Lado A Lado - A História ao Contrário escrita por Filipa


Capítulo 50
"Vida"


Notas iniciais do capítulo

Antes de mais, quero agradecer novamente a todas que acompanham a história e também pelos comentários. No entanto, hoje o meu agradecimento vai especialmente para a Karen e a ela dedico o capítulo pela ajuda indispensável que me prestou na organização das minhas ideias que tem andado tão dispersas ultimamente.

Segue também como introdução um soneto de Antero de Quental do qual gosto muito e que deixo para embalar a leitura, caso assim o entendam. Obrigada a todas.

"Amor Vivo"

Amar! mas d'um amor que tenha vida...
Não sejam sempre tímidos harpejos,
Não sejam só delírios e desejos
D'uma douda cabeça escandecida...

Amor que vive e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser e não só beijos
Dados no ar delírios e desejos
Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipa-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia...

Nem murchará do sol à chama erguida...
Pois que podem os astros dos espaços
Contra débeis amores... se têm vida?



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No toque quente das mãos de Edgar, repousadas gentilmente sobre o ventre liso de Laura, impera uma esbatida névoa alegre e colorida como céu azul onde se espera a curva de um majestoso arco-íris. As mãos dela que ainda seguram as dele protegendo firmemente em si um tesouro, respiram a brisa bafejada pela boa nova, assemelhando-se às faces de ambos nas quais sobressaem os olhos húmidos e reluzentes e as bocas entreabertas de espanto e gáudio. Unidos pelo estreito e paralisado condão que os braços formam fechando em si o círculo perfeito, olham-se com tamanha intensidade que quase se julga possível penetrarem a alma um do outro.

Edgar: Grávida! Vamos ter um filho, outro filho! – gagueja em meio às lágrimas que lhe temperam os lábios sorrindo. – Eu sabia, eu sabia que você estava diferente. Ah, se eu soubesse que minhas dúvidas eram afinal certezas, jamais me teria torturado por tantos dias – afirma extasiado sem ser capaz de mover um dedo sequer do aconchego do ventre que tocam.

Laura: Você tinha razão, meu corpo me deu tantos sinais mas foquei-me em demasia num só e o medo apoderou-se de mim congelando-me a réstia de esperança. Eu não queria alimentar ilusões em ti. Até meu pai temeu que fosse fantasia da minha cabeça pelo tanto que desejamos uma gravidez mas, quando me examinou, não precisei de palavras porque a resposta estava escrita nos olhos dele – conta emocionada.

Edgar: Eu queria ter estado junto contigo, ter descoberto ao teu lado como da primeira vez mas entendo os teus receios – confessa sem mágoas, deslocando com cuidado as mãos para os contornos da cintura da esposa. – Estou tão feliz, você me faz tão feliz! Minha vontade é a de sair gritando a todos a novidade – prossegue inebriado, puxando-a com desmesurada suavidade para perto.

Laura: Pois grite, mas grite baixinho porque, por enquanto, só nós dois e meu pai sabemos e, se quiser, pode começar por gritar beijando a sua esposa que ainda espera ser devidamente felicitada – sugere lânguida e sedutora levando a boca de encontro à dele.

O início do beijo dá-se calmo e sem arroubos de maior natureza, perdendo-se os lábios no sabor das bocas. Todavia, à medida que as extremidades das mãos se passeiam sem barreiras pelo corpo alheio, vai-se abrindo uma estrada que os translada para além do espaço e do tempo. O beijo ganha então novos tons e novos ritmos, deixando escapar por vezes leves gemidos sufocados pela ânsia de não se soltarem. Enfim porém o ar faz-se necessário pelo que, na curvatura dos dois corpos entre os quais não há centímetro que os aparte, desprendem-se somente as bocas vermelhas de desejo. Os olhos, esses seguem fechados num doce enlevo entardecido pelo sol já posto e, num abraço, depositam as mãos no apoio que tanto apreciam.

Contudo, uma ténue e abafada gargalhada rompe a placidez da celebração, despertando-os para a presença de Francisco e Melissa que, ao alcance de dois passos, contemplam o namoro dos pais. O sorriso maroto e ingénuo das crianças faz jus ao semblante envergonhado e divertido de Laura e Edgar que, vendo-se apanhados numa travessura, desfazem a prévia comunhão dos corpos fitando as crianças como se lhes tomassem o lugar.

Francisco: Nós vimos tudo – afirma naturalmente rindo com as mãos atrás das costas, equilibrando o balanço do corpo.

Melissa: Eu não vi nada, eu não vi nadinha – diz entre a tímida gargalhada, cobrindo parcialmente os olhos com os tenros dedos das mãos.

Francisco: Viu sim! Papai e mamãe estavam dando beijinhos – denuncia divertido encenando pose de adulto que repreende crianças.

Edgar: Eh, fomos apanhados! – exclama fingindo certo acanhamento perante o flagrante.

Laura: Ah, mas que mal há em dar beijinhos? – questiona genuína encarando os filhos. – Nós também damos beijinhos nas bochechas de vocês dois. São gestos de afeto e carinho – continua sorridente desvalorizando a situação.

