso de Constância. Desde o recolhimento da baronesa aquando da entrada triunfal da cantora e de Fernando na festa de aniversário de Francisco até às suspeitas de D. Margarida, as peças juntam-se e dão forma à conspiração de longa data. Mesmo sacrificando o parco ar que mal lhe chega aos pulmões, Laura não consegue conter o rio enfurecido de lágrimas que lhe escorre dos olhos e, o tilintar das gotas no verniz dos sapatos, aliado ao grito de alerta de Luzia, despertam Constância e Catarina que, simultaneamente, calam toda a prosa, desviando o olhar na direção da escada onde avistam Laura. Apavorada, Constância apressa-se correndo ligeira ao encontro da filha que, agora alguns degraus abaixo do meio da escada e apoiada na parede, as encara.

Constância: Laura, filha! Eu estava mesmo indo te encontrar. Luzia me disse que veio ver-me, você não imagina como fiquei feliz – dispara desvairada, desenhando à toa sorrisos como se estivesse diante da mais pura inocência.

Laura: Pare! Não diga mais nada que eu já ouvi o suficiente. Nunca pensei que me pudesse desiludir tanto com uma pessoa, muito menos com a minha própria mãe – fala com visível dificuldade sem se mexer. – A senhora é um ser hediondo –, grita horrorizada – atentou contra a vida de outro ser humano, traiu o meu pai sabe-se lá por quanto tempo e ainda me exigia decência e atitude de esposa exemplar que a senhora pelos vistos nunca teve – acusa.

Constância: Não filha, você entendeu tudo errado – recusa assustada. – Você está muito nervosa. Desça, tome um chá comigo e vai ver que tudo se resolve – insiste tocando o braço da jovem.

Laura: Não toque em mim – brada exaltada arrancando energeticamente o membro das mãos de Constância e arremessando-se rumo à descida. – Quero ir embora daqui – conclui chorando copiosamente.

Constância: Laura, por favor, fique filha. Vamos conversar – implora alterada com os olhos marejados, lançando novamente a mão ao ombro da professora.

Sentindo o freio que se esforça vigorosamente por lhe impedir a fuga, Laura volve os ombros em movimentos bruscos e ávidos mas a pressão dos dedos de Constância e o nervosismo frenético desequilibram-lhe os passos nos degraus e, num resvalo certeiro, a jovem cai, escorregando pelo remanescente da escadaria até ao patamar sobre o qual deposita descontroladamente a cabeça. Sem sentidos, não vê o sorriso de espanto e certo contentamento de Catarina nem ouve o grito dilacerante que rasga a garganta de Constância.


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