Edgar: Exatamente – concorda. – E, aproveitando que fomos interrompidos, o que me diz se contarmos a novidade? – indaga mirando a esposa de soslaio que prontamente assente em concordância. – Meus amores, venham aqui – chama estendendo os braços na direção dos pequenos. – Temos algo para vos contar.

Francisco: É uma história nova? – interroga entusiasmado, alheio ainda ao teor da prosa enquanto se acomoda no colo do pai e Melissa toma assento no da mãe.

Laura: Não amorzinho é uma outra coisa. O que vocês acham de terem mais alguém para brincar? – questiona meiga e calma averiguando os semblantes de ambos.

Melissa: Eu queria alguém com quem brincar com as bonecas – responde risonha olhando Laura.

Francisco: Bonecas não, eu gosto de brincar de pirata e a Mel nunca quer – alvitra movendo-se animado entre as pernas do pai.

Edgar: Hum… temo que somente poderemos saciar o desejo de um de vocês quanto à especificidade das brincadeiras – revela franzindo o cenho, reposicionando os fios claros de Francisco.

Laura: Vamos fazer assim, por hoje, damos apenas por certo que dentro de algum tempo vocês dois terão um irmãozinho ou irmãzinha com quem dividir as brincadeiras – solta sem grande alvoroço e uma ternura palpável na voz.

Melissa: Uma irmãzinha mamãe, eu quero uma irmãzinha – celebra feliz abraçando fortemente a jovem.

Francisco: Não Mel. Tem que ser um menino como eu. Assim ele, eu e papai protegemos você e a mamãe – discorda convicto despoletando a risada dos progenitores.

Laura: Mas esse menino está ficando muito machista! Edgar, para seu próprio bem, está proibido de incutir pensamentos retrógrados na cabecinha afoita do Francisco – repreende simulando certo aborrecimento, à medida que enche de cócegas as duas crianças que ocupam agora o espaço livre do sofá entre Laura e Edgar.

Edgar: Ora isso não é retrógrado nem machista. Antes pelo contrário, seu filho é um perfeito cavalheiro… tal qual o pai – debocha apontando para si próprio claramente embevecido.

Melissa: Vai demorar muito p´ra nossa irmãzinha ou irmãozinho – completa lançando um olhar inquisidor a Francisco – chegar? – pergunta entusiasmada dividindo a atenção entre a mãe e o pai.

Laura: Um pouquinho florzinha. Será o tempo suficiente de vocês dois se habituarem à ideia de terem mais alguém aqui em casa – fala afagando-lhe a face.

Apesar dos receios que ambos conservavam quanto à reação das crianças diante da notícia, tudo corre de feição e, quer Francisco quer Melissa, aceitam com bastante naturalidade e excitação a chegada de mais um pequeno membro à família. Depois de passarem mais algum tempo nesta posição familiar descontraída, aproxima-se a hora do jantar. Sentam-se os quatro à mesa na disposição de sempre e, em amena cavaqueira, recheada de gracejos pela parte das crianças e troca de carícias camufladas pelos adultos, dispõem do tempo sem transparecerem grandes pressas. Terminada a refeição que Matilde servira no esmero simples do costume, o casal apressa Francisco e Melissa para o descanso do sono, sob a promessa de um conto a quatro como por vezes sucedia no abrigo do leito amplo do casal. Qual vento que chega sem aviso, não tardam a adormecer envoltos nos mimosos braços dos progenitores que, mal notando o profundo desmaio, carregam cada um ao seu quarto, entregando-os ao sossego dos sonhos.

Ao bater silencioso das portas, achando-se no corredor enfrentando o cómodo que mais uma noite os aguarda, Laura esboça um largo sorriso e dirige-se ao marido em passos delicados como plumas. Desembocando no quarto à frente dele, faz menção de iniciar o desapertar dos poucos botões frontais da blusa mas, num impulso Edgar trava-lhe os gestos.

Edgar: Laura, deixa que eu me encarrego dessa tarefa – fala lascivo. – Hoje quero amar-te com calma, vendo, tocando e sentindo cada parte do teu corpo, cada milímetro da tua pele como se fosse a primeira vez.

A porta fechada nas costas ainda vestidas do jovem, encaixa o quadro que se desenha um pouco mais adiante junto à cama que ainda espera ser preenchida. As palavras arrebatadoras de Edgar perpetuam pelos cinco sentidos de Laura, exacerbando-lhe as sensações. Pausadamente, Edgar aproxima a mão direita do rosto cândido da esposa e, com as sensíveis pontas dos dedos acaricia-lhe a face alva e delicada, ao que ela reage instantaneamente seguindo-lhe os movimentos com a cabeça. Sem cerrar os olhos ainda que prolongando o pestanejar entre o recobro de cada arrepio, Laura observa-o descer as extremidades dos mesmos dedos pelo seu pescoço, inquietando-lhe desmedidamente os fios de cabelo mais fino que lhe cobrem a nuca, ao mesmo tempo que a outra mão sobe sorrateira do ventre para o busto sobre o qual Edgar se demora, desabotoando os três solitários botões que erguem o muro do decoro. Pouco a pouco, a chama acesa na lareira que são aqueles dois corpos ganha vida e ritmo próprio, crescendo no compasso da libertação das vestes ao ponto de se sentir tão alta e ardente quanto a mais vistosa labareda. Só então, sem defesas que lhes separe a pele, se beijam com ardor e tranquilidade, aprofundando as bocas unidas em busca da cama. No barco em que transformam o leito, embalados pelo sopro que penetra ávido pelas frestas da janela esvoaçando ligeiramente as cortinas, deixam-se ir no embalo das ondas, movendo-se lenta e continuamente entre idas e vindas à procura do auge.

Os poucos dias que se seguem até ao final da semana, não trazem outras novidades. Por vontade dos dois, a gravidez permanece em segredo, aguardando um momento mais propício para ser partilhada com os restantes membros da família. Apenas Sandra, Isabel e Guerra são entretanto agraciados com a notícia por força do convívio diário e pela confiança que Laura e Edgar depositam neles, certos de que não haverão fugas de informação adiantadas. Como prometera à tia no dia do incidente no teatro, Laura organiza com Matilde um simples jantar para a noite de sábado, durante o qual o casal anfitrião cumprimenta a oficialização do noivado de Guerra e Celinha, permitindo-lhes com isto escapar aos planos de D. Constância que, desde que soubera da união da irmã mais nova, se dispusera a oferecer uma grandiosa festa com a presença da nata sociedade carioca.

Ao romper dos últimos dias do longo mês de Julho, numa tarde mansa, Fernando apoia Catarina no recosto dos travesseiros que decoram a cama feita no quarto da residência da cantora. Tendo recebido alta médica horas antes, molestada pelas cicatrizes efetivas que o tempo jamais curará, Catarina permanece calada, prendendo os olhos nos pés do leito, diante da preocupação de Fernando que a olha amofinado.

Fernando: Não fique assim meu rouxinol. Você continua linda, e eu te amo mesmo com essas cicatrizes no teu corpo – fala tentando consolá-la com um leve beijo que a cantora recusa virando-lhe o rosto.

Catarina: Você diz isso agora porque tem pena de mim – retruca seca e incapaz de encarar tanto o noivo quanto o espelho em frente à cama. – Nunca mais poderei vestir mangas curtas ou subir minhas saias porque meus membros estão ressequidos e amarrotados pelas chamas que quase me mataram – afirma deixando escapar uma lágrima dolente.

Fernando: Mas seu rosto continua o mesmo amor meu. Lindo, sem qualquer marca que denuncie o horror pelo qual passou. E ainda que estivesse também ele marcado pelo fogo, meu amor por você é muito maior do que qualquer cicatriz – solta transparecendo denotada sinceridade. – Além disso, você precisa se recompor de suas forças físicas e mentais. Não posso ter-te assim abatida perante a vingança que espera meu pai e a baronesa – diz com profundo ressentimento e ódio na voz.

Catarina: O que quer que seja que está pensado fazer esqueça Fernando. Eu quase morri nas mãos desses dois, não podemos mais arriscar-nos tornando-nos novamente alvos fáceis do poder do seu pai e de D. Constância – corta determinada e séria causando espanto no rapaz que a olha atónito.

Fernando: Como não Catarina? Acaso enlouqueceu e agora está com medo deles? – questiona exasperado diante do recuo da noiva.

Catarina: Ora Fernando, desde quando sou mulher de temer alguma coisa ou alguém? Você diz que me conhece tão bem, deveria saber que na vida apenas receio verdadeiramente duas coisas; a morte e a miséria – dispara calculista. – D. Constância e o Sr. Bonifácio receberão a ração que lhes talharmos mas não será como você pensa. Nossos planos mudaram, não quero continuar aqui com essa vida miserável que nos espera – conta ganhando finalmente coragem para enfrentar o rosto de Fernando.

Fernando: Pretende então que eu planeie a nossa fuga? Por mim tudo bem, não há nada que me prenda aqui, vou contigo para onde quiseres – concorda ajeitando-se no leito ao lado da cantora. – Só precisamos arrancar uma bela quantia dos nossos carrascos mas isso não será problema com os tantos podres que temos em mãos.

Catarina: E não iremos sozinhos – retruca decidida enlaçando uma das mãos na dele. – Mas isso fica para outra hora que agora estou muito cansada e preciso repousar – corta sem se alongar na narrativa que se lhe forma na mente perversa. – Amanhã tenho uma visita muito importante e nada agradável a prestar.

Fernando: Claro meu rouxinol, descanse – concorda inquieto com a derradeira afirmação da jovem mas evitando delongar a prosa, preferindo dar-lhe abrigo em seu peito.

Catarina e Fernando passam assim a tarde, entre o sossego dos corpos e o fervilhar das mentes, calculando e prevendo cada passo que se avizinha e que promete atingir alguém mais, além de D. Constância e seu amante de longa data.


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